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Ensaios-->A representação do Nordeste em Deus e o Diabo na Terrado Sol -- 29/01/2003 - 02:30 (marcos fábio belo matos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Representação do Nordeste em
‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’

Marcos Fábio Belo Matos*



Analisa o ciclo nordestino na cinematografia nacional, identificando suas produções mais importantes. Caracteriza a relação Cinema Novo-Nordeste. Apresenta os mais diversos elementos nordestinos presentes no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol.



1. INTRODUÇÃO
O Nordeste, mais especificamente o sertão, representa, senão o único, certamente o mais importante e profícuo ciclo temático da cinematografia brasileira.
Fruto de um processo que iniciou nos anos 50, com ‘O Canto do Mar’, de Alberto Cavalcante, o cinema nordestino (assim caracterizadas todas as produções que tinham como enfoque a região, não importando se feitas por filhos da terra ou sulistas e estrangeiros; se locadas na caatinga ou em paisagens imitativas e às vezes até cenográficas) ganhou muita evidência sobretudo a partir do Cinema Novo, quando houve um verdadeiro encantamento dos cineastas pela região, notadamente pelo que ela tinha de mais cruel e que a fazia tão singular. Entre seca, caatinga e cangaço, produziram-se dezenas de filmes, entre documentários, curtas e longas-metragens, alguns com proposta crítica e compromisso de denunciar o miserabilismo generalizado do sertão e do sertanejo, outros apenas explorando um tema que garantia boas histórias, nas quais se podiam mesclar aventura e exotismo.
Na sua busca da ‘descoberta’ do Brasil a partir dos seus elementos mais genuínos, da afirmação da nacionalidade da cultura e dos valores do povo brasileiro e ainda da exposição sem retoques da nossa realidade, cosonante com as suas idéias-manifesto, o Cinema Novo foi buscar na seca, na fome, na violência do cangaço e dos jagunços, na fé desmedida em beatos e santos, na crueldade das relações sociais e na espoliação do sertanejo os componentes para as produções da sua fase inicial, da qual são representantes fiéis filmes como ‘Vidas Secas’ e ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’.
Na verdade, o cinema, nessa ação de voltar-se ao Nordeste, é discípulo da Literatura, que bem antes já descobrira a força da singularidade da região e seus problemas. Já Euclides da Cunha, em ‘Os Sertões’, fizera um amplo e preciso registro do sertanejo e seu locus, do messianismo, da geografia com o ‘martírio secular da terra’, na cobertura da Campanha de Canudos. Também transpuseram o universo nordestino para as páginas dos livros José Lins do Rego (com os livros do ciclo da cana-de-açúcar), Guimarães Rosa (o sertão na sua mais notável naturalidade), Graciliano Ramos (a psicologia dos tipos miseráveis da seca) e tantos outros.
Este trabalho tem como meta resgatar os mais significativos elementos do Nordeste presentes na cinematografia brasileira, a partir da análise da sua observação em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, considerado um dos filmes-marco do ciclo nordestino e da história do cinema nacional.
Retrato de um Nordeste agrário, coronelista e miserável, ‘Deus e o Diabo’ é uma espécie de filme-colagem, painel de multi-elementos representativos, indo da feira (lugar de interação, comércio e cultura) ao cantador de cordel, misto de mídia e oráculo do sertão. É ainda (e principalmente) uma coletânea de personagens que fizeram a história e continuam a povoar o imaginário coletivo, como verdadeiras figuras mitificadas para o sertanejo. Passeiam pela tela as referências a Conselheiro, Beato Lourenço, Padre Cícero, Lampião, Antônio Silvino, Corisco, Maria Bonita, Dadá, Tenente José Rufino, cego Aderaldo e muitas outras personagens menos evidentes da cultura da região, todos mesclados numa fábula-reportagem que se propõe um devir revolucionário. Como bem ratifica XAVIER (1983, p. 142) sobre o filme: “...nele, o sertão é o mundo.”
