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Ensaios-->Uma leitura da violência em Deus e o Diabo na Terra do Sol -- 29/01/2003 - 02:44 (marcos fábio belo matos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Uma Leitura da Violência em
“Deus e o Diabo na Terra do Sol”


Apresenta uma análise da violência no filme ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, tomada em sua significação mais ampla, multifacetada, com a extensão do universo de metaforização que o termo comporta. Demonstra a ‘violência’ empreendida na estética cinematográfica brasileira pelo Cinema Novo e pela obra de Glauber Rocha, em particular.


1. INTRODUÇÃO
‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ é um filme-marco na história cinematográfica brasileira. Não apenas por ter sido realizado dentro do contexto do Cinema Novo, reconhecidamente o mais importante, propalado e genuíno movimento de renovação do nosso cinema. Nem mesmo por ter sido feito por Glauber Rocha, um cineasta que, além de produzir e filmar, soube muito bem construir um excelente conceito no imaginário da população e da elite cultural brasileira. É marco porque conseguiu ser uma obra singular, sem rótulos: não é um filme sobre o misticismo nem sobre o cangaço nem sobre o Nordeste apenas; não é um filme de violência (na concepção tradicional de formato cinematográfico); não é um drama; não é todo documentário nem todo fábula; não é somente um filme-manifesto nem uma obra de cinema-revolução. Antes, é a reunião de todos esses aspectos, um filme-colagem, o resultado de um cinema antropofágico, que tangencia o clássico e o experimental, que consegue poetizar o inconsciente coletivo de uma região acre, rude e miserável, do sertanejo e sua condição de espoliado (pela fome, pelas relações sociais, pelos agentes da sua esperança).
O filme de Glauber Rocha faz parte de um contexto nacional, de um processo de imersão na cultura nordestina enquanto locus de representação autêntica do Brasil, de “advertência cultural” para a realidade do país, evidenciado nos anos 60 em diversos campos da intelectualidade e da arte. Para se ter idéia, somente sobre o tema Cangaço (principal fonte de inspiração de roteiros dessa época), foram produzidos 21 filmes de 1960 a 1969, muitos infelizmente sem a mesma preocupação sociológica, sem a riqueza cinematográfica e sem a força comunicativa de ‘Deus e o Diabo...’.
Este trabalho tem como meta analisar a violência presente em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’. Não somente a violência física, que se verifica em algumas cenas do filme, mas a violência no seu aspecto mais amplo. Para tanto, mostrou-se necessário ampliar, no desenvolvimento das análises aqui contidas, a classificação etimológica, precípua, dicionaresca do termo , entendido como “constrangimento físico ou moral” (LUFT, 1991, p. 635). Buscou-se a metaforização do conceito de violência, estendendo-o até o limite da sua aplicabilidade. Tomando a violência num contexto mais amplo, de transgressão do normal, de apresentação de algo com intensidade maior que o aceitável , tentou-se encontrá-la, no filme analisado, em suas mais distintas caracterizações.
O exercício de alargamento do significado da violência encontra-se em ODALIA (1983, p. 14-32), que apresenta, como tipificações possíveis do termo, a violência social, a legal, a política e a revolucionária. Seguindo esta mesma prática, e empregando-a nas análises aqui desenvolvidas, a partir das observações do filme, pôde-se verificar ser possível a classificação dos seguintes tipos de violência: física, social, geográfica, religiosa, política, e cinematográfica.
De concepção bastante módica em seus objetivos, a pesquisa não se propôs a enfeixar todas as possíveis análises do elemento ‘violência’ no filme. Sabe-se que há muitas outras, inclusive com distintos recortes teóricos. Buscou-se, aqui, tão-somente demonstrar como esta obra, singularmente representativa na cinematografia nacional, engloba uma multiplicidade de sentidos para a violência, da física à cinematográfica, que podem ser identificados na assistência ao filme, na observação dos seus elementos estruturais e estéticos e, ainda, como esta plasticidade de atribuições de sentido está intimamente ligada ao universo conceitual de Glauber Rocha, um cineasta revolucionário por essência, que tentou fazer dos seus filmes instrumentos para uma práxis coletiva, a partir da crítica e da consuqüente tomada de conscientização das massas de explorados do Brasil e do Terceiro Mundo.
2. O CINEMA NOVO E A SUBVERSÃO DA ORDEM CINEMATOGRÁFICA
O Cinema Novo foi um movimento de renovação. Surgido no Brasil no final dos anos 50, a partir das iniciativas de cineastas e jovens aspirantes à profissão, trazia, como proposta mais contundente do seu manisfesto conceitual, a transformação da produção cinematográfica no país pela efetivação de uma nova estética e o simultâneo abandono dos estilos desenvolvidos até então na maioria dos filmes.
