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Ensaios-->A URGENTE MUTAÇÃO -- 01/09/2002 - 11:12 (Domingos Milton Sande Vieira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A URGENTE MUTAÇÃO

Domingos Vieira


Estamos vivendo, a humanidade, uma profunda crise na consciência. Uma nova maneira de viver se torna absolutamente necessária diante do rompimento da antiga cadeia de valores, que parecia sólida até há pouco tempo. A fragilidade e a limitação desses valores se tornam cada vez mais visíveis: o que antes era sagrado é hoje mais um dos inumeráveis artigos do comércio; daqueles em quem – pensávamos – podíamos confiar, devemos nos proteger. Há incerteza e insegurança por toda parte. Isso é observável nas áreas religiosa, política, ambiental, ideológica, social, econômica, das relações pessoais e das relações entre países.

Parece que a causa básica de todo esse quadro reside em não sermos capazes de viver a vida em sua totalidade. Exageramos algum ou alguns aspectos do viver e erigimos e mantemos civilizações com base nessa importância demasiada atribuída aos fragmentos. A percepção total – e não apenas intelectual – desse fato exige, talvez, intensa investigação. Mas quando realmente o constatamos isso nos remete à pergunta: existe um viver total, sem o exagero de quaisquer dos seus aspectos? Há a possibilidade de um viver apaixonado, intenso, harmônico, sem conflito interior e, portanto, sem conflito exterior? E, sendo o intelecto apenas um dos aspectos do viver, ele está habilitado a criar essa harmonia? Ou confiar esse papel ao intelecto é exagerar a sua importância?

Kafka, em A Metamorfose, nos dá um exemplo contundente desse viver fragmentário. Gregor Samsa transforma-se num inseto, monstruoso e repelente. Não é isso o que a sociedade, que somos todos nós, exige e espera. A sociedade quer que ele atue como inseto, viva como tal, mas não que se transforme em inseto. Pois isso frustra os interesses da própria sociedade baseada na aquisição, ameaça toda a estrutura fundada na ganância, na exploração, na competição, no poder e na manipulação. Ele deve se comportar como um inseto repelente. Deve ser obediente, submisso, desprezível, vil, amedrontado, insignificante, mas manter ideais de humanidade, ainda que totalmente irrealizáveis para quem aceita a condição de inseto ou a ela se submete. Gregor Samsa, porém, não segue o modelo dos ideais. Compelido a viver essa vida contraditória, esquizofrênica e de extremo desequilíbrio que lhe é exigida, busca a liberdade metamorfoseando-se num inseto. Ele já não suportava a vida que levava: “Ah, meu Deus!” pensou – “Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia – viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e, além disso, me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso”.

Agora que Gregor se transformou num inseto, o chefe já não tem sobre ele o poder anterior que o levou a enviar o gerente à sua casa para levá-lo de volta ao trabalho. Gregor chegou a pensar que o chefe em pessoa viria buscá-lo, acompanhado do médico do seguro de saúde, para quem “só existem pessoas inteiramente sadias, mas refratárias ao trabalho”. Quem vai à sua casa, porém, é o gerente. Este conta, em sua incumbência, com toda a aprovação e ajuda dos pais de Gregor. Depois de muitas admoestações e de não obter resposta alguma, senão sibilos, o gerente consegue divisar a forma atual do empregado e foge apavorado, não apenas pelo grotesco da figura de Gregor Samsa, mas, principalmente, porque a forma atual do seu antigo subordinado funciona para ele como um espelho. Aquela triste e asquerosa figura é ele mesmo. Gregor tem consciência disso: “Gregor tentou imaginar se não podia acontecer também ao gerente algo semelhante ao que havia sucedido hoje com ele; de fato, era necessário admitir essa possibilidade”.

Estando morto para o mundo comercial, só restava agora a família, que também o repudiava: “...Gregor, a despeito de sua atual figura triste e repulsiva, era um membro da família que não podia ser tratado como um inimigo, mas diante do qual o mandamento do dever familiar impunha engolir a repugnância e suportar, suportar, e nada mais”.
Ter se transformado num monstruoso inseto repelente é tão terrível que Gregor anseia voltar à sua condição anterior. Mas foi aquela que fez com que ele, não a suportando, se transformasse em inseto. Agora é visto como um animal, mas “Era ele um animal, já que a música o comovia tanto?” Economizara dinheiro suficiente para mandar a irmã ao conservatório. Estava preparando essa surpresa para ela e para seus pais. Gregor certamente alimentou a ilusão de que a irmã poderia ser diferente dos outros, até que a ouviu aconselhar aos pais que se livrassem dele, pois aquilo não era Gregor. “Se fosse Gregor, ele teria há muito tempo compreendido que o convívio de seres humanos com um bicho assim não é possível e teria ido embora voluntariamente.”

