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Ensaios-->Big Brother Brasil -- 29/01/2003 - 02:27 (marcos fábio belo matos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sorria: você está sendo filmado
“As câmeras de vigilância se distribuem como uma rede sobre a paisagem social, ocupando todos os espaços e os submetendo ao seu poder de invasão branca, à sua penetração invisível e indolor.” A afirmação é do professor Arlindo Machado (1991, p.92) e soa como uma fatalidade. De fato, é cada vez maior, na geografia dos cenários urbanos, a presença dos circuitos de observação. É quase impossível fugir deles: estão nas portarias dos prédios, nos elevadores, nas lojas e supermercados, nos bancos, nas salas de recepção de empresas, nos shoppings, nos museus e centros culturais diversos, em algumas residências mais sofisticadas. Podem ainda compor esse grupo de camêras-vigia os chamados cinegrafistas-amadores, sempre prontos a registrar o inesperado; as câmeras ocultas dos repórteres cada vez mais utilizadas como artifício de flagar o crime e oferecer a verdade ao telespectador; as inúmeras câmeras escondidas dos programas que apresentam quadros tipo pegadinha; as câmeras domésticas que filmam cassetadas.
Essas câmeras vasculham tudo e todos, ininterruptamente. São o que Paul Virílio (1994, p.86) chama de “...nova industrialização da visão, a instalação de um verdadeiro mercado da percepção sintética.” Impossível não as associar, na sua capacidade de vigilância, perscrutação e manutenção da ordem, ao panóptico foucaultiano. E é Machado quem faz este exercício:
“O que são os modernos sistemas de vigilância senão a atualização e a universalização do Panóptico? (...) O Panóptico pode então ser compreendido como um modelo universal de máquina disciplinar, um dispositivo fechado destinado a definir as relações de poder na vida cotidiana e a preservar as prerrogativas da lei e da ordem.” (1991, p.95)

Um outro aspecto desta televigilância é a transformação que se efetiva com a imagem captada pelas câmeras-vigia. Esses aparelhos, ao captarem imagens que fogem aos procedimentos normais e sociáveis das pessoas, transformam-nas em elementos de espetáculo, seja para apreciação de quem as vê isoladamente (os guardas ou operadores de TV em circuito fechado, por exemplo) seja para o entretenimento e deleite de audiências massivas. É cada vez mais comum aparecerem na programação das emissoras de TV, em programas tão distintos como um jornal ou um show de domingo, imagens de elevadores, bancos, lojas, repartições públicas, que mostram flagrantes de roubos, assassinatos, cenas eróticas, tropeços de autoridades, confissões normalmente incofessáveis, pessoas em situações constrangedoras etc.
Toda essa filmagem implícita causa uma espécie de síndrome de Truman generalizada. Afinal, a naturalização das imagens vem do fato de que ninguém sabe que está sendo filmado. E só por isso tais imagens ganham um efeito de singularidade e, ato contínuo, uma dimensão de espetáculo comercialmente explorável.
A espetacularização da privacidade na TV
A utilização das imagens naturais não é nenhuma novidade, em se tratando de espetáculo visual. Lembremo-nos de que, nos primórdios do cinema, as primeiras imagens que faziam o sucesso das exibições nos cafés, salões, vaudevilles e museus de curiosidades eram naturais (paisagens, aproximação de trens, pessoas passeando etc). Paul Virílio (1994) registra que, nos períodos da 1ª e 2ª guerras mundiais, alguns cinegrafistas eram destacados para o front com o fim de colher cenas reais, que depois eram usadas em documentários ou mesmo inseridas em filmes, como Roma, Cidade Aberta, de Rosselini. Virílio denomina esta forma de captar imagens de candide caméra. Outra demonstração de mesmo teor é o movimento documentarista-realista do cinema e da fotografia (fotos sem flashes, tomadas sem poses, no cenário em que os movimentos humanos acontecem).
Mesmo na televisão, já há exemplos anteriores. Machado (1991) apresenta os exemplos dos programas Candide Camera (1948) e AnAmerican Family (1972). O primeiro era uma espécie de pegadinha da primeira idade da TV; o segundo, o registro da vida de uma família em suas atividades habituais.
Entre as nossas emissoras de TV, apesar de sempre Ter havido quadros com tais características, parece-nos que, ultimamente, avolumou-se o número deles, disseminando-se também pela maioria das redes. Em geral, eles entram na composição dos programas, como atração individualizada. Numa tentativa de enumeração, podemos citar: as pegadinhas presentes no Domingão do Faustão, da Rede Globo, cujo espaço foi aumentado, passando agora a abrir o programa e permanecendo em dois blocos e enriquecidas com o quadro do Enrolador e com a presença de astros globais ou personalidades afins; as Pegadinhas do Malandro, no programa do Sérgio Malandro, da CNT; as pegadinhas do Programa Raul Gil, da Rede Record; as pegadinhas do Programa Silvio Santos, do SBT; no Programa H, apresentado por Luciano Huck, há um quadro em que ele se disfarça e vive situações com pessoas que não o identificam.