1. O NORDESTE NO CINEMA
‘O Canto do Mar’ pode ser considerado o primeiro filme que marca a evolução sistemática do interesse pelos temas nordestinos, num processo que desencadeou um verdadeiro ciclo de produções em série. Antes, o que havia eram produções esparsas, como ‘Filho sem Mãe’, produzido em Pernambuco na década de 20, no qual aparece a figura de um cangaceiro e o famoso ‘Lampião’, um documentário sobre Virgulino e seu bando, do árabe Abraão Benjamin, que os acompanhou durante seis meses e conseguiu captar as únicas imagens que se têm do mais famoso dos cangaceiros.
As produções sobre o Nordeste nos anos 50 e 60, com pequenas variações temáticas, mantêm uma certa uniformidade de enfoque. De acordo com LEAL (1982, p. 49), o cinema nordestino até o final dos anos 60
“...tem sido rural, voltado para o homem-do-campo em seu meio, em suas lutas, em seus êxodos forçados, nas diversas formas de suas religiões – e também mostrando suas festas, seu dia-a-dia de trabalho, seus códigos de vingança, seus amores e, mais de perto, sua alienação, seu abandono (...) Tem sido um cinema cru, buscando a realidade miserável do nordestino (...) No conjunto das obras, encontramos um Nordeste problematizado, um Nordeste em contrastes eternos, marcado pela seca, pelo crime, pela opressão, pelo misticismo, pelos coronéis, pelo homem que se perde totalmente, ao perder sua própria terra. O filme do Nordeste é a história do homem e da terra, ou seja, do homem-terra, da terra que o forma, que o bitola, que o molda...”
Essa opção pelo homem-terra é desencadeada pelo Cinema Novo que, no seu processo de afirmação, elegeu o Nordeste e a sua singularidade para materializar as suas concepções de cinema-manifesto, cinema-realismo e cinema-práxis, de autenticidade cultural e valorização dos aspectos nacionais, em franca contraposição aos modelos americanizados levados a termo por inúmeros cineastas brasileiros e estrangeiros, principalmente na chanchada, que era o que predominava nas salas de exibição nos anos 50.
2.1 Os principais filmes com temática nordestina
Grande parte da produção do cinema com temática nordestina foi realizada por cineastas sulistas ou estrangeiros. A produção com cores genuinamente locais vai se destacar, até os anos 70, através de nomes como Glauber Rocha, Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares e Roberto Pires.
De 1960 a 1969, fase em que se situa o filme-objeto deste trabalho, houve uma grande variedade de filmes com temática nordestina (para se ter uma idéia, somente sobre o tema ‘Cangaço’ foram 21 produções, constituindo uma espécie de subciclo, do qual se falará adiante). Dentre os que melhor conseguiram representar a temática (considerando-se aspectos como os seus elementos estéticos, a sua importância sociológica, as inovações empreendidas) podem-se destacar: Mandacaru Vermelho e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos; Menino de Engenho, de Walter Lima Jr, A Morte Comanda o Cangaço, de Carlos Coimbra; Os Fuzis, de Ruy Guerra; Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha; Terra sem Deus, de José Carlos Burle; Seara Vermelha, de Albert D’Avessa; Proezas de Satanás na Terra do Leva-e-Traz, de Paulo Gil Soares, A Compadecida, de George Jonas.
2.2 O ciclo do cangaço
Os filmes sobre o cangaço formam um ciclo à parte na cinematografia da região, dado o volume de produções sobre este tema. Tal caracterização é apresentada por Wills Leal, no livro O Nordeste no Cinema, que qualifica a maioria desses filmes como de fraca produção, baseados em interesses puramente comerciais e aproveitando-se do caráter de violência do fenômeno para realizar um arremedo dos filmes de western americanos. Para ele, os filmes de cangaço não acrescentam nada de positivo, em termos de estilo e concepção, para a cinematografia brasileira. LEAL (1982, p. 90) vai afirmar que eles :
“tem se constituído em cópia servil do filme de faroeste; seus realizadores partiram do filme-chanchada, do sub-teatro, do rádio menor, da pseudo-literatura, tentando na arte do cinema a aventura, em formas de puro vigarismo cultural, pois tinham em mira apenas o aspecto comercializável do fenômeno. Algumas dessas películas tiveram o caráter de super-produção e visavam o público exterior; outras, mais modestas, se perderam num infantilismo dramático, incidindo nos erros mais primários.”