O principal modelo de cinema nacional na época do surgimento do Cinema Novo era a Chanchada, que tinham como características mais marcantes, segundo NEVES (1966, p.15): ser falante, gritante e exagerada demais, com personagens falando em desconexão com a sua ação na tela; ser totalmente desprovida de mise-en-scéne; ter como ponto alto o humor e os grandes comediantes, como Oscarito e Grande Otelo e gozar de muita popularidade junto ao público. Estes filmes tinham ainda a seu desfavor, segundo os críticos, o estigma de arremedar o modelo de cinema hollywoodiano e o tom escapista e despolitizado dos seus temas, que em nada refletiam a realidade brasileira.
É a este quadro que o Cinema Novo vem se contrapor, com uma proposta de resgate da originalidade nacional no filme, da produção de um cinema de consciência, politizado, um verdadeiro cinema-manifesto, esteticamente original em todos os seus elementos: dos cenários à temática, do registro crítico da realidade local à experimentação de atores populares para marcar o realismo pretendido. O Cinema Novo instrumentalizou a estética, pondo-a decisivamente a serviço das concepções artístias, técnicas e políticas dos cineastas.
Apesar de ser um movimento tentacular, caracterizado por uma atuação simultânea de muitos cineastas, distribuídos pelo eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Bahia e, em menor grau, em outros estados, o Cinema Novo deve seu pioneirismo a Nelson Pereira dos Santos, que deu forma às concepções do movimento em seu ‘Rio 40 Graus’ e ainda contribuiu, segundo NEVES (1966, p.14), com um dos filmes-ápice deste período: ‘Vidas Secas’ (1963). O outro filme-ápice é ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, também de 1963.
Materializando a antropofagia cultural, que, segundo os seus mentores, era o combustível para a gestação de uma cultura genuína, o Cinema Novo absorveu uma multi-influência, formada tanto de elementos nacionais quanto estrangeiros. NEVES (1966,p.16) destaca como influências marcantes na sua ‘poética’ (estética): a chanchada (que, apesar de criticada, doou-lhe elementos para incorporação fílmica), o cinema industrial carioca, a novela radiofônica, os escritores nacionais, alguns curta-metragens. E, no campo internacional, podem-se destacar a presença da Nouvelle Vague francesa, do Neo-realismo italiano, e, no caso de Glauber Rocha, por exemplo, ainda do cinema de Welles, de Eisenstein, de Luís Buñuel e do teatro de Brecht. Tudo isso, misturado, digerido pela antropofagia, apresentava como resultado um cinema autêntico, que bebia das influências as mais diversas sem contudo copiá-las, aceitá-las mitificadamente, transformá-las em paradigmas. O cineasta Carlos Diegues, a propósito do corte nacionalista do Cinema Novo, escreveu:
“E aprendemos que todos os nossos artistas, do mesmo modo que os nossos políticos, haviam passado quinhentos anos debruçados no oceano, de costas para o continente, os olhos fixos nas luzes da civilização. À nostalgia de uma cultura impossível respondemos com a antropofagia ideológica, à elegância e à moda, com a selvagem tentativa de reinventar o homem brasileiro.”(DIEGUES apud BARTHELÉMY, 1977, p. 98).

2.1. A violência do movimento
O Cinema Novo trazia em si, enquanto concepção de movimento estético, uma contraposição à ordem cinematográfica estabelecida, uma transgressão à norma, na medida em que subverteu toda a lógica do cinema industrial e conseguiu insurgir-se contra ele em forma, em técnica, em temáticas etc.
Para Glauber Rocha, o Cinema Novo, como projeto de movimento, só seria possível inserido num processo de revolução cultural brasileiro. E sua estética deveria estar ligada, necessariamente, a uma formulação radical. Em carta a Jean Claude Bernadet (ROCHA apud GERBER, 1977, p. 35), remetida de Montreal em 1967, afirma sobre a forma de fazer o Cinema Novo: “A nós somente deve interessar uma estética agressiva.”
2.2. O contexto do movimento
O período de eclosão do cinemanovismo coincide, na política, com o apogeu do populismo, do nacionalismo e do liberalismo burguês no Brasil e a sua fase de apogeu, quando os principais cineastas e filmes arrebataram prêmios internacionais e foram reconhecidos no exterior como partícipes de um novo modelo de estética cinematográfica, deu-se com o país iniciando seu profundo e infeliz mergulho na ditadura militar.
Foram quase dez anos de uma intensa efervescência na produção de filmes de longa e curta metragens e documentários. Entretanto, em 1968, o Cinema Novo vai iniciar seu declínio, desintegrando-se enquanto movimento. Desse processo, vão emanar os principais produtores do cinema brasileiro dos anos 70 e as respectivas linhas conceituais que o cinema nacional vai expressar a partir de então.
O Cinema Novo, apesar de ter a sua importância reconhecida dentro e fora do Brasil pela crítica e pela intelectualidade, não gozou do mesmo acolhimento por parte do público. Incompreendido, de difícil ‘digestão’ popular, por vezes chocante, o filme cinemanovista nunca teve bilheterias vultosas. Glauber Rocha, explicando essa contradição, vai afirmar que “...é uma ilusão tentar dizer que a arte deve ser imediatamente aceita pelo povo” (ROCHA apud GERBER, 1977, p. 20). E reforça sua idéia afirmando que o Cinema Novo buscou mais uma comunicação qualitativa do que quantitativa, pois que este último aspecto é inerente ao cinema americano, industrial.
