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Contos-->O AUTOR -- 09/11/2002 - 18:39 (Paulo Vogel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Em se acreditando na manchete do jornal, a guerra estava por um futuro do pretérito composto: "HITLER TERIA SIDO PRESO PELOS GENERAIS!" A notícia, portanto, só dependia de confirmação. Era manhã do dia 10 de maio de 1944 quando o Autor levou a primeira porrada da vida - um tapa na bunda dado pela parteira - e experimentou a primeira dor e odiou, muito antes que descobrisse o amor. Depois as coisas pioraram. A começar por suas origens: não nascera em Minas, como Sabino e Drumond, o que, para a carreira de escritor, significava a perda de um "handicap" importante. "Ao menos gaúcho, como Veríssimo, ou bahiano, como João Ubaldo e Jorge Amado!", lamuriou-se mais tarde. Mas... fazer o quê? Resignou-se. Nasceu fluminense, estado sem nenhuma tradição literária, e, só por despeito, virou flamenguista em 49. Da sacristia da igrejinha das Almas Penadas, em Tristão Câmara, cafundós de São José do Vale do Rio Preto, quinto e último distrito de Petrópolis, até o cemitério São João Batista, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 50 anos depois, foi uma saga solitária, trôpega e obstinada em busca da glória.
Depois do nascimento, nunca mais chorou. A primeira lágrima também foi a última, deu-se conta, dias depois, a mãe, Dona Aurélia. Desde os primeiros poucos em que abria os olhos, mantinha-os além, em algum ponto inalcansável, já perdido, então, em devaneios imaginativos. Engatinhou depois de todos e para que andasse, muito se fez, “culpa da mãe que não bota o menino pra pegar sol”, feria a vizinha. Um cado de conversas preocupadas dos pais, "fala baixo, Holanda!", consultas médicas, remédios, simpatias, cartomante, especialista em Petrópolis, curandeiro, aveia, óleo de fígado de bacalhau, leite de cabra, exercícios, muita verdura e vitaminas. Mas nada. Até que num domingo, lá pelos seus 6 anos e caquerada, levantou, e deixando os da casa de boca aberta, saiu, displicente, dizendo: "vou jogar bola, volto pro almoço".
E não voltou. Mandaram procurar. Assuntaram e escarafuncharam por tudo os 3 soldados de São José, 5 omens da Fazenda Grota do Adeus, 2 serventes da COMLIMUPRETO, Companhia de Limpeza Urbana de São José do Rio Preto, e mais um punhado de gente, vizinhos prestimosos, conhecidos apiedados das lágrimas de dona Aurelinha, e toda a garotada do lugar que se divertia e afastava a rotina masmorrenta correndo atrás do Aleijadinho. Mas ninguém encontrou escafedido nem nada, afora os perdidos de há muito: a bola de couro do Gomalina, apelido do carioquinha que passou as últimas férias na Fazenda Esterco de Cobra; a carcaça do Leônidas, o mais famoso vira-lata do lugarejo, "desaparecido desde trasantontem", como informou o Esquerdinha, filho da lavadeira; uma enxada, 8 restos de pipa, 4 bolas de gude, uma tampinha de Coca Cola enferrujada e premiada - do concurso do ano anterior - e muitos outros achados, quebrados ou estragados ou enferrujados, que pra nada mais averiam de servir. Do Autor, nem sombra, nem cheiro, nem pegada no barro da estrada. Passados 3 dias, esmorecidos e desesperançados, entregaram a Deus e deram o causo por encerrado. Na Delegacia, ficou na folha 7, do livro de ocorrências, o registro: "Deu de sumir, nesta manhã, e já são 8 oras da noite, o menino "Uinstão Chorchil da Silva, filho do Seu Holanda da Quitanda, pardo, digo, branco como bem me acorrége o pai, trajando carça curta de brim amarela e camisa do Mengão, descarço, e sem ter escovado os dentes e sem café com bolo, como reclama sua chorosa mãe, e que não voltou pro armoço, conforme o prometido. Sendo menino bediente, de família dereita e conhecida na região, exclusive com pobrema de pernas, como a gente todos sabemo, o Delegado achou tudo muito estranho e fez questã de botar todo mundo no encarço do desmiolado e ainda telegrafou pra sede do município pedindo ajuda do Perfeito". Que nunca veio.
Enquanto Tristão Câmara se alvoroçava, o "aleijadinho" de mentira ia longe. Embrenhado pela trilha garantida de dar na Posse, ia á quase um dia de vantagem, o que, mesmo prum molecote, era "um vantajão". Avia se guiado pelo ouvir-falar de uma "trilha velha da Posse", lá na quitanda do pai, sentado na cadeira de balanço, perto da porta, donde via o pra-lá-e-pra-cá das gentes, sonhando com aquele dia da partida. Subiu, desceu, ziguezagueou, contornou, teve medo, pulou, atravessou pontilhão, assustou com a cobra, teve medo, quase chorou, correu, correu e correu. Cansou. Foi indo o dia e nada do destino chegar. Comeu dos frutos que encontrou e deitou no capim. Dormiu com a lua e espreguiçou com o sol. De novo doía o estombo, cheio de fome. Lá pra mei-dia avistou a cruz da igreja no alto do morro. Tão perto do futuro e já tão longe do passado.