Gregor se encontra só. É o preço que ele paga por estar fora do sistema. Ele também estaria só, mas não isolado, se examinasse, compreendesse completamente e ultrapassasse a sua própria insignificância. Rompida essa situação, a condição humana se restaura sem a necessidade de ideais. Para isso se requer a não aceitação do absurdo, e a negação dos ideais, crenças e ideologias. O absurdo só se manifesta em vista da grandeza do ser humano. Os ideais são o simulacro, no campo do pensamento, dessa grandeza. Os ideais contribuem para manter a condição de inseto. Os ideais existem apenas para os que se submeteram a essa condição ou não conseguiram ultrapassá-la. O ideal mantém a busca, no campo do tempo, de algo que se acha fora do tempo. Examinar e compreender não é um outro ideal a ser perseguido.

Gregor tornou-se um monstro aos olhos dos outros e até aos seus próprios olhos, embora ele pusesse em dúvida se seria mesmo um monstro. Escolhendo essa forma, tornou-se deliberadamente inútil para um determinado sistema. Hoje, a maioria da humanidade passa pela metamorfose compulsoriamente. É tornada inútil pelo sistema. Depois de ter sido reduzida a uma insignificância em sua perspectiva de vida, é descartada não só como desnecessária, mas demasiadamente onerosa para o chamado sistema produtivo.

Para os que continuam no sistema, e mesmo para os descartados, é oferecido o entretenimento. Este se transforma na nova religião dos insetos, metamorfoseados ou não. As aspirações humanitárias passaram a ser consideradas como muito distantes, como miragens. O ideal de ascensão no padrão restrito, mesquinho, do acumular cada vez mais, é negado para um número sempre maior de pessoas pela própria lógica desse padrão. Os que têm muito usam, logicamente, aquilo de que dispõem – seu poder econômico, seu prestígio, seus conhecimentos, sua possibilidade de influir em decisões governamentais, seu poder de influenciar diretamente na escolha de governantes, de influenciar as mentes, de criar metas para o desejo, de disseminar idéias e maneiras de pensar – para ter mais ainda. Os que têm pouco anseiam ter muito, e fazem o que podem. Mas na queda de braço com os poderosos são esmagados. Resta o entretenimento. Fuga maravilhosa para todos da insignificância, e negócio altamente rentável para uns poucos. Os ídolos bem pagos dessa nova religião atraem milhares, milhões, centenas de milhões para consumirem o que é produzido pelos que usam as suas imagens ou os patrocinam. Mais enriquecimento, mais empobrecimento.

Chegamos a uma situação em que a consciência humana, a consciência de cada um de nós, tem de passar por uma transformação radical. Os fatos a exigem. Historicamente, a intensificação do estado de grande miséria, contraposto ao excesso de riquezas, sempre resultou em algum tipo de convulsão. A riqueza material como objetivo de vida é miséria. Tal situação é, hoje, mundial.
Temos de passar por uma mutação para dar início a uma nova maneira de viver. A outra opção seria a metamorfose de toda a humanidade, o que significaria a nossa destruição. Pela mutação podemos trabalhar vigorosamente: examinar profundamente a nossa situação humana, olhar em torno, olhar para dentro, conhecer-nos no espelho das relações e despertar para a nossa verdadeira natureza, imensurável e atemporal – sem a crença de que ela é assim. A segunda opção, a do nosso fim, nos levaria, talvez, a dizer como o Sr. Samsa ante a morte de Gregor: “Bem” – disse o Sr. Samsa –, “agora podemos agradecer a Deus”.

& 61623; Citações extraídas da 3ª edição de A Metamorfose, de Franz Kafka. (São Paulo: Editora Brasiliense, 1986).

& 61623; Domingos Sande Vieira é ensaísta.

Ensaio publicado no Caderno Cultural do jornal “A TARDE”, de Salvador-Bahia, em 03.04.1999.




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