O surgimento dessa ‘revolução cinematográfica’ no contexto brasileiro não é um fenômeno aleatório nem isolado. Antes, ela é apenas uma das partes de toda uma teia que se abriu sobre o nosso panorama cultural, a partir dos anos 60, de caráter revisionista, nacionalista e antropofágico e que se expressou na música, na literatura, no teatro e nas Ciências Sociais.
2.3. Principais inovações
Muitas foram as inovações trazidas pelo Cinema Novo, que substanciam a sua qualificação como movimento revolucionário, dentre as quais podem-se enumerar:
1) Uma preocupação com a identidade nacional no cinema - Para os cinemanovistas, o cinema representava o conjunto de imagens e sons de um povo. E, no seu processo de sua nacionalização, lançavam mão da prática da antropofagia cultural. Era regra geral entre os cineastas a releitura de influências que pudessem caracterizar como brasileiro o cinema que se fazia à época. Como conseqüência desta política, o Cinema Novo voltou-se para o Brasil: seus personagens, seus heróis distorcidos e marginais, sua realidade, suas debilidades, suas singularidades regionais, enfim, seu cotidiano sem retoques.
2) Movimento de jovens – O Cinema Novo foi um movimento de iniciantes. Muitos nem mesmo haviam tido experiência com produção cinematográfica. Glauber, por exemplo, em 1959-60, tinha filmado apenas os curta-metragens ‘Cruz na Praça’ e ‘O Pátio’, ambos experimentais. Neste sentido, é bastante incomum para a época o fato de que jovens, com mais paixão do que conhecimento, passassem diretamente a produzir e dirigir seus filmes já que, nos anos 50, a carreira de diretor era a coroação de uma trajetória feita de muitos estágios e experiências;
3) Inovação Técnica – Outro traço marcante é a transgressão deliberada das técnicas cinematográficas clássicas. A câmera saiu do tripé e foi parar na mão do fotógrafo, dando um extremo sentido de realidade às cenas, a montagem formal foi desvirtuada. Glauber Rocha bradava:
“A técnica é haute couture, é frescura para a burguesia se divertir. No Brasil, o Cinema Novo é uma questão de verdade, não de fotografismo. Para nós, a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia, mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil.” (ROCHA apud KOSOVSKY, P.19)
4) Crítica e Ideologia – Talvez o maior distintivo do Cinema Novo tenha sido a sua marca ideológica, a sua identificação como cinema-manifesto, como retrato do contexto social do país e do terceiro mundo, com todas as suas contradições e debilidades de relações sociais, políticas e econômicas. Poder-se-ia generalizar a afirmativa de que toda a produção desta época tinha uma face crítica, em maior ou menor grau.
2.4. Glauber e o Cinema Novo
O Cinema Novo teve bases geográficas amplas, extravasando o eixo Rio-São Paulo, ‘pulverizando-se’ pelo Nordeste (principalmente a Bahia), por Minas Gerais, pelo Exterior (onde se encontravam alguns dos cineastas comprometidos com a causa). BENTES (1997, p. 24) registra este aspecto a partir das cartas enviadas por Glauber Rocha para os cineastas envolvidos com a idéia de se criar algo inovador no cinema brasileiro:
“Lendo a correspondência [de Glauber] fica claro como a geografia do Cinema Novo se configura: Glauber entre a Bahia e o Rio; Paulo César Saraceni na Itália; Gustavo Dahl entre Roma e Paris; Joaquim Pedro de Andrade pela Europa. No Rio, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Neves, Luís Carlos Barreto, Leon Hirszam, Walter Lima Jr, Zelito Viana, Ruy Guerra.
Essa base geográfica – o circuito Bahia-Rio-Europa integrado pelas cartas, com São Paulo um pouco à margem (Roberto Santos, Paulo Emílio Sales Gomes...) – é decisiva para o Cinema Novo acontecer como movimento.”
Glauber foi uma das principais personagens do Cinema Novo. A ele deve ser atribuída uma certa singularidade no pensar e no fazer cinema, devido à sua forma todo particular e própria de conceber, de fomentar a articulação e o crescimento do movimento.
Além da repercussão dos seus filmes, que materializaram tão fielmente o espírito e a estética cinemanovistas e ganharam o reconhecimento de festivais internacionais como Cannes , soube ele, como poucos, evidenciar, jogar luzes sobre o Cinema Novo, seja através dos meios de comunicação (principalmente os jornais para os quais colaborava), seja com os seus livros, seja polemizando com críticos, cineastas, intelectuais, políticos, seja pensando e tentando executar os seus projetos loucos e fascinantes.
Glauber poderia ser considerado, nos dias atuais, um marketing man, uma personalidade que buscou sempre evidenciar a si e a suas concepções, prática da qual o Cinema Novo pôde, felizmente, beneficiar-se sobejamente.