Sobre a estrutura de enredo do filme de cangaço, registra que:
“O filme-de-cangaço tem sido a história da ação do latifúndio contra o vaqueiro-lavrador, o homem que, forçado pelas circunstâncias, se torna criminoso, passa a usar chapéu-meia-lua e, em bandos, sai pelo campo e vilas matando, roubando e tentando viver. O latifúndio é representando pela figura do coronel e sua força legal (a Polícia), ou sua própria força (seus cabras). Só em casos bastantes (sic) especiais é que o filme do ciclo enfoca o problema noutro prisma”
(LEAL, 1982, p. 90)
O iniciador e primeiro filme de grande porte deste ciclo foi ‘O Cangaceiro’, produzido por Lima Barreto em 1953, obra que serviu de paradigma para dezenas de outros filmes-espetáculo sobre o tema, nos quais predominavam os chavões e as soluções dramáticas do filme de faroeste americano, envoltas num ambiente de guerra e crueldade de um sertão tipificado.
LEAL (1982, p. 97) preocupou-se em esclarecer que alguns filmes, mesmo trazendo cangaceiros no seu enredo, não se enquadram no ciclo do cangaço, pelo fato de destoarem em termos de elementos fílmicos, de concepção e de mensagem cinematográfica. São eles: Vidas Secas, Menino de Engenho, Riacho de Sangue, Deus e o Diabo, Memória do Cangaço e Lampião – o filme pioneiro de Abraão Benjamin.
Tendo como principal enfoque a arte cinematográfica comercial, o cinema-retorno, o ciclo do cangaço não se preocupou com contribuições estéticas originais ou autênticas ao cinema, exigência tão em voga no país à época, uma vez que estávamos em terreno do Cinema Novo. Às vezes filmadas no sul do país, com cenografia adaptada por similaridades ou mesmo artificial, fitas como Três Cabras de Lampião, Entre o Amor e o Cangaço, A Lei do Sertão, O Lamparina (comédia com Mazzaropi), A Morte Comanda o Cangaço, Nordeste Sangrento podem ser consideradas fracas e, muitas delas, apelativas.
3. CINEMA NOVO E NORDESTE: A DESCOBERTA DO BRASIL
O Cinema Novo foi um movimento de descoberta do Brasil, uma vez que em nenhuma outra fase a produção cinematográfica havia se voltado, de maneira tão profícua e sistemática, para o registro do país e suas particularidades. Esta concentração de foco sobre o nacional não foi, todavia, apenas uma busca pelo espetáculo, pelo exótico (como se verificou no ciclo do cangaço). Fazia parte mesmo da concepção do movimento, que trazia como projeto a construção de uma nova linguagem para o cinema brasileiro, que fosse autoral e exprimisse uma civilização – o homem novo, a arte libertando as consciências, levando ao espectador as formas audiovisuais de raciocínio sobre a realidade e efetivando uma verdadeira ‘descolonização cultural’.
Como resultado dessa ação, o Brasil teve suas tradições populares e sua realidade social examinadas e espelhadas nas telas pelos filmes, que ainda se propunham a deixar uma mensagem de ação prática transformadora. GOMES, (1980, p. 96) vai sintetizar a temática desta época: “Tomado em conjunto, o Cinema Novo monta um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira e estádio de futebol.”
A relação Cinema Novo e Nordeste se deu, mais intensamente, na sua fase inicial. LEAL (1982, p. 14) afirma que
“... nos seus primeiros momentos, este movimeto só tinha vistas para o Nordeste, ou melhor, para a miséria do Nordeste. Os ex-críticos, os antigos líderes estudantis, os cineastas que tornaram o cinema brasileiro um produto cultural sério, tiveram como laboratório para suas idéias cinematográficas o Nordeste, o “miserabilismo” nordestino, suas grandes chagas (fome, miséria, seca)”.
