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Contos-->Sem título I -- 07/11/2002 - 14:46 (João Paulo Souza Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quartinho pequeno de garota, começando a ser iluminado pelas primeiras luzes da manhã, naquela terça-feira de novembro. O quartinho de Carolina ficava no oitavo andar do Edifício Maria Antônia, localizado em algum bonitinho bairro suburbano da cidade de São Paulo. O despertador começou a soar violento e constante. O barulho a acordou de primeiro. Levantou o rosto, até então afundado no travesseiro e, com as mechas tornadas selvagens pelas estripulias que fizera na cama esperando pela chegada do sono, caindo sobre seu rosto olhou com raiva o despertador. Falou um palavrão e como, tonta de sono, não conseguia desliga-lo, atirou-o pela janela, sem se preocupar com a possibilidade de acertar algum cidadão desavisado que passasse debaixo de sua janela. Levantou-se, seus pés descalços tatearam o chão até acharem seus chinelinhos de dedo cor-de-rosa. Um mimo de tão feminino e fofo. Com passos trôpegos foi até a porta que ficava no fim do corredor. Bateu duas vezes chamando por seu pai. Esperou um pouco mais e por fim, impaciente com a espera, abriu a porta e berrou para que seu pai acordasse. O quarto estava vazio. A cama permanecia intocada, nem uma ruga em seus lençóis. Será que seu pai havia ido embora mais cedo? Era o mais provável. Ele teria dito alguma coisa sobre sair mais cedo ontem que passara despercebida? Gozado, não se lembrava com clareza de nada que fizera no dia anterior. Isto agora era motivo de angústia. Observava, no centro do quarto do pai, tudo para ver se encontrava algum bilhetinho dele dando-lhe explicação. Estava com sua camisola lilás, uma camisola lilás como tantas outras e que não merece descrição. Pele branca e cabelos castanhos claros e cumpridos. Olhos que, se não fosse pelas sujeiras do sono e vermelhidão ocasionada por uma noite mal dormida, seriam bonitos. Deu de ombros e foi para a sala, ligar para o celular do seu pai. Estranhou, a linha estava muda. Desligou. Contemplou pensativa a janela, sentada do sofá. Ficou em silêncio pensando durante um longo tempo. Coçou o braço. Cruzou as pernas e colocou o cotovelo direito sobre o braço do sofá, apoiando sua cabeça em sua mão. Estava bonita com o semblante sério. Era coisa tão rara ficar séria. E nestes momentos era extremamente bonita. O lábio com sorriso angustiado, o olhar sem desejo algum, apenas uma curiosidade crepitando indisfarçável e suspiros constantes. De repente, sobre a mesinha no centro da sala, viu um objeto que despertou sua atenção. Uma bola de vidro. Uma bola negra de vidro. Que diabos era aquilo? Não pode conter a pergunta e tentou tira-la da mesa. Não conseguiu. A bola parecia ter o peso do mundo. Não conseguiu move-la por um centímetro sequer. Estava curiosa. Aproximou o rosto da bola, para ver se conseguia surpreender o traço de alguma coisa por dentro daquela escuridão. Só viu seu reflexo, devidamente distorcido pela superfície esférica. O telefone sem linha, o pai sumido e uma bola negra e pesada sobre a mesinha da sala. Tentava ligar e entender os fatos. O pai sumido. Está certo, às vezes ele saia absurdamente cedo para o trabalho (ao menos ele dizia que ia ao trabalho) e talvez desta vez apenas esquecera de avisar. Ainda era cedo para preocupar-se, porém, era tão estranho. O telefone. Talvez fosse um problema com o prédio todo. Talvez fosse um problema com a rua toda. Afinal, a Telefônica não é a oitava maravilha do mundo, bem sabia disto. As cortinas rosadas da janela da sala então rumorejaram com um fraco vento que entrava pela sala. Então ela percebeu um cheiro. Cheiro bom, suave, como de flores. Foi assim a princípio. Logo deu lugar a um fedor horrível, como carne estragada, excrementos e abacaxis podres. Levantou-se espantada do sofá em um pulo e correu o olhar por cada canto da sala. Nada fora do lugar, aparentemente, tudo intocável. A única intrusa era a bola negra. E uma barata, que saia de um pequeno buraquinho no rodapé da parede, que só agora notava. Saia e vinha em sua direção. Não se assustou um pouco que fosse. Não tinha medo de baratas. Olhou-a caminhar para ela. Estava determinada, parecia. Parecia que queria exatamente alguma coisa com ela. Depois, do buraco saiu outra barata. E depois outra...e depois outra...e outra...e