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Ensaios-->De Paris a São Luís: o percurso do cinema -- 29/01/2003 - 02:54 (marcos fábio belo matos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

DE PARIS A SÃO LUÍS: O PERCURSO DO CINEMA

Marcos Fábio Belo Matos *


Sempre quando se procura apresentar uma historiografia do cinema, mesmo que sucinta e eivada de maiores detalhes, como é o caso desta, um exercício se impõe, a saber: o de tentar buscar sua genealogia, resgatar os elementos que lhe possam delinear uma gênese compreensível e aceitável. E surgem, neste esforço, as mais distintas alternativas. Das sombras da caverna da elucubração platônica às primeiras experiências com a ótica medieval, muitos são os marcos que se interpõem historicamente. No caso deste trabalho, optou-se por um limite histórico concreto, que inicia com as primeiras diversões visuais, passa pela contribuição da fotografia e, ousadamente, chega à mentalidade do século XIX.
Para usar uma expressão aristotélica, pode-se dizer que o cinema já existia, em potência nas mais variadas diversões visuais que enchiam de espanto e curiosidade as pessoas pelo mundo afora antes de 1895, quando ele oficialmente veio a lume.
Os princípios da ótica já eram utilizados para fins de entretenimento antes do apogeu das diversões visuais no século XIX. Basta lembrar, como exemplos balizares, as Sombras Chinesas, os muitos aparelhos de nomes quase impronunciáveis como Zoetrópio, Phenakisticópio, Chareutoscópio, Praxinoscópio, Zoogyroscópio e o sucesso retumbante da Lanterna Mágica, o primeiro primo legítimo do Cinematógrafo.
Criada em meados do século XVII, a Lanterna Mágica teve um tímido começo como diversão pública ainda em fins daquele século, vindo a popularizar-se durante todo o século XIX. Incorporando instrução, entretenimento, fantasmagorias, era meio científica meio sobrenatural, meio filha do racionalismo iluminista meio do imaginário sobrenatural da Idade Média. Este brinquedo muitas vezes era adquirido por famílias para representações em casa. Outras vezes fazia parte dos sermões nas igrejas, apresentando quadros de anjos, santos, demônios e espíritos, exortando os fiéis à contrição. Todavia, a sua forma mais conhecida de exibição eram mesmo as apresentações públicas. Nestas sessões, o espectador podia assistir a coisas tão variadas como uma viagem à África, um episódio da Paixão de Cristo, quadros de fantasmagoria com efeitos de som para aterrorizar a todos ou cenas de usos e costumes dos habitantes das cidades mais desenvolvidas.
Segundo GUNNING (1996), além dos divertimentos visuais – que Charles Musser denomina de divertimentos de tela – o cinema também deve sua filiação aos progressos da fotografia que, depois de deixar a forma rudimentar e lenta do daguerreótipo, aprimorou-se gradualmente até alcançar, em 1870, a instantaneidade. Outro historiador, SADOUL (1983) afirma que, já em 1851, nos estúdios fotográficos criados poucas décadas antes, surgiram as primeiras experiências com a fotografia em movimento.
Há ainda o legado decisivo das investigações científicas, registradas pela historiografia e representadas, sobretudo, pelas experiências laboratoriais com a imagem em movimento do fisiologista francês Étienne Jules Marey e seu assistente-chefe, Georges Demeny , este desligando-se depois das pesquisas para explorar o seu aparelho de vistas animadas e migrar para o campo do divertimento, veementemente condenado por Marey.
Por fim, há também o legado histórico, pois a despeito de todos os progressos científicos, da herança dos brinquedos visuais, dos aperfeiçoamentos da fotografia, o cinema parece ser mesmo filho é da mentalidade do século XIX, na qual se incluem todos os elementos que lhe requerem a ancestralidade. Foi certamente o século XIX, “...el siglo de la iluminación em general y de la proyección em particular.” , como afirma MILLINGHAM (s.d., 251), que criou as condições para o advento do cinema, da projeção de fotografias em movimento, de uma diversão que vinha sendo acalentada por muitos e que, para o público, representou o corolário do que a ciência e os espetáculos de magia e ilusionismo da época podiam, juntos, proporcionar.
O cinema nasceu influenciado pelo imaginário fim-de-siècle, para o qual contribuíam elementos como: as revoluções industriais (a do vapor e a da eletricidade); o processo de urbanização por que passavam as grandes potências européias e os Estados Unidos; uma estética do entretenimento que supervalorizava a curiosidade, o espanto, o prazer de ver o inusitado e se difundia pelo teatro clássico e popular, pelos espetáculos de feira, museus de cera e de curiosidade, shows de variedades em que tinham espaço anões, animais amestrados, mulheres barbadas dentre outras coisas esdrúxulas, fomentando uma como que estética do espanto . GUNNING (1995, p.58) chega mesmo a admitir que, se a humanidade tinha como gênese formativa a curiositas, definida por Santo Agostinho , é no século XIX que este fundamento mais se aguça:
“O impulso da curiositas pode ser tão antigo quanto Santo Agostinho, mas quem aguçou essa forma de “cobiça dos olhos” e a sua exploração comercial foi o século XIX. A crescente urbanização e sua série caleidoscópica de cenas de rua, o crescimento da sociedade de consumo e sua nova ênfase no estímulo ao gosto com os espetáculos visuais, os horizontes em expansão da exploração colonial com seus novos povos e territórios a serem classificados e explorados, tudo isso provocou o anseio por imagens e atrações. (...)”