3. GLAUBER ROCHA E A ESTÉTICA DA VIOLÊNCIA
A postura de Glauber Rocha, no fazer cinematográfico, sempre foi a de contribuir para a construção de uma cultura genuinamente brasileira, calcada nos elementos nacional-populares, com a veia de um intelectual angajado na transformação social do país. Para tanto, no processo de formação de uma nova cinematografia nacional, que deveria rejeitar o modelo formalista-americano que tomava conta das salas de exibição e das cabeças dos cineastas, de construir um cinema de resistência, armou-se da Estética da Fome e da Violência, concebida como uma técnica cinematográfica que “recusa as fórmulas do espetáculo convencional [pois estas] levam à realização da lógica do mercado e tendem a neutralizar o tom revolucionário da proposta.” (XAVIER, 1983, p. 163)
Uma proposta de estética agressiva na sua essência, mas totalmente coadunada ao pensamento revolucionário terceiromundista e à realidade brasileira do momento, de luta por transformação sociopolítica. A Estética da Violência tem um cunho de engajamento para a transformação de uma ordem estabelecida. Glauber era um revolucionário e a sua arma era a câmera. Dizia ele que “apenas uma estética da violência poderia integrar um significado revolucionário em nossas lutas de libertação” (ROCHA, 1981). A estética da violência foi um dos principais elementos de diferenciação e individualização do pensamento e da prática de Glauber Rocha no cenário cinematográfico nacional.
A pesquisadora Ivana Bentes conseguiu extrair do universo conceitual de Glauber uma ‘Pedagogia da Violência’, cujo princípio é o de tomar a violência como instrumento de transformação social pela revolta dos humilhados. Sobre isso, registra a afirmação: “...acredito na explosão da força nuclear produzida pelo desencadeamento das energias contraditórias liberadas, creio que revolução é vida...” ( ROCHA apud BENTES, 1997, p. 70)
A violência do filme glauberiano se diferencia, em termos de concepção, daquela que se apresenta, por exemplo, no western americano ( síntese do confronto maniqueísta entre Bem e Mal, vilões e mocinhos), no filme hollywoodiano tipo ‘Rambo’ (onde impera o heroísmo absoluto e a supervalorização de tipos sobre-humanos) e até mesmo de filmes brasileiros de cangaço (muitos deles, como ‘O Cangaceiro’, no qual a violência é tomada como disfunção social ou desvio que faz do cangaceiro figura sanguinária, mitificada). Em ‘Deus e o Diabo’, filme-alvo deste trabalho, por se tratar de cinema engajado numa proposta político-social-revolucionária do seu autor, a violência faz parte de um processo social concreto, é condicionada historicamente pela situação de calamidade, horror e crise do Nordeste. A violência em ‘Deus e o Diabo’ é dialética.
O próprio Glauber vai explicar a funcionalidade das cenas de violência nos seus filmes: “Não construo cenas de violência pensando no espetáculo, mas porque existe uma tradição sentimental de violência na América Latina: é um dado de país subdesenvolvido, um processo de barbárie.” (ROCHA apud BARTHELÉMY, 1977, p. 98)
Por fim, o cinema feito por Glauber Rocha pode ser caracterizado como “... contraste e violência em todos os níveis de expressão, agitado por sobressaltos e transes (...) imagem chocante das contradições, das pulsões anárquicas e da irracionalidade do povo brasileiro.” (GARDIES, 1977, p. 94)
4. A LEITURA DA VIOLÊNCIA EM ‘DEUS E O DIABO...’
Toda a violência presente em ‘Deus e o Diabo’ é metáfora, que é a linguagem própria das fábulas e aventuras ficcionais. O filme é uma grande construção onírica, uma fábula, a face de um desejo. Glauber Rocha desejou fazer do filme um libelo contra as condições políticas e sociais que determinam historicamente a pobreza do Nordeste e também contra a pseudo-validade dos seus mitos: o misticismo religioso e a revolta anárquica do cangaço como forças transformadoras e libertadoras do povo. Diz GERBER (1982, p. 72) que “Deus e o Diabo é a explosão através do misticismo e da violência do inconsciente do camponês, através de seus mitos mais representativos.”
É pela violência que se rompem os processos de aprisionamento do Homem, pela morte que ele consegue emergir para uma nova situação. Manuel segue uma trajetória de sangue: passa de vaqueiro a beato matando o coronel; passa de beato a cangaceiro depois da morte de Sebastião por Rosa e da dizimação dos beatos por Antônio das Mortes; e passa de cangaceiro a fugitivo-sonhador depois da morte de Corisco também por Antônio.
O universo conceitual de Glauber, precipuamente revolucionário mas ao mesmo tempo crítico e racional, vai apresentar a violência como única alternativa para a libertação do povo do sertanejo, como essência mesma do seu dia-a-dia, como multifuncional. É pela violência que Manuel vai purificar as prostitutas; pelo sacrifício de um inocente que ele vai exorcizar o demônio de Rosa. Pela violência Corisco justifica a sua sina de libertador do sertão: matar pobre para não deixá-lo morrer de fome, fazer a guerra contra o Leão da Riqueza. Pela violência ainda Antônio das Mortes vai eliminar os beatos, e depois vai matar Corisco, libertando Manuel para que ele possa fugir da escravidão dos mitos e rumar para o seu sonho de que o sertão vire mar.
