A corrupção é mesmo um crime “hediondo”?
ESCRITO POR GRAÇA SALGUEIRO 02 SETEMBRO 2011
ARTIGOS - DIREITO
Será que ninguém percebe a diferença entre um larápio contumaz e um
psicopata assassino, que tira vidas humanas da forma mais cruel que se
possa imaginar?
O que esta proposta pretende é banalizar os crimes hediondos de fato.
A página do Senado na Internet divulgou, entre os dias 15 e 31 de
agosto, uma enquete para saber se a população acredita que a corrupção
deva ser considerada um “crime hediondo”. Tal pesquisa correu pela
rede e pelos sites de relacionamento como rastilho de pólvora, obtendo
o assustador percentual de 99,44% favorável à inclusão, num total de
426 mil votantes. O projeto é do senador Pedro Taques, do PDT de Mato
Grosso (um partido comunista, vale salientar), que afirma que
“hediondo” significa “nojento, o que dá asco”.
Ao contrário da maioria das pessoas eu votei contra e, como estou
sendo muito questionada - e até condenada -, resolvi escrever este
artigo a fim de explicar mais detalhadamente minha posição. Antes,
porém, descrevo o que significa “corrupção”, “corrupto” e “hediondo”,
segundo consta no dicionário Houaiss:
CORRUPÇÃO:
Ato, processo ou efeito de corromper, depravação de atos e costumes.
Emprego, por parte de grupo de pessoas de serviço público e/ou
particular, de meios ilegais para, em benefício próprio, apropriar-se
de informações privilegiadas acarretando crime de lesa-pátria.
CORRUPTO:
Que ou aquele que age desonestamente, em benefício próprio ou de
outrem, especialmente nas instituições públicas, lesando a nação, o
patrimônio público, etc.
HEDIONDO:
Que causa horror, repulsivo, horrível. Que provoca reação de grande
indignação moral, ignóbil, pavoroso, repulsivo, que é sórdido.
Desde os tempos de José Sarney, passando por Collor, FHC e atingindo
seu apogeu na era petista, o país está acostumado a cada dia surgir um
novo escândalo de corrupção, onde o suado dinheiro dos pagadores
compulsórios de impostos escorrem pelos desvãos das casas
legislativas, engordando o patrimônio de velhas raposas da política
nacional. O relativismo moral fez com que as pessoas se inconformassem
mais com os atos de corrupção do que com os 50.000 brasileiros
assassinados por ano, em decorrência do tráfico de drogas. Os
primeiros são crimes de “esperteza”, malandragem, onde o mal não está
necessariamente presente. Nos segundos, o mal é intrínseco e elemento
indispensável à sua execução.
Não estou defendendo a corrupção e creio que esses casos devam ser
rigorosamente apurados e seus autores julgados e trancafiados numa
penitenciária, sem qualquer regalia nem “abrandamento” da pena.
Entretanto, não posso fazer de conta que não existe uma escala de
valores e um índice de maldade para os atos humanos. O político
corrupto se apropria daquilo que não lhe pertence, ou seja, rouba
dinheiro do erário que, conforme me alegaram, poderia ser empregado em
mais escolas, na segurança, nos falidos e decadentes hospitais da rede
pública, no qual concordo plenamente. Entretanto, a vida humana é um
bem maior e não pode ser relativizada com um roubo puro e simples.
Para exemplificar melhor meu ponto de vista, lembro alguns escabrosos
casos clássicos da bestialidade humana que chocaram o país. Em 20 de
abril de 1997, o índio Galdino Jesus dos Santos, da tribo Pataxó, foi
queimado vivo por jovens de classe média alta enquanto dormia em um
ponto de ônibus na Asa Sul de Brasília. Em 20 de fevereiro de 2007, o
menino João Hélio, de 6 anos, foi arrastado por sete quilômetros,
preso à porta do carro de sua mãe que fora roubado por assaltantes,
deixando pedaços de seu crânio e encéfalo espalhados pelo caminho. Em
12 de agosto de 2011, a juíza Patricia Acioly foi metralhada com 21
tiros na porta de sua casa em Niterói. Há ainda o caso do jornalista
Tim Lopes, queimado vivo por traficantes no que eles chamam de
“microondas”, as vítimas do “Maníaco do Parque”, estupradas e
assassinadas em seguida, ou o de Suzane von Richthofen, que ajudou o
namorado e o irmão deste a assassinar os próprios pais e depois foi a
uma festa.
Ora, será que ninguém percebe a diferença entre um larápio contumaz e
um psicopata assassino, que tira vidas humanas da forma mais cruel que
se possa imaginar como nos casos acima citados? Vocês se chocam mais
com a dinheirama de vem escorrendo dos cofres públicos direto para o
caixa 2 de partidos políticos, parlamentares, empreiteiras e
associações fantasma, do que com os bárbaros crimes que se cometem
contra vidas humanas? A defesa de que a corrupção é um crime hediondo
porque do dinheiro roubado que poderia ser utilizado na compra de
remédios, ou merenda escolar pode causar a morte de pessoas inocentes,
obedece à mesma lógica sinistra dos desarmamentistas. Ao contrário dos
desarmamentistas, sabemos que uma arma de per si não mata, mas sim
quem a utiliza de forma inadequada. E é com esta lógica que afirmam -
alguns até sem perceber o ardil que o argumento esconde - que o
dinheiro fruto da corrupção pode provocar mortes, na medida em que
deixa de servir às necessidades da população.
Utilizando o mesmo objeto de comparação, a corrupção, pergunto: o
crime do qual foi acusado o ex-presidente Fernando Collor, pode ser
posto no mesmo patamar dos escândalos do “mensalão”? Ambos são crimes
de corrupção, no entanto, e apesar do exagerado impeachment de Collor,
pode-se afirmar que o seu crime foi "hediondo", que causou estupor e
clamou aos céus por justiça?
O que esta proposta pretende é banalizar os crimes hediondos de fato,
pois na lógica mais elementar, praticada por uma pessoa em seu
perfeito juízo, roubar o erário público não pode jamais ter o mesmo
valor dos crimes de estupro seguido de morte, da pedofilia, do aborto,
do tráfico de drogas, da execução sumária, dos justiçamentos, dos
crimes onde a maldade mais subterrânea é seu motor principal,
geralmente praticado por sociopatas e psicopatas. E quem está propondo
esta excrescência sabe, perfeitamente bem, que esta medida visa
tão-somente a obedecer à engenharia social, modificando o
comportamento das pessoas até o ponto em que a sociedade vá as ruas
bradar pelo fim da corrupção e se cale e ache natural que morram mais
brasileiros nas mãos de narco-terroristas do que nas guerras do
Oriente Médio.
Não. Corrupção não é um crime hediondo. Hediondo é algo mais do que
“nojento, dá asco”. É algo que clama aos céus desde as entranhas em
defesa da vida humana, antes de qualquer outra coisa. A corrupção deve
ser combatida e reprimida mas já é um crime previsto em lei - o de
roubo -, que poderia ser solucionado caso não houvesse no país leis
“que pegam” e leis “que não pegam”, e se no Brasil não houvesse iguais
que são “mais iguais que os outros”. Simples assim.
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