outra. Logo uma fila de baratas estava indo a sua direção. Arregalou os olhos em sinal de espanto, mas não deu um passo sequer. De algum modo, tudo tão absurdo mas tão perfeitamente natural. Apenas baratas. Que quando chegavam perto dela, andavam em círculos ao seu redor. “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...” cantou a menina, começando a ficar apavorada. Olhou para o relógio e viu que estava ficando atrasada para o colégio. Faltavam vinte minutos e nem banho tinha tomado ainda. Olhou com repugnância para os pequenos seres marrons que circulavam ao redor dela e tomando um longo trago de ar, para criar coragem, fechou os olhos e começou a andar em direção ao banheiro. A sensação das baratas sendo esmagadas por seu pé lhe deu calafrios e antes de chegar no corredorzinho, já tinha quase vomitado. Virou-se para ver o estrago que havia feito. Uma trilha de baratas mortas era o vestígio de sua caminhada. Maria implicaria ao limpar isto mais tarde. Virou-se novamente, para não vomitar e foi para o banheiro. Com medo de abrir a porta e medo do que poderia encontrar lá. Abriu apenas um pouco e lançou um olhar pela fresta da porta. Parecia tudo normal. Abriu tudo. Nada de excepcional. Só o banheiro com seus azulejos brancos e limpos e seu cheiro de produtos de limpeza. Acendeu a luz e de fato, não havia nada de excepcional. Examinou no armarinho dos remédios e da escova de dentes. Nada. Olhou dentro do vazo. Nada. Só um ínfimo lago de água amarelada. Com uma careta de nojo apertou o botão da descarga. No ralo também, parecia não haver nada. Pela janelinha do banheiro via um céu pálido. Dia de chuva pela frente, sem dúvida alguma. Tirou a camisola e abriu o chuveiro. Nada de anormal acontecia. Entrou debaixo dele e começou a ensaboar-se. Então, a água morna de seu banho misturou-se a pedrinhas de gelo que caiam do chuveiro sobre ela, fazendo-a contrair o estômago pelo calafrio e pelo susto. Com os olhos quase inundados de lágrimas desligou o chuveiro e, ensaboada como estava, enxugou-se e foi para o quarto se vestir. Os guarda-roupas exibiam as vestimentas penduradas em cabides. Nada de bizarro nisto. Colocou o uniforme da escola. Olhou novamente para o relógio. Estava atrasada cinco minutos. Procurou o sapato no quarto, debaixo da cama. Precisava aprender a ser mais cuidadosa com suas coisas. Com medo, sacudiu bastante os sapatos antes de calça-los. Pegou seu material e...novamente passar pela sala. Isto era uma tortura. Isto não tinha sentido, mas não iria gastar seus miolos tentando entender. Apenas, quando voltasse da escola, caso o telefone já tivesse voltado a funcionar, ligaria para seu pai, pedindo-lhe para tomar alguma providência, pois a casa estava infestada de baratas. Com algo latejando na ponta do estômago, chegou até a porta, desta vez menos enjoada que na primeira vez. Não quis se virar de novo, para ver o que resultara de seu trajeto. Puxou os trincos e girou a maçaneta. Mas a porta não se abriu. A chave não estava na fechadura. Isto agora seria o pior de tudo. Tinha uma prova e um trabalho para apresentar neste dia. Procurou a chave no estojo.Nada. Só os lápis. Trancada em casa. Estacou. Novamente pisar em baratas para ir ver na cozinha se as chaves estavam penduradas no chaveiro. Calafrios e a sensação dos corpinhos se despedaçando sobre seus pés. Nada no chaveiro... E os passos imundos dela no chão. Foi ao banheiro para chorar. Mesmo sozinha, trancava-se no banheiro para poder chorar. Era vergonhoso chorar em um lugar onde alguém poderia surpreende-la. Depois de muito chorar, decidiu fazer uma busca mais minuciosa pela casa, à procura das chaves. Mas foi em vão. Na sala não se sentiu muito encorajada a voltar e fazer a busca. Nos outros cômodos não encontrou. Tentou ver se o telefone já havia voltado na extensão da cozinha, mas nada de pulso. Isto já se passava uma hora de aula. Não havia o que fazer. Provavelmente uma hora seu pai chegaria (sim, claro que ele chegaria, ele só foi trabalhar mais cedo hoje. Só isto... ele não pode ter sumido, simplesmente) e destrancaria a porta, resolveria o problema das baratas, diria o que era a bola de vidro e tudo voltaria a ser como era antes. E tudo voltaria a ser como era antes. Todas as soluções estavam vindo com papai. O papai poderia resolver todos os problemas de sua vida. E eram tão poucos, apenas aqueles que a afligiam no