Passada esta primeira fase, de afirmação de tendências e concepções, o Nordeste vai perder muito da sua evidência nas produções cinemanovistas. A partir da segunda metade dos anos 60, a temática passa a ser “o homem, o homem universal” (LEAL, 1982, p. 14).
Por fim, com a dissolução do movimento, em fins dos anos 60 (em 1969, Glauber escreve em O Pasquim o artigo “O cinema novo acabou”), os cineastas vão abandonar a temática nordestina. Duas causas que devem ser consideradas para tal postura são a instituição do AI-5, que acirrou o patrulhamento sobre filmes e, principalmente, sobre cineastas e o aparecimento da pornochanchada, modelo de filme erótico-escapista que, se ofendia a moral, não incomodava o sistema político vigente, porque desprovido de qualquer mensagem crítico-social.
3.1 Glauber Rocha: a pedagogia da transformação
Principal fomentador do Cinema Novo, Glauber Rocha conseguiu fazer, justamente de Deus e o Diabo, o filme-síntese das concepções estéticas e políticas do movimento: o cinema-manifesto; a arte revolucionária como instrumento de transformação das massas oprimidas; as inovações na filmagem, na montagem e na estrutura do filme; a valorização do elemento nacional como estratégia de afirmação de um cinema genuíno; o realismo como linguagem principal (o filme é uma espécie de fábula-reportagem sobre o universo sertanejo); a antropofagia como fundamentação cultural (o filme é um mosaico no qual podem ser descobertas contribuições de Eisenstein, Buñuel, Brecht...); a efetivação da estética da fome e da violência.
Deus e o Diabo é uma espécie de manifesto icônico de todos os conceitos de Glauber forjados nos anos 60. O filme faz um resgate da história de insurreições, de mitos, de misticismo do Nordeste rural dos anos 40, ao nível do simbólico. Na sua preocupação em ser conceitual, Glauber conseguiu construir com o filme uma verdadeira ‘pedagogia’, uma ‘pedagogia da violência’, cujo principal argumento é a libertação do povo oprimido e desprovido de tudo através da insurreição, da violência que lhe é inerente e que explode frente a uma situação-limite, a partir da sua capacidade de sonhar com uma realidade nova.
No seu processo de afirmação revolucionária, Glauber não condena a violência, não compactua com o discurso de exaltação e vitimização do sertanejo, comum ao pensamento dos anos 60. Antes, apresenta-a “...com tal radicalidade e força que ela passa a ser algo intolerável para o espectador.” (BENTES, 1997, p. 29). Efetivando o seu marxismo sádico e histérico, Glauber vai apresentar como sujeitos da libertação do sertanejo os seus próprios mitos (o beato, o cangaceiro, o jagunço), que diferem em legimitação e seguem uma trajetória determinada pelo crime e pelo sangue, condenados por um destino que lhes destrói a essência mas é fundamental ao processo histórico.
4. O NORDESTE DE ‘DEUS E O DIABO’
É LEAL (1982, p. 40) quem vai definir a apreensão que Glauber faz do Nordeste no filme:
“O Nordeste de DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL é o da fixação cultural colocada em imagem e como resultado da análise sociológica de sua estrutura social, econômica e política; da apreensão das várias formas de expressão do povo nordestino, de sua alma sonhadora, mística e mítica, romanceira; por fim, da ação própria, autoral, da visão do seu criador sobre o mundo das coisas que povoam a obra”.
O filme é uma colagem bastante original dos mais típicos elementos nordestinos, notadamente aqueles que tipificam o sertão. Desde o registro seco e crítico da ação de beatos, messias, cangaceiros, jagunços, coronéis até à materialização do universo de crenças e sonhos em que viviam imersos os desvalidos do sertão. É uma fábula, mas não é uma fábula com componentes ficcionais. Pelo contrário: a seca, a miséria, o cordel, a carcaça de boi, a violência como única lei que rege as relações sociais são concretas, não apenas artifícios de cenografia ou elementos de verossimilhança. Neste sentido, Deus e o Diabo é quase um documentário, uma reportagem sobre o sertão e o seu mundo.