Há também as formas variantes, que utilizam os recursos da câmera escondida, invasão da casa das pessoas, intimidade. Como exemplo, citamos: o Programa do Gugu, do SBT, exibe os quadros ‘Gugu na minha casa’ e ‘ET e Rodolfo acordam...; o infantil Teletubies, que vai ao ar no programa da Angélica, na Globo, apresenta situações em que crianças comuns fazem coisas comuns (brincar de roda, tomar lanche, visitar zoológico, tomar banho de piscina etc); o programa Sílvia Popovic, da Bandeirantes, debate, ao vivo, a vida de pessoas que relatam seus dramas e experiências; os programas Ratinho Livre e Leão Livre, de igual formato, expõem a vida e as mazelas de pessoas comuns, que discutem e às vezes se agridem fisicamente; o Planeta Xuxa, da Globo, possui um quadro denominado Intimidade, em que artistas ou pessoas famosas se permitem devassar com perguntas quase sempre indiscretas da apresentadora; o Vídeo Show, também da Globo, possui os quadros Lar Doce Lar e Álbum de Família, em que artistas contam e mostram sua casa e sua vida; por fim, recentemente no programa Domingo Legal, o apresentador Gugu Liberato, disfarçado e com uma câmera escondida, almoçou num abrigo de mendigos e expôs histórias de vida e sofrimento, dando boa audiência e repetido no domingo procedente.
Há que se destacar, ainda, a grande presença de reportagens, nos programas jornalísticos, que se valem de imagens de câmeras de circuito de TV ou dos recursos das câmeras escondidas, microcâmeras, flagrantes de cinegrafistas amadores, com destaque para o Fantástico, da Rede Globo, que até criou um quadro, tempos atrás, intitulado Repórter-Verdade, em que um repórter se disfarçava e, com uma câmera escondida, flagrava as mais diversas situações.
Dentro desse quadro de supervalorização da imagem natural – entendida como aquela que, aparentemente, foge aos parâmetros da produção de TV: ensaio, preparação prévia, escolha de atores, seleção movimentos de câmera, iluminação, edição – cabe tentar levantar algumas respostas para o porquê da sua disseminação pela TV e, mais ainda, da sua audiência e preferência por parte do telespectador – partindo-se do princípio de que a audiência constrói a programação de uma emissora.
Algumas explicações podem ser aventadas nesse percurso explicativo. Em primeiro lugar, cabe identificar, como o faz Guy Debord (1997), a nossa sociedade como a do espetáculo, que é potencializado pela mídia em geral e se constitui o fim mesmo da sociedade capitalista, cujo sistema de produção aliena o trabalho, coisifica a produção e espetaculariza todas as relações sociais.
Outro aspecto levantado é o da publicização do espaço privado pelo esgotamento das possibilidades de interesse que havia no espaço público. Steinberger (1998), analisando tal dualidade, vai afirmar que “A vida privada é o último reduto de autenticidade, espontaneidade, verdade. Em oposição à farsa diária a que assistimos no espaço da vida pública...” . E adiante:
[a mídia tem uma certa] “...avidez pelo pecado, pelo que a sociedade concebe como infração das regras. A pornografia e o mau gosto também entram nesse rol, o corpo da mulher é virado pelo avesso tentando mostrar um ângulo supostamente mais íntimo, mais pecaminoso e, portanto, mais erótico. Uma forma de explicar essa avidez sobre as formas da vida privada é exatamente associando ao que os psicanalistas chamariam de “uma libido mal resolvida”. Parece que o espaço público se esgotou em sua condição de satisfazer uma libido social.”

Desta forma, adequando os vaticínios de Debord e Steinberger, chega-se à conclusão de que a televisão espetaculariza o privado, explora a intimidade e a vida comum das pessoas por causa da abosluta fragilidade de o espaço público gerar fatos para o interesse das massas. Somos levados a crer, no entanto, que haja fatores mais complexos.