momento. E papai teria a solução. Ficou com fome. Não havia comido ainda, devido a todos aqueles inacreditáveis acontecimentos da manhã. Novamente na cozinha, abriu a geladeira. Não havia nada, senão alguns frios, leite e manteiga. Suspirou. Pegou o pacote de pão. Como será que toda a comida havia acabado? Pegou uma xícara e colocou café. Cinco gotas de adoçante. O barulho da colherzinha mexendo o líquido. O café queimando sua boca. Sua língua parecia estar pegando fogo. O que acontecia? O café fervia dentro de sua boca e em poucos segundos evaporou por completo. O resultado foi um longo grito de dor de Carolina. Cobriu o rosto com suas mãos e entregou-se a um choro esganiçado. Chorava e soluçava. Ficou chorando por tempo indeterminado. Não saberia dizer se foi por muito ou por pouco tempo, sabia apenas que chorava e sua língua doía e doía. Enfim, conseguiu segurar o pranto um pouco. Tirou a mão do rosto, secou o olho com suas mãos e enxaguou o rosto ali mesmo, na pia da cozinha. Colocou a língua de fora para ver seu reflexo na torneira. Estava vermelha. Apenas vermelha. Sobre a mesa os pães e frios. Ainda com a língua doendo, sentou-se na mesa e esperou um pouco para a dor diminuir. Mal diminuiu foi até a gaveta da pia e pegou a faca. Tirou duas fatias de pão do pacote e colocou-as sobre a mesa. Ia passar manteiga nelas, quando uma delas começava a rastejar pela mesa. Arregalou novamente os olhos, não conseguindo acreditar no que via. Movia-se devagar, uma de suas extremidades puxava o resto do seu corpo, levantava-se novamente e puxava de novo assim que caía sobre a mesa. Sua comida estava fugindo. Ao ter noção do que isto poderia significar, violentamente esfaqueou o pedaço de pão que, absurdamente, fez um ruído horrendo e, antes de morrer, teve fracos espasmos. E agora sangrava. Sangrava tornando vermelha a toalha de mesa. Papai traria a salvação. Daquele pão não comeria jamais. Pão que sangrava. Deveria ter gosto de cadáver. Papai demoraria?

Dois dias se passaram sem que ela percebesse, pois da janela, tudo o que o céu lhe mostrava era o mesmo branco opaco e nuvens enormes de dois dias atrás. O último livro havia acabado. Estava ficando difícil improvisar coisas para servirem como alimento. Seu pai não chegara. E em dois dias conseguiu esquecer que ele existia. Não havia saudades ou esperança escondida no fundo de seu peito. Tudo agora era o que lhe acontecia naquele momento. Seu pai era um passado distante, um fato que não ocorreria novamente e tudo que devia fazer era se consolar. E também tinha problemas mais imediatos a resolver. Mal mastigou a última página do livro e seus olhos caíram novamente sobre a esfera negra, sobre a mesinha da sala. Pisando sobre o corpo de milhares de baratas e, com o nariz já acostumado ao cheiro podre, tentou novamente erguer a bola. Mas o esforço foi inútil. A linha telefônica não havia voltado. Ela dormiu tão mal nestes dias. Estava pálida, fraca e agora, havia começado a falar sozinha. Falava coisas sem sentido:
- Meu pai se casou para poder ser um adúltero. Andem, andem, baratinhas – e catava do chão um punhado de baratas mortas. – tragam-me à memória a imagem de meu irmão, que era como uma de vocês e eu mal me importei com sua morte. Andem, andem, meus amores. Quando eu era pequena eu tinha medo de andar de roda gigante, eu tinha medo da altura. Hoje eu vou na roda gigante. Eu vou na roda gigante e quando eu ficar lá em cima, bem em cimão eu vou cuspir no chão e meu cuspe vai virar um pontinho que vai diminuindo, diminuindo durante a queda, até ficar pequenino, pequenino e pequenino que só e acertar uma bola preta, que só lá de cima vai parecer uma bola preta, porque na verdade vai ser a cabeça de uma pessoa, só que lá de cima vai parecer uma bola preta. – e gargalhava. – Estou sozinha a 4,5 bilhões de anos e ainda temos uma eternidade pela frente. AH!Mas vamos voltar a falar da roda gigante? Então tá, como eu tava falando, eu não tenho mais medo de ficar lá em cima não. Quando eu estou lá em cima tudo é baixinho. E na roda gigante é assim, primeiro tudo grandão e depois tudo pequenininho, grandão, pequenininho. Lá no alto é gostoso, agora eu tenho medo é de ficar lá embaixo para sempre, se eu pudesse eu ficava lá em cima pra sempre, lá embaixo alguém pode cuspir na minha cabecinha e isto seria muito sujo e eu não gostaria disto...ficar em baixo para sempre...