Glauber discute e até mesmo inferioriza a validade dos mitos como sujeitos libertadores autênticos do povo nordestino, dando ao fanatismo religioso e ao cangaço uma face de reação alienadora à situação-limite do Nordeste, que é a seca e a fome. Tanto que constrói, para dizimá-los, a figura de Antônio das Mortes, matador de cangaceiro, personagem-síntese de todos os matadores que rondavam o sertão guerreando com os homens de Antônio Silvino, Virgulino e outros capitães-bandidos. Antônio das Mortes é a “violência como uma espécie de eutanásia” (XAVIER, 1983, p. 103). E, como Sebastião e Corisco, cumpre sua sina de libertador do sertão, de agente preparador da ‘grande guerra’ que há de chegar, sem a cegueira de Deus e do Diabo, que é a passagem do sertão ao mar. Sua crença é na violência como redenção para o Nordeste e a sua tarefa é limpar a terra do mal do misticismo e do cangaço. Como um roceiro, Antônio vai ceifando para que seja plantada a ‘guerra redentora’.
4.1. O filme: uma descrição didática
‘Deus e o Diabo’, filme ambientado no Nordeste Brasileiro dos anos 40, a partir do conjunto de figuras inconsciente sertanejo (o coronel, o beato, o cangaceiro, o jagunço), é a história de “...um homem que dissolve sua vida real no imaginário: na crença quase religiosa em personagens cheios de sonho e de realidade.” (GARDIES, 1977, p. 91).
Para apresentar a estrutura do enredo de Deus e o Diabo, vamos utilizar a disposição de XAVIER (1983, p. 75-76), que divide o filme em três fases e distribui os elementos e as cenas:
Fase 1: Manuel-Vaqueiro: mostra o sertão, a seca, o primeiro contato com Sebastião (o Santo), a mulher (Rosa) e a mãe, o trabalho doméstico, a casa de farinha, a condição de meeiro do coronel Morais, a partilha do gado, o conflito, a revolta e a morte do coronel, a fuga, a luta com os jagunços, a morte da mãe de Manuel, a desilusão e a entrega da vida ao beato no Monte Santo;
Fase 2: Manuel-Beato: mostra o Monte Santo, a devoção, a fé e o sacrifício de Manuel para se purificar, a renegação de Rosa por Manuel, a peregrinação fanática e violenta dos beatos pelo sertão, o incômodo que Sebastião causa à política da região e à Igreja, a morte de Sebastião pelas mãos de Rosa, o extermínio dos beatos por Antônio das Mortes;
Fase 3: Manuel-Cangaceiro: mostra Rosa e Manuel levados por Cego Júlio até Corisco, a adesão de Manuel ao Cangaço, passando a chamar-se Satanás, o conflito de Manuel e Corisco sobre a grandeza de Lampião e Sebastião, o transe de Corisco (o cangaceiro de duas cabeças), a vingança de Corisco na fazenda do Coronel Calazans, o duelo de Corisco com Antônio das Mortes, a morte de Corisco, a fuga de Manuel e Rosa pelo sertão-mar.
O filme resgata a história do panorama nordestino presente no inconsciente coletivo do povo: as lutas, os ídolos beatos, a guerra do cangaço, a seca, a miséria e a fome. Este resgate, entretanto, se dá no universo simbólico, não apelando para o historicismo naturalista: o filme não é historiográfico, mas tão-somente representativo. Sebastião representa Antônio Conselheiro, Beato Lourenço e tantos outros beatos que cortaram o sertão arrastando o povo pela crença de que, através da fé, seriam libertos da miséria em que viviam, homens simples, também sofridos, que têm no misticismo seu ponto de atração para o imaginário do povo. Corisco encarna o homem cangaceiro, que também se deixava arrastar por líderes como Lampião, Antônio Silvino e o próprio Corisco, verdadeiros mitos de coragem, mistos de benfeitores e bandidos cruéis que atravessavam as caatingas guerreando contra as forças do governo, as ‘volantes’ e os ‘macacos’. Sebastião e Rosa caracterizam o sertanejo, desprovido de qualquer bem, subjugado pela política da força dos coronéis, a quem só é permitido ter esperança e fé, seja em Deus ou no Diabo, uma esperança que nunca o abandona e que o faz caminhar no rumo de um futuro que lhe é incerto (será sertão? será mar?). Antônio das Mortes é o matador de cangaceiro, é a síntese de José Rufino com o jagunço típico, é o manifesto de Glauber contra as forças místicas e alienadoras que impossibilitam o sertanejo de ter uma prática genuinamente revolucionária e verdadeiramente libertadora.