Andando, o fugido mais fugiu e mais cresceu. Um pedaço da infância viveu por ali mesmo, entre a Posse e Areal. Vivendo de fazer mandado, de sobra de feira, de água de bica, e sempre meio escondido. Um dia pulou no trem que vinha de Três Rios, mas foi enxotado na estação de Itaipava. Ali ficou pra mais de 5 anos. Arranjou morada na Granja Brasil. Em troca, ajudava Seu Félix, o administrador, nos cuidados com os patos, gansos e cisnes que viviam no lago. Lá, o Autor aprendeu a nadar, a cavalgar, e aprimorou a fala e a escrita na escolinha de Bonsucesso. Aprendeu tudo sobre numismática, a paixão do velho Félix, tema central da trama de "O outro lado da moeda", romance policial que escreveria anos mais tarde. Nas oras de descanso, acocorava-se junto à casa dos patos e lia em voz alta para o Alfredo, o cágado, as istórias de Pedrinho e Narizinho.
Um dia o velho Félix enrouqueceu gritando por toda a Granja o nome do sumido: "Uistão, Uistão! Onde se meteu, seu moleque? Ô Uistão!" Ao cair da tarde, o velho arriou o corpo cansado na cadeira da cozinha. Foi a mulher que deu cabo na apreensão: "O trem apitou, meu velho. Ele se foi". E lhe serviu a sopa de legumes passada na peneira, como só ela sabia fazer.
No trem, o Autor sentia o coração batendo forte e nas pernas uma fraqueza danada, mas no coração uma coragem que só vendo! Olhar no futuro bem ali junto do orizonte, o Autor nem viu passar pela janela as faixas e cartazes com duas letras bem grandes: o J e o K. Mas quando a locomotiva apitava e ia avançando sobre as casas, ele se apaixonou pela cidade e decidiu ficar. No Alto da Serra. Por mais de 7 anos, morando com o Padre Klaus, na Igreja de Santo Antônio.
Entre o Liceu e a Biblioteca Municipal, o Autor fez o ginásio, leu Manuel Bandeira e o Pequeno Príncipe, amou a primeira mulher, ensaiou os primeiros versos, embebedou-se uma segunda vez, fumou o primeiro baseado, não escreveu o primeiro artigo no jornalzinho do grêmio, mas se banhou na água barrenta da enchente de verão, tomou muita porrada, quebrou um braço e uma perna, embebedou-se muitas outras vezes, repetiu o terceiro ano, foi pro quarto com a última das putas, não ganhou nenhum prêmio literário, só uma medalha de prata na ponta esquerda do time da escola nos jogos Intercolegiais e quase perdeu a vida num acidente de carro numa noite de sábado, de embalos e de pegas. Do Padre Klaus, ficou a Bíblia, Thomas Mann, Marx, Engels, Platão, Teilhard de Chardin, Santo Agostinho, Herman Hesse, José de Alencar, Machado de Assis, a vestimenta de sacristão - surrupiada como lembrança -, a melodia sacra, o som do órgão, os agudos das beatas, muitos cascudos e beliscões e uma saudade que quase o fez chorar quando partiu no último trem pra Mauá.
Chegou ao Rio aos 18 anos com um só intento: ser um grande escritor. E só lembrou do Exército quando em 64, a PE, bem no meio da confusão, pediu Carteira de Trabalho e Certificado de Reservista. Mas antes disso, trabalhou de faxineiro e ajudante de cozinha num restaurante da rua do Acre. Naquele mesmo ano, andou metido numas arruaças e, depois de uns cachações, passou, mal-dormida, uma noite na Delegacia da Praça Mauá. Pegou uma dúzia de gonorréias, só naqueles dois primeiros anos. Nunca manteve correspondência com quem quer que fosse, como tantos outros escritores o fizeram. Até 67, mal conhecia de fotografia seus escritores prediletos: Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa e Mário de Andrade. Mas naquele ano, lendo os classificados do Diário de Notícias, encontrou a porta para o seu sonho: "Precisa-se de entregador", do próprio jornal. Foi no endereço, dia e ora marcados, falou "tô precisado" e outros termos do linguajar inculto - para dissimular seus intentos - e foi contratado. Não conheceu nenhum escritor e, durante quase 2 anos, fez bolhas nos pés de tanto andar pelos subúrbios do Rio de Janeiro.
Em 69, conseqüência de uma pequena confusão de “identidade”, ficou preso no quartel da Barão de Mesquita mais de uma semana, até conseguir explicar que isso não era aquilo e ser solto com as seguintes seqüelas: um zumbido no ouvido direito que pra sumir demorou, ó!, põe tempo nisso!; o olho esquerdo sem serventia de tão inchado; 2 costelas quebradas; tornozelos e pulsos em carne viva; e um puta medo de mijar. Foi direto para o Hospital Miguel Couto. Dois meses de estaleiro e estava curado e desempregado. Abandono de emprego. Tudo explicado, foi readmitido, festejado, invejado, afamado, tudo por causa da manchete da edição de domingo do Diário de Notícias: “A SAGA DE NOSSO HERÓI NOS PORÕES DA REVOLUÇÃO.”


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