Numa tentativa de enumeração dos principais aspectos do Nordeste encontrados no filme e a sua necessária contextualização, podem-se citar:
a) O messianismo: é um dos componentes da proposta conceitual do filme. Como se sabe, Glauber fez de Deus e o Diabo um libelo contra as crenças do sertanejo em mitos apenas pseudo-revolucionários, sem contudo os rechaçar e diminuir. Beato e cangaceiro, figuras mistificadas e mitificadas no inconsciente coletivo da região, não representam os legítimos agentes de um processo de libertação sociopolítica do Nordeste. É como afirma BERNADET (apud LEAL, 1982, p. 127):
“embora ela [a atitude do beato] expresse uma reação de revolta contra a situação nordestina por parte dos fanáticos, ela nos é apresentada como uma alienação, como uma atitude que desvia de uma revolta eficiente, ou seja, que desvia da grande guerra do sertão, que desvia da revolução...”
A presença do messianismo no filme resgata a história de vários beatos-messias que cortaram o sertão com suas propostas de libertação do povo através da fé, da abnegação, da perseverança na redenção, em especial a de Antônio Conselheiro, a quem os personagens fazem referencias diretas. Canudos, uma vila erigida em 1890 com o nome inicial de Belo Monte, incomodou as autoridades (Antônio era monarquista e falava contra a República, recentemente fundada) e, em conflito armado contra a tropas do Governo, resistiu a quatro expedições até ser dizimada, numa guerra que matou cerca de 50 mil pessoas.
Sebastião é uma espécie de Antônio Conselheiro negro: monarquista, apocalíptico e profético, o ‘irmão de Cristo’ que vai conduzir o povo a uma terra de libertação e fartura. A afirmação célebre de que ‘o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão’ é, na verdade, a paráfrase do que Antônio asseverava: ‘O sertão vai virar praia e a praia vai virar sertão’. O Monte Santo é uma analogia ao Belo Monte.
Na violência redentora que o ‘santo’ emprega aos seus seguidores, às prostitutas e, em especial, a Manuel (enviado de Deus para ser o seu soldado na guerra), na sua postura prepotente, na histeria alienada de beatos, que morrem sob as balas de Antônio das Mortes gritando que ‘o sol é de ouro’ e no seu caráter sanguinário residem as críticas de Glauber ao messianismo como força revolucionária. Toda a fragilidade daquele que vai ‘separar de novo o céu da terra’ é mostrada na sua morte: morre sem nenhuma reação, como que impotente ante o punhal de Rosa, o mesmo com o qual assassinara um inocente num ritual de exorcismo.
b) O Cangaço: segundo agente desqualificado da revolução necessária, o cangaceiro vai relatar a sua trajetória de morte e vingança, matando pobre para não o deixar morrer de fome e vingando Lampião nos agentes do governo. Como efetivador da violência, é mais valorizado no filme. Não é à toa que Corisco vem depois de Sebastião na vida de Manuel e Rosa. Na verdade, é uma demonstração do processo de evolução das crenças do sertanejo nos seus mitos originais. Entretanto, Corisco representa a ira alienada, o anarquismo perigoso que é preciso atacar e destruir, para limpar o terreno do sertão para a ‘grande guerra’.
O cangaço, fenômeno típico do sertão nordestino, perdurou no Nordeste do final do século XIX até a primeira metade do século XX - mais precisamente até 1940, quando foi morto Corisco - povoando os sonhos (meninos queriam ser cangaceiros; mulheres se ligavam aos homens dos bandos), alimentando os medos e criando um verdadeiro estilo de vida, baseada no nomadismo, no crimes e nos seus códigos internos. Bandos de cangaceiros cruzavam os estados, com cartucheiras de balas atravessadas no peito, embornais sob os braços, chapéus em forma de meia-lua, roupa e alpercatas de couro cru, essas muitas vezes usadas ao contrário para dissimular o rastro.