No final do século XIX, essa “cobiça dos olhos” se amplia exponencialmente, com as primeiras projeções de fotografias em movimento. De fato, muitas foram as exibições de vistas animadas que precederam, em várias partes da Europa e nos Estados Unidos, a institucionalização oficial da cinematografia. Afirma SADOUL (1983, p. 41-2) que
“Em 1895, multiplicaram-se as primeiras de cinema. Quase sempre aqueles que as realizavam se ignoravam uns aos outros, o que depois provocava intermináveis controvérsias sobre a invenção do cinema. A América, onde tinham sido vendidos os primeiros kinetoscópios, teve precedência com Acmé Le Roy e Eugène e Lauste (representações isoladas e sem repercussão a partir de fevereiro), Dickson, Lathan e os filhos (série de representações rapidamente interrompidas pela deserção do público, em maio, em New York), Armat e Jenkins (sessões dadas com pouco êxito em setembro, em Atlanta). Pouco depois seguiram-se na Alemanha as projecções de Auschütz (outubro, demonstrações públicas isoladas em Berlim) e de Max Skladanowski (outubro, série de representações dadas num grande teatro e mantidas durante algumas semanas, apesar de passar filmes de muito má qualidade).

São os irmãos Lumière que, em 1895, vão oficializar a invenção do cinema – ou melhor, do cinematógrafo, pois à época a sensação era o aparelho e não o filme que ele projetava. Um aparelho versátil, tecnologicamente avançado para a época (pois projetava e filmava com uma só peça), que é assim descrito:
“Uma caixa de madeira com uma porta dianteira e uma porta traseira, o corpo do cinematógrafo. Uma segunda caixa pequena e removível na parte superior, o chassis com 17 metros de filme virgem. Uma terceira caixa também pequena e removível no interior do aparelho para receber o filme depois de impressionado. A objetiva na frente, no alto. A manivela atrás. Duas voltas de manivela, um segundo. Cada volta, oito imagens (em papel transparente nos primeiros ensaios e logo adiante em película perfurada nas extremidades, perfurações redondas, uma de cada lado do fotograma). O aparelho permite fotografar o movimento, fazer cópias (o negativo então correndo colado ao positivo e a objetiva voltada para uma tela ou parede branca iluminada pelo sol) e projetar o filme (a tampa trazeira (sic) aberta e o cinematógrafo colocado diante de uma lanterna).” (AVELLAR, 1996, p. 167-8

