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Contos-->CHEIRO DE COLA -- 09/11/2002 - 18:20 (Paulo Vogel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

"Ei, moço! Cadê Deus? Prá lá? Dobra à direita? Depois à esquerda? Obrigado, moço. Foi assim que cheguei lá, Seu Juiz. Quando minha mãe vivia, dizia sempre que Deus ajudava os pobre. "Reza, meu filho, que Deus ajuda". Quando ficou doente, magrinha, tossia, tossia, eu pedi pra Deus curar minha mãezinha. Rezei, rezei, mas ela morreu assim mesmo. Eu chorei pra chuchu, Seu Juiz. Fiquei sozinho, nunca tive mais ninguém, nem tia, nem madrinha, nem irmã. Pai? Pai nunca tive, não senhor. Só padrasto. Três. Tá vendo esse lanho aqui no braço, foi o Zé da Corda, tava bebão, me cintou legal! A fivela pegou bem aqui, só porque eu joguei terra nele porque eu tava com raiva dele porque ele tava gritando com a minha mãe. Oito anos e sozinho. Tomaram o barraco e botaram eu pra fora: "sai pivete escroto, aqui não tem lugar pra você". Fui pra rua. É tão bonita a cidade assim, madrugada, as luzes... o silêncio... um carro, outro carro, a sirene da patrulhinha, nem é comigo. Me escondo. Primeira noite drumi no banco da praça mas era muito frio. Depois, quando achei aquela igreja grandona, me achegava na dobra da parede, junto daquela portona, deitava e me cobria com papelão de caixa. O senhor já viu o tamanho daquela portona de madeira, Seu Juiz? Puta duma portona, é ou não é? Tinha outros meninos. Meninas também. Maria de Jesus. Vê se pode!? Maria de Jesus! Lá isso é nome de menina de rua? Bonita a Maria. Dez anos. Mais velha que eu. A gente dromia junto, abraçado, pra esquentar bem. Eu gostava. A fome passava. É, fome. Pensa o quê? Cumê onde? Mendigava dia inteiro. Levava até tapa na cara, "vai trabalhar moleque", oito anos, eu, trabalhar! Já se viu! deste tamanho... O Juiz acha que nós tinha de trabalhar? Desviei do assunto? Descurpa. Táva onde? A! Já sei. Tava na Igreja, abraçado, eu mais a Maria de Jesus. O Meu Jesus, foi assim que dei de chamar a Maria. Meu Jesus. É que ela tinha cara de menino não, é que foi ela que me potregeu dos maior. O Chico Pinto tinha inveja d eu mais ela. Queria drumi com ela também, mas a Maria nada que nada, só deixava eu. Eu e ela. Juntinhos. Sonhando em casar, ter filho, uma casa bonita. Sonhando, sonhando... e chorando. É, chorando. Toda noite. Baixinho pra ninguém ouvir. Se alguém batia na gente? Não, era só causa daquela dor no peito, apertada, que fazia a gente chorar. No princípio era dor de saudade. Saudade da mãe, do barraco, das brincadeiras de esconde-esconde nas vielas do morro. Depois a saudade acabou. Veio a raiva. Raiva dos bacana entrando na igreja, roupa bonita, olhando pra nós, olhar de desprezo...e empurrando: "sai pivete". Todo dia, nas oras da missa, era aquilo. As pessoas iam chegando, subindo as escadas, a gente corria e pedia, "dá um trocado moço? dá um trocado dona?". Quase ninguém dava. Eu pensava "gente ruim, num vê eu assim todo sujo, rasgado e magrela?". Viam nada. Quer dizer, fingiam que não. Entravam direto, assim, empinado, ó, bem desse jeito. Iam rezar pra Deus. Pedir o quê? se eles tem tudo! Eu é que num tenho nada! Nem casa, nem cama, nem mãe, nem irmão, nem comida, nem roupa, nem vó, nem brinquedo, nem bola, nem bala, nem lápis , nem caderno, nem escola. Pôrra