Glauber registra no filme o episódio da morte de Lampião, Maria Bonita e outros cangaceiros, na fazenda de Angicos. No seu transe, Corisco relembra a cena: a premonição, os medos, as dúvidas, as expectativas, o barulho da matadeira dos ‘macacos’ do governo.
c) O Cordel: Deus e o Diabo devota ao cordel uma importância quase singular no filme. É ele o elemento que orienta o enredo, apresentando os sujeitos da trama com o didatismo necessário ao entendimento do espectador e marcando também as fases do filme, as transformações na vida do sertanejo Manuel, de vaqueiro a beato, de beato a cangaceiro e de cangaceiro a novamente desvalido, correndo ao encontro dos seus sonhos e esperanças.
Todos os elementos do cordel estão no filme: a forma de cantar, a marcação da viola, o ritmo adequado aos fatos, a força do destino (Sebastião e Corisco entram na vida de Manuel e Rosa pelo sim pelo não), o duelo (ponto alto das histórias) entre Antônio e Corisco, a presença física do cego cantador (tipo mais relacionado ao cordel nas feiras e vilas), na pessoa de Cego Júlio (narrador-cantador-personagem), metáfora de Cego Aderaldo, Firmino Teixeira, Antônio Teodoro dos Santos, José Pacheco e tantos outros cantadores.
O discurso do Beato no Monte assemelha-se muito aos trechos do cordel Viagem a São Saruê, do poeta popular Manuel Camilo que, num trecho da poesia, diz: “Lá eu vi rios de leite / barreiras de carne assada / lagoa de mel de abelha / atoleiros de coalhadas / açude de vinho quinado / monte de carne assada.” (CAMILO apud LEAL, 1982, p. 42)
O cordel foi utilizado também enquanto elemento de linguagem cinematográfica em filmes como Roda e Outras Estórias (curta-metragem de Sérgio Muniz), Proezas do Satanás na Terra do Leva-e-Traz (Paulo Gil Soares), Vitalino/Lampião e Viramundo (ambos Geraldo Sarno, o primeiro documentário).
d) O coronelismo: O regime político a que o filme nos remete é o Coronelismo da primeira metade do século, quando se podia comparar a divisão da região à das capitanias hereditárias e os coronéis a seus donatários. O coronel tinha poder absoluto sobre os seus domínios e, para defender seus interesses, não se escusava de usar a força da bala, dos jagunços e até de bandos de cangaceiros que matavam e vingavam em favor de um e de outro. No filme, é o Coronel Moraes e protótipo deste tipo de poder instituído: autoritarismo, legitimidade a qualquer custo, prepotência e ambição.
e) O sertanejo: imagem-documento do homem do sertão, Manuel é a análise de Glauber sobre as condições de vida e o inconsciente de homens e mulheres, filhos da seca e da miséria que assola a região.
Manuel é desprovido de tudo (a única coisa que lhe pertence, como ele mesmo assim afirma, é o seu destino). Na sua trajetória em busca das suas esperanças, passa de vaqueiro-meeiro a beato, de beato a cangaceiro e de cangaceiro a simples sertanejo. Em todo o seu percurso, Manuel não perde a fé, e a sua corrida ao mar (que não alcança) é a representação do não-abandono dos seus sonhos – o sertão que há de virar mar (sem já o intermédio de Sebastião e de Corisco, deslegitimados no seu transcurso histórico).
A capacidade de se revoltar, de liberar uma ira latente que Manuel demonstra em cada fase do filme (matando o coronel, massacrando prostitutas ou capando e esfolando a mando de Corisco) é um dos traços que muitos identificam como genuínos do sertanejo. GARCIA (1984, p.14) afirma que a rebeldia é um “traço marcante na personalidade do nordestino...”. VITTA (1983, p. 85) vai dizer que “...a coragem e a valentia [eram] as virtudes mais valorizadas no mundo sertanejo.” E XAVIER (1983, p. 89) reconhece a capacidade de revolta sertanejo, todavia prefere relacioná-la às suas condições de vida miserável:
“Diante da injustiça, da realidade que solicita a violência como condição de humanidade, a insurreição está sempre no horizonte. Não importa se consciente, passivo ou mergulhado na franca alienação, o oprimido traz uma disponibilidade para a revolta, mesmo que subterrânea.”