4.2. As várias leituras da violência:
Para analisar todo o universo de violência contido no filme, necessário é expandir-se a amplitude deste termo, suplantar a fronteira do conceito dicionarista, adentrar-se o campo das multi-significações, da polissemia. A violência, para este trabalho de análise fílmica, é tomada como transgressão à norma estabelecida. Desta forma, adotando-se esta linha de raciocínio, observa-se a violência presente tanto na morte do Coronel quanto nas agruras do clima do Nordeste, tanto nas atitudes maquiavélicas da Igreja para com os beatos quanto na montagem nervosa da seqüência da purificação de Rosa, contrastando bruscamente com a paz hipnótica da capela, local do ritual do inocente.
Visando-se dar sistematização aos elementos de análise, os vários aspectos da violência verificados no filme foram agrupados em campos, a saber:
4.2.1. Violência física
Por violência física, classificaram-se as cenas que trazem lutas, duelos, mortes, tiros, enfim, tudo o que representa um atentado à vida. Assim, podem-se distinguir:
a) A morte do coronel Moraes: é a primeira seqüência de violência física do filme. Manuel, depois de uma discussão entre os dois por causa de um acerto de contas na partilha do gado, sente-se injustiçado, discorda do coronel, é humilhado, apanha de relho e revolta-se, puxando o facão e matando-o. A cena é cortada bruscamente por outra, que mostra a perseguição de Manuel pelos jagunços, a chegada à casa e o duelo, a morte da mãe de Manuel por um dos jagunços, a morte dos jagunços por Manuel. Uma seqüência abrupta, com cortes bruscos de cena, com uma mesclagem musical entre Villa-Lobos e sons de tiros, com a câmera se movimentando com os cavalos, enquadrando os homens que lutam no chão, até parar em Manuel com a mãe nos braços;
b) A surra nas prostitutas: Manuel, passando a beato, sai com o bando de seguidores e com o santo maltratando e surrando as prostitutas. Para o santo, é uma forma de purificação das mulheres desviadas, de punição da carne para salvar o espírito. Em várias outras cenas do filme, ver-se-á esta prática de sacrifício redentor;
c) A morte do inocente: Esta seqüência é formada por momentos contrastantes. De um lado, o silêncio tumular da capela, a preparação ritualística para o sacrifício do inocente cujo sangue vai redimir o espírito de Rosa, exorcizando-a; de outro, a barulheira histérica dos beatos, quando Manuel acusa Rosa de estar possuída e a arrasta para a capela, levando também a criança que será sacrificada. Numa composição cenográfica que marca bem o clima de transe, de ritual de sacrifício (altar, velas, semi-escuridão, silêncio, punhal), o santo, como que hipnotizado, recebe a criança e a entrega a Manuel, posicionando-a para o sacrifício. Depois, apunhala-a fria e lentamente, com um só golpe preciso e certeiro no coração. Com o punhal ensangüentado, faz uma cruz no rosto de Rosa, caída num canto da capela.
d) A Morte do Santo: Sebastião, espantado pelo grito estridente de Manuel, que acorda do seu transe e compreende o absurdo da morte do inocente, deixa cair o punhal. Rosa o apanha e, partindo para o santo, golpeia-o duas vezes. O santo cai derrubando os paramentos do altar.
d) O massacre dos beatos no Monte Santo: A cena da morte do santo é bruscamente substituída pela que registra a ação de Antônio das Mortes, que massacra os beatos do Monte Santo a mando da Igreja e dos Políticos. Antônio parece multiplicado, atirando e matando beatos que correm desorientados, histéricos, soltando como que uma oração confusa. Depois da matança, a câmera percorre as vítimas, lentamente, encadeada numa cena onde Antônio caminha para a capela, sempre com gestos comedidos.
e) Corisco e Antônio das Mortes: Corisco e Antônio das Mortes são introduzidos no filme cumprindo suas sinas: matar, vingar e justiçar. Antônio surge pela primeira vez matando cangaceiros no papo-amarelo; Corisco aparece, com seus dois cabras e Dadá, vingando Lampião: “Tou cumprindo a minha sina, padim Ciço! Num deixo pobre morrer de fome! Aaaaaaaaaaaa! Vingo no vivo e no morto meu cumpadre Lampião.” (SENNA, 1985, p.273). São cenas rápidas, de apresentação, mas que demonstram a sina de violência e de condenação que os dois vão arrastar por todo o filme, com objetivo pretensamente comum de libertar o povo da miséria pela veia da morte, até o duelo final, quando Glauber reserva a Antônio a legitimidade de tal tarefa: “Um dia vai Ter uma guerra maior nesse sertão... Uma guerra grande, sem a cegueira de Deus e do Diabo. E para que essa guerra comece logo, eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco...” (SENNA, 1985, p. 279)
f) O ataque à fazenda do coronel Calazans: Corisco e seus cabras, entre eles já Manuel-Satanás, tomam de assalto a fazenda do Coronel Calazans, tido como homem do governo e traidor. Lá, depredam os objetos da casa, Corisco estupra a filha do Coronel, Manuel-Satanás e os demais do bando capam o noivo dela e depois o esfolam, dependurando-o numa árvore. É a única vez que Glauber mostra a crueldade que povoa as histórias do cangaço.
g) A morte de Corisco: Antônio das mortes fecha a sua missão no filme, completa a sua sina encontrando Corisco, duelando com ele e, por fim, atingindo-o à queima-roupa e depois degolando-o . Dadá arrasta-se baleada pela caatinga. Manuel e Rosa correm pelo sertão-mar.