Parou de falar, já lhe faltava fôlego. Seu rosto agora tinha a expressão que há de ter um rosto a beira de um colapso. E novamente foi acometida de uma enorme fome. E não havia mais livros para ela comer. O que mais poderia ser adaptado para comida por ela? Roupa não daria. Era difícil de mastigar, difícil demais. Novamente começou a chorar. Seus olhos já estavam roxos de tantas lágrimas nos últimos dias. Chorava pouco agora. Já estava quase conformada com seu final. Vez ou outra olhava para a janela desesperançosa, com intenções suspeitas, mas algo a mantinha ali, naquele apartamento. Era como uma intuição. Ela estava certa de que mais alguma coisa iria acontecer e que haveria de ver esta “mais alguma coisa” que faltava. Talvez fosse esta “alguma coisa” o que tocava a campainha agora. Sobressaltou-se ao ouvir o alarme estridente. Grudou a cabeça no olho mágico. Tudo o que o minúsculo vidro revelava era uma incrível escuridão. Depois de retirar o olho do olho-mágico ficou pensando por um momento. Mas oras, como iria poder abrir a porta, fosse quem fosse? E talvez, se fosse um vizinho e ela berrasse bastante conseguisse ajuda dele. Mas olhando novamente pelo olho mágico tudo o que via era a escuridão. E mesmo vendo que nada ali tinha, algo tocava a campainha, fazendo-a recuar com o susto. Exclamou um palavrão e assustada colocou o olho de novo no minúsculo buraco. De repente pôs se a berrar e a gritar desesperada, percorrendo longos círculos através da sala. “Ah é satanás. É satanás, satanás. Socorro”. Esmagando mais e mais baratas. A mistura dos líquidos dos cadáveres das baratas e dos restos esmagados delas formava uma substância repugnante que encobria todo o carpete da sala. E satanás tocava a campainha de novo.
- O que você quer? – perguntou ela, depois de recuperar-se do descontrole.
- Conversar com você. – foi a resposta.
- Não tenho como abrir a porta.
- Não se preocupe. Arranjo um modo de entrar aí.