Rosa, ao contrário de Manuel, assume uma outra postura, desvinculada do onirismo do marido. Ela, assim como também Dadá, companheira de Corisco (cangaceiro de duas cabeças, transe constante), assume o papel da racionalidade que falta, da consciência ambulante. Rosa não participa da utopia de Manuel, apenas a acompanha, convicta de que a vida é definida pelas suas próprias forças. É talvez a homenagem de Glauber à consciência racionalista e à capacidade de perseveraça da mulher.
f) A seca: a paisagem da seca concentra a grande força das imagens do filme. O close intenso no olho e na carcaça do boi morto e a abertura seguinte para um plano geral do vaqueiro Manuel e da caatinga é uma introdução didática ao universo do sertão, da terra infértil e ácida, na qual apenas as culturas persistentes conseguem vingar (como a mandioca, com a qual Manuel e Rosa fazem a farinha e se alimentam). O filme mostra toda a violência geográfica da região, cuja geografia BENTES (1997, p. 69) qualifica como “...terreno calcinado, áspero, infértil, com sua flora enfezada, retorcida, espinhosa, encruada...”.
Fenômeno que assola o Nordeste desde o primeiro século do descobrimento do Brasil, e que GARCIA (1984, p. 53) vai identificar como “...muito mais sócio-econômico que meteorológico”, a seca e suas conseqüências (fome, miséria, infertilidade da terra) vão originar distorções como o cangaço e o messianismo, identificados no filme como movimentos apenas pseudo-revolucionários.
g) O jagunço: Outro elemento típico do sertão, o jagunço trabalhava para os coronéis na proteção de propriedades, na encomenda de ‘serviços’ (crimes) para resolver intrigas. Glauber condensa as características do jagunço na figura de Antônio das Mortes. Antônio, misto de homem e de mito, é um “Tipo feito sob medida (desde a compleição física, as aparições, as falas, o senso), representa o agente, a extensão-força do coronelismo, do poder, do governo.” (LEAL, 1982, p.43)
Glauber amplia, entretanto, a importância de Antônio no filme. Dentro das concepções que o filme encerra, de manifesto revolucionário que ele é, o ‘Matador de Cangaceiros’ assume a postura de ‘agente da grande guerra’, envolto na sina de limpar o sertão dos seus falsos libertadores, de preparar o ambiente para uma revolução legítima, ‘sem a cegueira de Deus e o Diabo’ (ou seja: sem a alienação de Sebastião e a violência anárquica de Corisco). Antônio cumpre uma sina de condenado num destino que lhe é superior, é um agente do poder institucional (da política, do coronel, da igreja) que sente fundo a angústia da miséria do povo. Não mata Manuel nem Rosa, não pode interromper o percurso do sertanejo rumo a sua trajetória de libertação.
h) A linguagem: dentro da tradição realista de apresentar o locus nordestino, Glauber não destoa do discurso oral, antes o registra de maneira bastante. Manuel fala como tantos outros sertanejos analfabetos. Sebastião tem um discurso metafísico e cheio de metáforas, hipérboles e outras figuras retóricas, mas tão contextual e desprovido de ortodoxia que os seus beatos o entendem e desfrutam igualmente do seu onirismo (cavalos comendo flores / rios de leite / poeira virando farinha / sertão virando mar / visões de santos e anjos). Corisco e Antônio têm uma fala agressiva, tanto na entonação quanto no uso de palavras cortantes, violentas (destino sujo de sangue / preparar a grande guerra / cegueira de Deus e do Diabo / matar para não deixar morrer / destino condenado). O padre apresenta uma linguagem fleumática e (esta sim) vernacular, típica do formalismo eclesial.
i) A feira: No filme, a feira tem um destaque pequeno, mas importante. A feira ainda hoje é o espaço de vivência econômica do sertanejo, do Nordeste rural. Nela, ele vende o seu excedente de produção da roça e compra o que necessita para o seu sustento.