4.2.2. Violência social
Sendo ‘Deus e o Diabo’ uma fábula-denúncia da situação do Brasil, notadamente do Nordeste, Glauber vai apresentar os elementos que fazem esta região cruel. E elenca, através de imagens e diálogos, a seca, a desigualdade social, a miséria, a fome, a religião, os poderosos, a pobreza, postos numa relação de causa e efeito.
No filme, fica patente a violência social que grassa no sertão nordestino: a lei que está do lado do coronel Calazans e que permite a ele distorcer a partilha das vacas; a força do coronelismo que impede o sertanejo de contradizê-la; a situação de total abandono e desposse do sertanejo (Manuel diz a Rosa, na partida da fazenda: “Vambora logo... num temo nada pra levar a num ser nosso destino”); o cenário de barbárie do Nordeste dos anos 40 (e ainda hoje visto no país), onde impera a lei da bala, do punhal, do crime por encomenda, dos jagunços sempre a serviço dos poderosos, da elite agrária e até mesmo religiosa (Antônio é contratado pelo coronel e pelo vigário); do pragmatismo nas relações sociais (os beatos foram dizimados porque atrapalhavam a política e as receitas da igreja); da total inexistência de ordem social, de representatividades, que faz com que o homem-cidadão (?) tenha que apelar aos mitos do sertão (o beato, o cangaceiro) para continuar a ter esperanças de vida.
Glauber remonta fielmente a realidade do Brasil coronelista da primeira metade deste século e, particularmente, do sertão que só conhece códigos sociais primários, violentos, nos quais o sertanejo, justamente por não representar nada, é a parte menos importante, ficando à própria sorte dos desígnios divinos ou do cangaço.

4.2.3. Violência geográfica
O sertão nordestino mostrado no filme tem uma paisagem que agride os olhos. Paisagem que, no início do século, já Euclides da Cunha identificava como ‘o martírio secular da terra’. E BENTES (1995, p. 69) qualifica como “selvageria geológica-social (sic)[ indo mais adiante ao dizer da geografia do sertão] ...terreno calcinado, áspero, infértil, com sua flora enfezada, retorcida, espinhosa, encruada...”
A cena que abre o filme é um ícone da violência do clima no Nordeste: a queixada e , em close intenso, o olho de um esqueleto de boi morto pela seca. Nada mais representativo da aridez, da crueza da região, que dizima ferozmente a vida. Seguem planos gerais que vão captar a figura do vaqueiro Manuel no meio do nada, do campo limpo de plantação. Esta é a introdução ‘didática’ do espectador no universo do sertão e do sertanejo, das suas condições de precariedade, da seca. No mais, a paisagem é caatinga, é seca, é falta de verde e sobra de vida indigna de ser chamada de natural.
4.2.4. Violência religiosa
Dois aspectos podem ser encampados neste item. O primeiro é o da violência institucional, da Igreja Católica, representado pela prática maquiavélica e pragmática do vigário, ao contratar Antônio das Mortes para dizimar os beatos no Monte Santo. Antônio hesita, pois teme a força religiosa do beato, mas é convencido com a oferta dobrada em dinheiro pelo serviço. A igreja-instituição não se escusa em, rapidamente, eliminar os que prejudicam seus interesses e a ameaçam em sua hegemonia.
O segundo aspecto está na prática evangélica do beato, baseada na fé alucinada e na imposição de observância fanática e histérica à sua pregação por parte dos beatos e aos sacrifícios de purificação, violentos e cruéis. A longa cena de Manuel tentando carregar a pedra na cabeça, de joelhos, pela estrada que leva ao Monte Santo é o exemplo mais cabal desta violência redentora. Filmada com a câmera na mão, sem trilha sonora, a cena é toda feita de tropeços, de uma insistência saturante, angustiante de se ver, que representa a entrega total do beato ao ritual de sua purificação.