Sodré (1973) analisando as relações entre mídia e cultura brasileira, no ponto em que se debruça sobre o produto televisivo aplica a certos gêneros de programas a designação de grotescos, definindo o termo:
“O grotesco parece ser, até o momento, a categoria estética mais apropriada para a apreensão desse ethos escatológico da cultura de massa nacional. Realmente, o fabuloso, o aberrante, o macabro, o demente – enfim, tudo o que à primeira vista se localiza numa ordem inacessível à “normalidade” humana – encaixam-se na estrutura do grotesco. (...) Em outros termos, o grotesco é uma aberração de estrutura ou de contexto. (...) O contexto pode ser estendido à esfera da cultura de massa: o miserável, o estropiado, são grotescos em face da sofisticação da sociedade de consumo, especialmente quando são apresentados como espetáculo. A “estranheza” que caracteriza o grotesco coloca-o perto do cômico ou do caricatural, mas também do kitsch.” ( p.38-9)
Desta forma, o grotesco pode abarcar todos os programas que se utilizam dos princípios da naturalização da imagem, pelo fato de exibirem eles, quase sempre, uma disfunção em termos de comportamento, de ações, de reações dos seus protagonistas (pessoas geralmente comuns, atores incidentais do espetáculo de Tv). Quando se mostra uma cena de violência flagrada por um circuito de supermercado, por exemplo, não é o caráter informativo que se busca explicitar (pois, quase sempre, o texto pode dar conta do fato), mas sim o seu aspecto de imagem surpreendente, flagrante, violência real na tela. Da mesma forma, todas as variações das famosas pegadinhas têm o seu sucesso garantido não tanto pelo humor, mas pelo constrangimento, pelo espanto, pelas reações inesperadas (mas reais) desencadeadas pela situação a que as pessoas se submetem, quase sempre involuntariamente (o quase sempre é cabível pelo fato de se saber que, em muitos casos, elas não passam de arranjos da produção). Por esses aspectos, não vemos diferença, em essência, em classificar tanto uma videocassetada quanto uma imagem de deformação humana como grotescas. Ambas se alimentam do mesmo princípio: o interesse pelo viés do escatológico.
Poder-se-ia ainda alargar o campo das explicações afirmando, como Santo Agostinho nas suas Confissões, que o espírito humano sempre esteve inclinado para a curiosidade (curiositas), para o prazer experimentado pela visão do esdrúxulo, do incomum. Ou ainda que o sucesso da imagem verdadeira está associado ao conceito da redundância, segundo o qual o povo gosta do que sempre gostou – e as imagens cândidas ou flagrantes seriam nada mais que o espelho da vida; a vida apenas refletida no espelho de Narciso. Há que se registrar, entretanto, que essas são análises superficiais, que merecem um estudo mais consistente, o que não temos condições de efetivar aqui.
Conclusão
Não é a primeira vez que o cinema se apropria deste aspecto da televigilância e da onipresença da imagem no cotidiano urbano. Machado (1991) arrola alguns filmes que, direta ou indiretamente, se ocupam desta temática: O Amigo Americano, 1977, de Win Wenders; Os Mil Olhos do Dr. Mabuse, 1960, de Fritz Lang; Der Riese, de Michael Klier; Family Viewing, 1987, de Atam Egoyam; Paris, Texas, 1984, de Win Wenders; Sexo, Mentiras e Videotape, 1989, de Steven Soderberg. O Show de Truman é o último fruto dessa safra intermitente.
O cinema, neste caso, tem se comportado como caixa de ressonância de uma problemática cada vez mais presente na sociedade. No Show de Truman, há como que a exacerbação caricaturada do problema. O panoptismo foi hiperpotencializado, o capital figurou como uma vilania maniqueísta e a espetacularização teve uma abrangência fantástica. Guardadas, entretanto, as devidas proporções e limpando-se todos os excessos, não se pode devotar ao filme o caráter de megatendência, de antecipador do futuro. A julgar pela avalanche de câmeras cândidas que nos perseguem dia-a-dia e pela voracidade pragmática engrendrada por nossas emissoras de televisão (que compram, quase sempre, as autorizações para a liberação das pegadinhas, videocassetadas e flagrantes por um valor real agregado ao valor simbólico, que é o de seduzir pelo narcisismo inerente ao ser humano), Truman Burbank já vive entre nós na pele de um cidadão comum (serei eu? será você?).
Referências Bibliográficas
DINES, Alberto.O show da vida: fingimos que somos livres, os jornais fingem que são imparciais. http:// www2.uol.com.br/observatorio/circo/cir51198.htm
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997
MACHADO, Arlindo. Máquinas de vigiar. In: Rede Imaginária: televisão e democracia. Org. Adauto Novaes. Sâo Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1991.
MAGALHÃES, Laerte. O transitivo x o transitório no fantástico show de Truman. In: ECO/ publicação da pós-graduação da ECO/UFRJ – v.4, n.1 (1999) – Rio de Janeiro, 1999.
PEREIRA, Carlos Alberto Pereira, MIRANDA, Ricardo. Televisão. São Paulo: Brasiliense, 1983
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad. Lygya Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
STEINBERGER, Margarethe Barns.O show da vida: Truman e o espaço público mal resolvido. http:// www2.uol.com.br/observatorio/artigo/arto51198a.htm
SODRÉ, Muniz. A máquina de Narciso: televisão, indivíduo e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
________. A comunicação do grotesco. 3 ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1973.
VIRÍLIO, Paul. A máquina de visão. Trad. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.


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