nenhuma. Um dia veio o Dunga, lata na mão, dizendo "cheira, cheira, legal, mó barato". Cheirei. Funguei fortão, bem assim, ó. Na primeira dá nervoso. Logo custuma. Fiquei parecendo voando, meio mole, o senhor sabe como é? Sabe não? É bom, pode exprimentar. Aí eu peguei da lata e passei pra Maria "cheira Meu Jesus, é bom!", mas ela cheirou não. Nunca cheirou. Quer dizer, só dessa vez agora que o senhor já sabe. Aí eu cheirei mais. Era domingo. As velhotas chegando. De bolsa. Deu uma coragem que nunca havera dado. Gritei pro Meu Jesus: "corre comigo." Ela correu. Eu na frente. Mirei bem a velha. A bolsa da velha. E zapt! Inda bem que a alça rebentou. Corri, corri. Meu Jesus atrás dizia "para, para, que não vem ninguém". Mas eu não parava. O medo. A cola. A raiva. A fome. A dor. A tristeza. O choro. Saudade da mãe. Veio tudo junto. Só parei quando pensei que tava cuspindo o pulmão. Maria de Jesus sentou no mei-fi. Sentei junto. Virei a bolsa da velha de boca. Esparramou tudo. Lixo. Dinheiro nenhum. Só umas moeda. O senhor já comprou alguma coisa com moeda? Nem eu. Como diabo aquela velha véve só com moeda na bolsa? Tanta corrida pra nada. E nem podia voltar pra Igreja. Dormir onde? Comecei a chorar. Meu Jesus mandou eu calar a boca. Mulher já mandou o Juiz calar a boca? Já!? E o Juiz calou? Eu também. Ela disse: "Sei d um lugar. Vamo". Era um prédio em construção. Abandonado. Um monte de meninos, meninas. Ela foi na frente, perguntando "quem é o chefe?" Contou porque nós chegou ali, "só tinha moeda" e coisa e tal. Ele disse: "vocês ficam ali naquele canto, mas é só oje, amanhã fora!". Meu Jesus falou "tá bom" e eu também disse de pensamento. Naquela noite nós choramo muito, muito, mas bem bem baixinho que foi pra não dá mole. Dia seguinte a fome acordou a gente cedo. Saimo pra rua, tudo ainda fechado. Um botequim abriu. Ficamo na porta olhando o dono lavar o chão. Aproveitamo da água com sabão, lavamo perna, braço, rosto, barriga, costa - eu lavei a costa dela, ela lavou a minha. A gente ria. O portuga também. Aí ele preguntou assim: "As crianças queirem c’fé? É só espiraire a máquina isquentaire. O pão chega já já. Sentem cá ó! moleques". A gente sentou. Tomamo café. Com leite. Com açúcar. Com pão. Com manteiga. Ai, como tava bão Seu Juiz! "Que Deus lhe ajude", a gente disse. Por que é que a gente sempre diz isso, "Deus lhe ajude"? Pra dar felicidade!? E por que é que ninguém diz pra gente? Será que é por isso que nós não tem felicidade como todo mundo? É, talvez, né Seu Juiz? Fumo embora. As lojas foram abrindo. As pessoas andando pela calçada. Vi o ovo bonito na sacola da dona e lembrei que devia de tá perto da Páscoa. Perguntei pra Maria de Jesus quando é que ia de ser a Páscoa. "O Padre falou que é domingo". Que domingo? "Ora que domingo? Domingo, ora!". Você sabe é nada. "Vamo preguntá". Preguntá pra quem? se a gente nem começa falar eles já dizem "tem trocado não"? "Então a gente pregunta pro portuga do botequim". Preguntamo. E ele falou: "Então vocês não sabem? É domingo agora". Voltamos pra igreja. A turma falou que o Padre Dono da Igreja deu uns tapa no Zé Piche pra ele confessar, contar quem foi que roubou a bolsa da velha mas ele não disse nada. De noite, Meu Jesus contou pra turma que ia ser Páscoa no domingo. Todo mundo ficou alegre. Alegre de quê? Alegre, Seu