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Ensaios-->Eumolpo e as artes em Satiricon -- 05/12/2002 - 04:07 (Eduardo Amaro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
EUMOLPO E AS ARTES EM SATIRICON

Satiricon é um dos romances mais antigos, entendo-se romance como obra escrita aquém da hermética produção literária proveniente da urbe de Roma. Chegaram até nós apenas fragmentos desta obra, cujo mais conservado é a famosa passagem “A ceia de Trimalchião”.
Pode-se considerar Satiricon uma sátira – uma grande sátira aos costumes e à política romana, tanto do ponto de vista cômico quanto do conceito de satura – mistura de estilos. Aqui se evidencia uma característica muito singular e suprema de concepção literária: os episódios narrados estão em perfeita sintonia híbrida, ou seja, passagens cômicas são intercaladas com passagens trágicas de forma natural, convivendo em harmonia. O narrador parte do retrato puramente zombeteiro da cena para narrar uma desgraça, articulando-se por meio de expressões solenes, artifícios retóricos, da mesma forma que se apresentam palavras do idioma popular, às vezes vulgar demais. Passagens maliciosas, baixas, descritas e acobertadas por um fantástico domínio da arte retórica por parte de Encólpio, o narrador-personagem, que se mantém ao mesmo tempo fiel e avesso à retórica.

“Eumolpo, cuja castidade chegava ao ponto de ser capaz de divertir-se até com um rapaz da minha espécie, convidou, sem perda a um minuto, a senhorita para fazer com ele uma demonstração de ginástica sagrada. Mas ele sempre dissera que sofria de gota e tinha os rins atacados; assim, se não desempenhasse bem o seu papel, arriscaria a fazer desmoronar todo o plano preestabelecido.
Então, para manter o credito à mentira, ele pediu à menina que se sentasse sobre a benevolência pouco antes invocada, ordenando depois a Corax que se metesse debaixo do leito onde ele estava deitado, e que, com as mãos apoiadas sobre o chão, lhe imprimisse um movimento cadenciado com os rins. Corax pôs-se à obra com lentidão sabiamente calculada, respondendo com impulsos iguais às manobras da pequena. Mas, chegando o exercício ao fim, Eumolpo gritou a Corax que acelerasse o movimento. Assim, colocado entre a amante e o criado, o velho parecia divertir-se como um baloiço. Todos os presentes riam perdidamente dessa cena, inclusive Eumolpo, que repetiu várias vezes o curioso exercício.
Entretanto, para que a inação não me embotasse a sensibilidade, aproximei-me do irmãozinho que, por uma abertura do tabique, admirava as acrobacias da irmã, tentando-o para ver se ele estava disposto a sofrer a injúria. Ele não se esquivou às minhas carícias, não fosse o menino sabido que era; mais ainda desta encontrei a mesma hostilidade do deus inimigo .
(Esta nova derrota não me desgostou tanto como as precedentes, pois que pouco depois readquiri os nervos e, sentindo-me vigorosamente armado, exclamei:)
_ Divindades mais poderosas tornaram-me de novo íntegro. Sim, é o próprio Mercúrio, o deus que leva e traz as almas que, pela sua benevolência, devolveu-me aquilo que uma mão inimiga me tirara. Verás agora que sou melhor dotado do que Protesilau ou qualquer outro herói antigo.
Ao terminar de pronunciar estas palavras, ergui minha túnica e mostrei-me a Eumolpo, em toda a minha glória. A princípio, ele espantou-se, mas depois, para melhor convencer-se, acariciou com as duas mãos aquela prova do favor divino”.
(pág. 207 – 208)

Sobre este aspecto lingüístico de Satiricon, afirma o professor Giulio Davide Leoni, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no prefácio intitulado “Petrônio – o tempo, o homem, a obra literária”:

“Sob o aspecto lingüístico, o Satiricon é uma das obras mais importantes da literatura latina, aliás, muitas vezes a importância lingüística une-se à beleza artística: Estilista, Petrônio escreve de modo simples, claro, vivo, natural, maleável, atraente, digno dos melhores escritores de Roma; e também quando parodia as expressões solenes e épicas, mostra a sutileza de linguagem empregada pelos melhores humoristas. É um narrador de raça; pensemos em Voltaire, porém mais pitoresco; ou num Rebelais, mais aristocrático. (...) De fato, a obra de Petrônio não tem preocupações de corrigir: corrigir foi o ideal de Horácio, o sonho de Sêneca. O nosso escritor nunca aparece: objetivamente, movimenta as suas personagens, que são sempre irrequietas, pois os tempos e os ambientes denunciam uma profunda e contínua decadência”.