Isto é o que ela queria ver. Não era católica ou possuía qualquer religião. Cruzou os braços e fitou a porta com uma expressão provocativa. “Duvido”. Não pode deixar de provoca-lo. Mal terminou de dizer a frase e um corpo, suavemente, entrava pela janela. Um pretinho pequeno, de dentes grandes e lábios em iguais proporções. Estava com roupas remendadas e era muito fedido. Carolina levou um choque. Fitaram-se por algum tempo em silêncio. O silêncio. E de repente o barulho das gargalhadas de Carolina. Ele a olhou contrariado e murmurou alguma coisa. Ela retribuiu seu olhar com um olhar de desprezo. Qual seria a diferença de Deus e diabo na sua situação. Apelara para os dois há dois dias atrás e só agora, um deles, se fazia presente. Perguntou pela demora e ele respondeu-lhe que era muito ocupado e que seu problema era tão simples que ele não tinha sequer vontade de ajudar-lhe e que, nem mesmo uma alma de “menina cabaçada” faria valer a pena com que ele gastasse seu precioso tempo. Não iria abrir a porta e deixa-la sair de lá. Então ela lhe pediu comida. Novamente negou. Enfurecida, o matou então. E o sangue demoníaco escorria por cima dos cadáveres das baratas. Ela suspirou pensando no que aconteceria quando à imagem das baratas mortas, que já não era nem um pouco agradável de se ver, somasse a imagem de um corpo putrefato. Por quanto tempo seu estômago iria resistir? Arrastou então o cadáver do diabo até o chuveiro e lavou-o com água morna. Depois, levou-o à cozinha e deitou-o sobre a mesa. Pegou a faca e começou a cortar os pedaços sobre o prato. Não havia muito o que fazer com o corpo, estava com fome, deste modo livraria-se de dois problemas de uma só vez. E quem sabe sua carne não seria uma delícia exótica? Só experimentando para saber. O gosto de sua carne, de fato, era deliciosa. Tinha gosto de coisas erradas, tinha gosto de coisas boas. E era tão leve, tão leve, que comeu toda a carne do diabo e não se sentiu empanturrada depois disto. Restavam os ossos, estes sim constituíam-se em sério problema para ela. Não poderia comer ossos. Desmontou seu esqueleto e guardou-o numa das gavetas do guarda-roupas. E agora o demônio não existia mais. Ela estava livre do “errado”. Mas não havia grande vantagem nisto estando enclausurada em casa. Até tentou arrombar a porta, mas ela não se abalou um pouquinho que fosse com todo o esforço de Carolina. E Carolina ainda tinha fome. Lavou o rosto do sangue do diabo e sentou-se no sofá, esperando que mais alguma coisa acontecesse. Novamente, foi hipnotizada pela bola negra em cima da mesinha de centro. O céu nublado. Nenhuma nuvem se movia e o vento não ventava mais. Olhou novamente pela janela e nas janelas dos outros prédios nenhuma luz acesa. Parecia estar sozinha no mundo. Parecia ser a última garota do mundo. Ninguém passava nas ruas, tampouco. Nenhum carro mais passava. Sua cidade teria sido desertada? Só sobrou ela. Que berrou pela janela e ouviu seus ecos perderem-se, mais uma vez, no vazio da tarde. Era tarde? Não saberia dizer. Há dois dias não via a escuridão da noite no céu. Raiva por ter que passar por tudo aquilo. Aquilo que ela nem saberia explicar. Raiva por, por alguns momentos, ter deixado isto absorve-la e fazer-lhe integrar aquela loucura como se fosse uma coisa rotineira e normal, ainda por cima, como se fosse parte dela. Não poderia deixar isto corrompe-la. Haveria de resistir enquanto pudesse. Sim, sem dúvida alguma. E aquele pontinho no céu começou a ficar cada vez maior. Era Deus que se aproximava. Seu corpo abalou-se com vagas de ódio. Seus olhos marejaram-se. E deus direcionava-se para dentro de sua casa. Afastou-se da janela e logo um velhinho raquítico suavemente flutuava para dentro da sua sala. Não havia luz. Não havia barba. Não havia a imagem de velhinho bonachão tão comumente divulgada. Não havia clemência em seu olhar ou esperança, até mesmo. E ele pousou seus dois profundos olhos vazios sobre ela. E ela, novamente foi tomada pelo ódio. Fechou seu punho e o fez atravessar o ar parando sobre a face de Deus, que caiu no chão morto. Surpreendeu-se com a fragilidade divina. E agora não havia mais o “correto” também. Estava completamente livre do bem e do mal. Mas não poderia desfrutar disto, trancada em casa. Mais uma vez começou a chorar, ato freqüente nos últimos dias. E também comeu Deus. Deus e o diabo seriam, mais tarde, apenas a merda que ela expurgaria em uma crise de dor de barriga. Estava sem esperança. Colocou a mão na boca e começou a mastigar seus dedos...depois, mastigou sua mão...seu braço...por fim, engoliu-se por completo. Um forte abalo sísmico. E lentamente, a bola negra de vidro foi rolando, até encontrar o chão e espatifar-se, liberando todo o seu conteúdo. E a noite sem estrelas escapou da bola negra e fulgurou eterna no céu.


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