Juiz, porque Páscoa é coisa de criança, tem chocolate as pampa, tem aqueles ovão lindão. Eu gosto pra burro de chocolate! E o Juiz, gosta? É fissurado que nem eu é!? Mas daí o Cabeça preguntou assim: "e quem é que vai dar ovo pra gente, pôrra?". Ficou tudo calado. E foi saindo, cada um pro seu canto de parede, triste, porque todo mundo sabia que ninguém ia dar ovo de Páscoa pra gente porque ninguém ia lembrar nem que nós existia. Aí o Cabeça deu aquela idéia da galera ir lá pro altar na missa do domingo de Páscoa. Ele falou assim: "A gente lá, eles não tem jeito de não vê nós. Aí eles vão saber que a gente existe". Eu ri. Achei engraçado aquela coisa dum bando de pivete, tudo negrim, mulatim, sujim, lá naquele lugar cheio de Santo, de ouro, bem na frente do Deus, do Padre besta e daqueles ricão com as barriga cheia de chocolate. O Meu Jesus também riu. O Zito é que deu de arregá: "olha, sei não, o Padre Filho da Puta pega a gente, dá porrada, entrega nós tudo pros ôme, mais porrada, depois FEBEM". "Ele num tem cu", disse a Maria, bem alto e fazendo assim ó, com os dedo. Aí o Zito falou: "Tá bão, eu topo, mas tem que ser todo mundo doidão". Concordamo. Mas precisava dinheiro pra comprar cola. Pedimo pra caramba. Eu dei mais de vinte golpe do chorão. Sabe qual é Seu Juiz? É aquele de ficar sentado na calçada, chorando e com uma caixa vazia na mão. As mulher passam e preguntam "Tá chorando por que menino?". Aí eu digo que os maior me roubou os chicletes que tava vendendo, que eu vou ter que pagar, que não tenho dinheiro... Aí elas ficam com pena, aí ... Tá bom juiz, eu vorto pro assunto. Juntamo todo o dinheiro e demo tudo pro Cabeça. Deu pra ele arrumar 3 latas. Dava pra mais, ele é que ficou com o resto do dinheiro mas ninguém foi besta de reclamar, nem eu, que ele é mais forte. No domingo, perto da ora da missa, foi uma cheiração danada, Seu Juiz. Aí, o Cabeça na frente, nós fumo entrando na Igreja, degavar, bem degavarinho, pelos lado, assim, o senhor sabe né Juiz? Fumo chegando, fumo subindo os degrau do altar, o Padre Dono da Igreja lá falando, falando, de Cristo, de salvar o mundo, de dar pros pobres. Dar pros pobres... pois sim! Só se for porrada. E aquele Padre Dono da Igreja não parava de falar. Aí o Cabeça foi até o último degrau, chegou bem perto daquela mesa grande onde fica aquele copão bonito de ouro, arriou o calção e mostrou a bunda pra todo mundo. O Padre nem olhou. Teve umas mulher que fez ó! meu Deus! mas ninguém se mexeu não. Aí me deu aquela vontade de ficar nu. Tirei a camisa, depois o calção. Segurei meu pinto e mostrei pra todo mundo, pensando assim, aqui pra vocês ó! Depois procurei Meu Jesus. Tava deitada no chão, rindo às pampa, aquele rostinho tão bonito que eu gosto, aí me deu aquela vontade e me abaixei, cheguei bem perto e beijei ela na boca. Meu Jesus deixou. Daí me pegaram, me puxaram, me bateram, me arrastaram, me xingaram, me cuspiram, me levaram. Eu mais os outros. Ontem nós vimo na televisão. Sacanagem, Seu Juiz, não mostraram a cara da gente. Eu queria que todo mundo visse nós na televisão. Mas eles botaram aqueles quadradinhos, o senhor sabe como é!? bem em cima da nossa cara. Como é que vão saber que era eu? Agora quando eu contar ninguém vai acreditar! O senhor acredita, não é Seu Juiz?"
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