4.2.5. Violência cinematográfica
Por fim, cabe o registro das transgressões que ‘Deus e o Diabo’ implementou na cinematografia brasileira. Para tanto, apresentam-se alguns elementos do filme:
a) A presença do cordel, do cantador em off, foi algo inovador. Os versos quase gritados ao som da viola de feira cortam todo o filme como um elemento didático, que vai apresentando as personagens e as situações. Glauber resgata, na busca da originalidade, um dos mais fortes componentes da cultura do nordestina, que é o cantador – misto de oráculo e mídia do sertão;
b) A trilha musical, que vai marcar a intensidade das cenas com canções tão díspares quanto o cordel, a música “Se entrega Corisco” (que mistura letra, canto e som de tiros) e os clássicos de Villa-Lobos e Bach;
c) A filmagem, na qual a câmera movimenta-se quase a todo o instante, acompanhando a perseguição de Manuel na cena da morte do coronel Moraes; na mão do cinegrafista, frenética, marcando o clima de agitação na cena da surra nas prostitutas e quando Manuel acusa Rosa de estar possuída; girando ao redor de Corisco e Rosa quando estes se beijam;
d) A montagem, quando prevalecem muitos cortes bruscos, como por exemplo: 1) na morte do coronel, a cena é cortada, tão logo Manuel levanta seu facão, para a seqüência da perseguição, luta, morte da mãe de Manuel; 2) o corte brusco marca o contraste entre o ambiente de silêncio e escuridão da capela, local do sacrifício do inocente, e a euforia histérica dos beatos no topo do monte, quando Manuel acusa Rosa e a arrasta para a purificação; 3) outro corte brusco marca a passagem da cena da morte de Sebastião e o massacre dos beatos por Antônio das Mortes;
e) A linguagem verbal do filme é ríspida e agressiva. GARDIES (1977, p. 79) afirma que, no filme, as palavras “...empurram, agem, brutalizam (...) cantam, se dobram, explodem em feixes de artifícios”. Rosa, falando a Manuel sobre as promessas do Santo: “A terra toda é seca, é ruim, nunca pariu nada que prestasse”; Corisco, acerca da sua vida, vai dizer: “O meu destino está tão sujo que nem todo o sangue do mundo pode lavar”; Antônio das Mortes declara, sobre a morte dos beatos: “Eu não matei os beatos pelo dinheiro. Matei porque não posso viver descansado com essa miséria.”; ainda Corisco, comparando as grandezas de Sebastião e Lampião: “Homem nessa terra só tem validade quando pega nas armas para mudar o destino. Não é com rosário não, Satanás. É no rifle e no punhal!”. Exemplos da força dos discursos do filme que, somados às imagens realistas e às vezes chocantes (o esfolamento do noivo da filha do coronel, amarrado num pé de árvore, por exemplo), demonstram toda violência comunicativa que o filme empreende e o choque que, provavelmente, causa no espectador.
5. CONCLUSÃO
A violência é um dos elementos marcantes em toda a cinematografia de Glauber Rocha. Está presente, de maneira mais contundente, nos seus longa-metragens, de Barravento à Idade da Terra.
Mas, como se tentou demonstrar neste trabalho, trata-se de uma violência polissêmica, que deve se entendida num contexto plural, multifacetado. Nunca apenas como a violência do sangue, da morte ou da agressão física, que também está lá, em cenas às vezes difíceis de se encarar, sem contudo prevalecer na obra como o seu elemento preponderante. A violência glauberiana está contida no registro das aberrações que distorcem a vida social, do autoritarismo dos poderosos à indulgência das autoridades religiosas para com a aniquilação daqueles que as incomodam; da seca que infertiliza a terra e degrada a vida natural e humana às declarações ácidas de personagens que, ao invés de viverem, cumprem sinas de condenados, e que têm no massacre a melhor solução para a inexorabilidade da situação miserável do sertanejo.
Glauber fez da sua estética da violência e da fome um grito de libertação do cinema e da sociedade. Pensava o filme como uma obra desalienadora, um instrumento de práxis social e coletiva, via num nacionalismo agressivo e radical a única alternativa de se fazer uma obra de arte politizada. Bebeu na fonte de Einsenstein, de John Ford, de Buñuel, de Brecht e de tantos outros para, numa atitude antropofágica, construir com essas influências clássicas um cinema experimental e de manifesto, espelho do seu senso crítico e do seu engajamento, da sua adesão a um projeto de revolução nas cultura em geral e no cinema, em particular, tendo o Cinema Novo como ponto referencial.
‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ é o filme-síntese de todas as concepções revolucionárias de Glauber, é onde elas se mostram mais contundentes, ao mesmo tempo em que se colocam mais sistematicamente frente ao telespectador. É também nele que a violência assume a sua face mais plástica, diluindo-se em mais elementos e situações.
É fato que as análises aqui empreendidas não esgotam todas as verificações que podem ser feitas sobre este tema. Com efeito, análises mais sistemáticas e apuradas podem alargar o leque de leituras acerca da violência no filme, aproveitando-se inclusive de distintos cortes teóricos.
O que fica de saldo positivo, crê-se, é a ratificação, através da verificação de amplitude de leitura desta obra-marco da cinematografia nacional, de que sempre é possível encontrarem-se novas possibilidades de pesquisa, de estudo e de descobertas na produção intelectual e artística de Glauber Rocha, um dos mais importantes referenciais da nova inteligência brasileira.














6. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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GARDIES, René. Glauber Rocha: política, mito e linguagem. Glauber Rocha, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
GERBER, Raquel. O Mito da Civilização Atlântica: Glauber Rocha, cinema, política e a estética do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982.
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10. FILMOGRAFIA
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rio de Janeiro: Copacabana Filmes, 1964.











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