Encólpio revela-se um conhecedor da Arte Poética, pois em suas narrações intercalam-se poesias e questionamentos sobre poesia, como por exemplo, o trecho que segue:

“Se, ao contrário, permitissem que os estudos fossem se desenvolvendo ordenadamente, por graus, de maneira que a juventude estudiosa pudesse assimilar leituras sérias, formar o espírito com os preceitos da sabedoria, corrigir o estilo com um critério impiedoso, ouvir longamente os modelos que desejassem imitar, em suma, evitar admirar aquilo que parece belo à infância, - então a grande arte oratória reapareceria em toda a sua majestade.
Presentemente os meninos não fazem senão brincar nas escolas, os jovens são objeto de riso no fórum, e – cousa pior ainda – ninguém, na velhice, quer confessar haver recebido uma instrução insuficiente. Mas para que não julgues que eu reprove a improvisação, cara a Lucilio, expressar-te-ei em versos o que sinto:

Quem a uma arte severa aspira
E a grandes cousas aplica o espírito
Vida simples e frugal deve levar
Alto paço de frente altiva despreze;
Nem, vil cliente, cobice lautas ceias;
Na devassidão, não ofusque
Com o vinho o rigor da mente;
Nem dê o seu aplauso interessado
As tolas momices da história.

Mas se preferir as torres de Atenas guerreira,
A terra que o colono de Esparta cultiva,
Ou a mansão das sereias – restitua então os versos
Os seus primeiros anos, e na fronte de Homero beba com abundancia.
Saciado depois da tropa socrática, que livre procure
As armas do altivo Demóstenes, e as empunhe
Influenciado, então, será pelos Romanos, que, libertados
Dos gregos acentos, o gosto mudando-lhe, dar-lhe-ão nova inspiração.
Subtraindo do fórum o pensamento
Que a pena corra sobre o papel, celebrando
Aventuras várias, cantando-as com estilo épico,
E as guerras heróicas que lhe dão alimento,
Ou descrevendo, então, o verbo grandioso do indomável Cícero.
_ Orna teu espírito com tal tesouro; qual onda fluente
Dos teus lábios brotarão palavras dignas das Musas”.
(p. 20)

Desta forma, Encólpio, diluindo seus conhecimentos em toda a narrativa, aproxima-se de Eumolpo e estes, da própria obra: satírica, poética, retórica: um misto de realidade e ficção, nobreza e anti-heroísmo, ensinamentos e desventuras.
O narrador conta uma deliciosa história de desencontros e peripécias, ao lado de Gitão e Ascilto. Trata-se de um jovem extremamente observador, questionador, sapiente e irônico. Gitão é um rapaz bonito, objeto de disputa, um ser bivalente e em constante dúvida. Na segunda parte do livro, é introduzida uma personagem nova: Eumolpo, o velho poeta, um tanto sentimental e muito veemente em suas palavras.
Eumolpo é uma personagem que se destaca em Satiricon. Nele se encontram o domínio da arte poética e da arte retórica, a erudição, a sapiência e a ironia.
A personagem, quando aparece, exerce o papel pedagógico ao ensinar sobre as artes ao leitor.
Observe o seguinte trecho:

“Mal conseguindo ajustar um verso nos seus pés e pôr num período uma idéia mais ou menos delicada, já acreditavam ter atingido o cimo do Helicão”.
(p. 171)

Nesse trecho observa-se que Eumolpo conhece a prosódia e métrica latina e que domina a mitologia romana também. Além de conhecer os grandes nomes da Antiguidade Clássica:

“é preciso fugir daquilo que eu chamarei de trivialidade de expressão, e escolher as suas palavras fora das da plebe, observar, enfim, a asserção de Horácio: odeio o vulgo e dele me mantenho afastado”.
(p. 171)

“Testemunhos disto oferecem Homero e os líricos, o romano Virgílio e as descobertas felizes de um Horácio”.
(p. 171)

“Imitar os bons exemplos” é um dos principais componentes da arte poética. Em “Arte Poética e Poema sobre a Guerra Civil”, o poeta de Satiricon nos ensina como deve ser um poema épico: a escolha de um tema nobre – a guerra civil; a descrição de acontecimentos através “das mil peripécias das intervenções dos deuses e do tormento fabuloso do estilo”. Um aspecto relevante aqui deve ser observado: o título do poema – Guerra Civil – parece remeter-nos à “Farsália”, de Lucano, com uma diferença essencial: foi omitida a parte histórica, ou seja, “o retrato” – a mimética de Aristóteles?
O próprio Eumolpo diz; “a imaginação possa expandir-se livremente, de modo a reconhecer-se na obra antes o delírio profético de um espírito inspirado do que a árida verdade de uma narrativa presa religiosamente aos testemunhos”. Ou seja, ele prioriza a criação à forma. De certa maneira, em sua tentativa de compor uma arte poética própria, Eumolpo nega a mimética em face da poesia; o texto, construído pelo “delírio de um espírito inspirado”, isento de maiores lapidações – “que ainda não receberam a última demão”, parece coincidir com o próprio Satiricon, ao não se prender a um estilo uno, pelo contrário, mistura a mimética à idealização, a poesia à retórica, a verdade à ironia.
Eumolpo pode ser tomado como o arquétipo da arte no texto, uma vez que a concepção poética nele inserida transforma-se em ação por ele praticada. Após suas considerações a respeito de como a poesia deve ser tratada, Eumolpo exemplifica suas teorias por meio de um poema épico de autoria própria.
Temos, portanto, uma metalinguagem – a poesia personificada na personagem que disserta a respeito de si mesma.
Eumolpo domina a capacidade de seduzir, de convencer, como se verifica na passagem abaixo:
“Entrementes, o nosso defensor da hora do perigo e autor da presente reconciliação, Eumolpo, pôs-se a fazer mil gracejos sobre a leviandade das mulheres”.
(p. 153)

Em suas palavras encontra-se a verossimilhança, essencial ao texto literário, ao perceber que a história maquinada por Gitão seria inverossímil. Tenta, desse modo, ligar as unidades de ação – acontecimentos, de forma verossímil, desencadeando-os com o objetivo de torná-los convincentes.

“Eumolpo respondeu que a coisa não era viável.
_ Um navio grande como o nosso não entra em qualquer porto, e, além disso, esse irmão que fica mal assim tão de repente parecerá bem inverossímil. Considerai que Licas, por polidez, poderá bem querer fazer uma visita ao doente. Vede que belo expediente seria o nosso: iríamos justamente atrair a pessoa que queremos evitar. Admitamos, todavia, que o navio possa ser desviado de sua rota e que Licas, aconteça o que acontecer, não procure visitar o doente: mas como poderíamos desembarcar sem sermos vistos por todos? Sairíamos de cabeça descoberta? Cobertos, todos quereriam dar o braço ao enfermo; descoberta, não seríamos como se apontássemos para nós mesmos?”
(p. 141)

Existe uma grande quantidade de pequenos versos no texto e duas poesias extensas: “A tomada de Tróia”, como o nome diz, canta a destruição desta cidade pelos gregos – não obstante, ecoam-se vultos de Virgílio e Homero; e “O Poema sobre a guerra civil”.
Por todos os aspectos relatados neste texto, tais como: conhecimento da prosódia e métrica latinas, domínio da linguagem erudita e imitação dos bons exemplos, pode-se tomar Eumolpo como a metonímia da arte em Satiricon.

BIBLIOGRAFIA

PETRÔNIO. Satiricon. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1971
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