j) Igreja Católica: Glauber não poupa a igreja de uma crítica árdua no filme. E nem se preocupa em metaforizá-la, antes a apresenta claramente. Na sua ação pragmática em defender os seus interesses, a igreja une-se ao coronelismo e ao poder político (as três forças dominadoras do sertão agrário), para o aniquilamento dos beatos;
l) As relações sociais: Por fim, todos esses elementos acima citados convergem para estruturar um sistema de relações sociais tão cruel quanto a seca, a fome e a miséria, polarizado entre poderosos e desvalidos de toda sorte, no qual a violência tem um aspecto de cotidiano, de método sumário para a solução de conflitos e de arma revolucionária legítima nos processos de transformação do homem e do meio. É um ambiente socialmente bárbaro, desprovido de qualquer validade de preceitos jurídicos ou institucionais, uma realidade em que apenas o poder se impõe absolutamente.
5. CONCLUSÃO
Como se viu, Deus e o Diabo não foi uma iniciativa isolada de retratar o Nordeste como espaço-síntese de um Brasil sem maquiagem. Antes, fez parte de todo um contexto sócio-político-cultural dos anos 60, de um movimento de renovação da inteligência brasileira, do qual o Cinema Novo foi o braço audiovisual e que, na busca por originalidade e realismo, preferiu extrair a estética do caos. Entretanto, o filme de Glauber, a odisséia de Manuel em busca do mar-esperança-libertação construiu, certamente de maneira mais ampla e fiel que outros, o universo do sertão; criou um mosaico de tradições, lendas, personagens, mitos, linguagem e folclore; denunciou a crueldade de um nordeste rural anos 40; traçou um perfil sócio-psicológico do sertanejo e dos seus mitos.
Apesar de já não mais existir um ciclo nordestino na cinematografia brasileira (encerrado nos anos 70 com a diluição do Cinema Novo), nem tampouco um ciclo do cangaço, de tempos em tempos, como num movimento intermitente, renova-se o interesse de cineastas pelos temas ligados à região, fomentado, talvez, pelo fato de ela ainda ser a mais crítica do país em termos socioeconômicos e de possuir um conjunto de tipos humanos e tradições populares rico em lendas, personagens míticos, heróis, sons e imagens bastante singulares e, em muitos casos, exóticos.
Seja como for, o fato é que, nos anos 90, alguns cineastas retornaram às locações do Nordeste e aos seus enredos típicos. O Cangaceiro (remake), A Ostra e o Vento, Corisco e Dadá, O Baile Perfumado e Central do Brasil são exemplos típicos e atuais dessa tendência. Há que se considerar, no entanto, que, fruto da trajetória atual do cinema nacional, na qual prevalece a política de realizar cinema industrialmente, de conceber o filme como negócio e produto cultural que precisa ser vendido (inclusive com todas as estratégias de que se pode dispor para tanto: embalagem, marketing agressivo, distribuição eficiente, estudos de demanda etc), esses filmes estão cada vez mais voltados ao entretenimento e menos vinculados às concepções denuncistas dos seus produtores. Nada de mostrar a miséria como discurso ideológico, cinemanovistamente! A caatinga tem que ser, no máximo, um espaço vibrante de conflitos, um locus de exotismo e rusticidade. E a miséria, quando estampada na tela, tem que Ter a competência de emocionar.












6. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ALMEIDA, Manuel Correia de. Lutas camponesas no Nordeste. São Paulo: Ática, 1996.
GARCIA, Carlos. O que é Nordeste brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1984.
GERBER, Raquel. Glauber Rocha e a experiência inacabada do cinema novo. Glauber Rocha, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
________. O Mito da Civilização Atlântica: Glauber Rocha, cinema, política e a estética do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982.
MONTEIRO, José Carlos. História visual do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: MINC/FUNARTE, 1996.
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964.
______ , BENTES, Ivana (org). Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SENNA, Orlando. Roteiro Tricontinental de Xanglauber. Revista Filme e Cultura. Rio de Janeiro, v.15, n. 40, ago/out. 1982.
_____(org). Roteiros do Terceyro Mundo, Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985.


VITA, Álvaro de. Sociologia da Sociedade Brasileira. São Paulo: Ática, 1983.
XAVIER, Ismail. Sertão-Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.

7. FILMOGRAFIA
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964.




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