Antes da histórica exibição do dia 28 de dezembro, num salão do Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris – que foi, na verdade, um fracasso de público, concorrendo cerca de 30 espectadores e rendendo apenas 35 francos, dos quais 30 foram para o aluguel do salão – os Lumière executaram um percurso de apresentações em sociedades científicas ou congêneres. Entre a conclusão do invento, em fins de 1894 e o seu patenteamento em 13 de fevereiro de 1895 e a sessão de dezembro daquele ano, pelo menos seis apresentações são registradas .
O que pode ter consolidado a supremacia dos Lumière frente aos outros aparelhos que se testavam simultaneamente e que requereram, também, a primogenitura da invenção, foram alguns elementos que, juntos, tornavam o Cinematógrafe uma máquina fantástica. Como exemplo, cite-se a sua versatilidade, pois enquanto os outros projetavam somente, ele também filmava e revelava o filme. Em segundo lugar, seu tamanho e peso reduzidos facilitavam o transporte para qualquer lugar, permitindo aos seus operadores viajarem muito para mostrá-lo e, também, filmar paisagens as mais distintas possíveis e, assim, enriquecer o catálogo da empresa de novas vistas e os olhos do espectador sempre de ilustrações desconhecidas e, na medida do possível, exóticas.
Em pouco tempo, a invenção que parecia, a seus mentores, não ter muito futuro, espalhou-se pelo mundo afora, ganhou centenas de derivativos esquisitos e se tornou a mais nova forma de diversão que o final do século passado conheceu e o início do nosso veio consolidar, inexoravelmente.
Para tentar esclarecer como uma invenção, que se inseria no rol de tantas outras experiências de laboratório, conseguiu traspassar a fase das exibições em associações e eventos científicos e ganhar os salões de espetáculos de variedades, seduzindo acorrer uma verdadeira massa curiosa por ver as fotografias se moverem e abarrotando os bolsos dos que se aventuraram a apostar na sua exploração, há que se relacionar alguns elementos.
Em primeiro lugar, atente-se para o fato de que o cinema se inseria perfeitamente no universo de transformações que o século XIX (sobretudo a segunda metade dele) proporcionava à humanidade. O século XIX presenteou o mundo (ocidentalizado) com uma efetiva modernização, transformando de maneira drástica a vida e a forma de apreender a realidade dos cidadãos europeus e norte-americanos, principalmente: o surgimento da eletricidade e a sua utilização pública, impulsionando o desenvolvimento da indústria, das cidades, da vida social; o crescimento demográfico, territorial e de estrutura física dos principais centros urbanos, dando às cidades um ar cosmopolita; a formação de grandes conglomeramos produtivos em substituição da produção até então artesanal, com o aparecimento de novos ramos (siderurgia, produtos químicos, energia) e as novas relações estabelecidas entre o capital e o trabalho que advieram dessa mudança; o crescimento da produção científica e tecnológica, que cada vez mais freqüentemente surpreendia o mundo com inventos extraordinários: a fotografia, em substituição às deficiências do daguerreótipo, o telefone, o rádio, o telégrafo sem fio, o aparelho de raio X (e sua surpreendente capacidade de ver o interior do corpo humano), o automóvel, os aparelhos cinematográficos.
Certamente o melhor locus para se observar as transformações ocorridas no século XIX sejam as exposições universais “...um microcosmo do mundo civilizado. Uma espécie de vitrine onde as várias nações mostravam sua cultura e sua tecnologia (...) Eram feiras de novidades tecnológicas, artísticas e culturais. (...) um mostruário espetacular das maravilhas tecnológicas que o novo século prometia.” (COSTA, 1995, p. 02 - 03) Dessas exposições participavam todos os países que se definiam como desenvolvidos e alguns outros que pretendiam um dia sê-lo. O cinema esteve presente na exposição de 1900, realizada em Paris, ao lado de vários outros entretenimentos visuais, como o Panorama, o Stereorama, o Mareorama e o Phono-Cinèma-Thèatre.
Em segundo lugar, ressalte-se que os aparelhos de cinematografia vieram como que coroar todo um processo de desenvolvimento seqüencial das atrações visuais. Em 1839, , Daguerre surpreende o mundo com o anúncio oficial do registro da realidade, tal qual, em uma chapa sensibilizada, criando a daguerreotipia, a fotografia primitiva. Uma invenção impressionante, que teria seus inconvenientes ( muito pesada, muito cara, de gravação lentíssima, não fornecia cópias) amenizados a partir de 1839, mas que seria superada com a fotografia, criada por Talbot na Inglaterra em 1841, que fornecia cópias em papel do seu negativo. Entretanto, já a partir do daguerreótipo a imagem fixa da realidade passou a fazer parte do universo social: em 1842, somente na cidade de Paris são confeccionados 1800 retratos e, em 1848, lá trabalhavam 56 fotógrafos profissionais, número que salta para 207 doze anos depois. A fotografia instantânea, criada em 1870, arrematou o progresso dessa indústria que já se consolidara.
As imagens também eram apreciadas nos aparelhos pré-cinematográficos, que tinham a virtude de ampliar gravuras, apresentar uma realidade em tamanho real, acompanhada, quando a ocasião pedia, de um ou mais barulhos para marcar a verossimilhança. Havia também aqueles outros equipamentos que, como nos dias de hoje, tentavam proporcionar ao espectador uma sensação de realidade virtual: o Mareorama – “Um palco, representando um navio, abrigava no convés os espectadores. Na tela, eram projetadas as imagens do porto de Marselha, com o burburinho das ruas e os arranjos necessários à partida. Vinha em seguida o circuito em alto-mar, e, por fim, a entrada em Argel.” (ORTIZ, 1991, p. 162); os Panoramas, que eram pinturas representativas de paisagens; as viagens de trem e de balão, dentre outros. E, em 1894, apareceria o Kinetoscópio de Edison e, logo depois, o Mutoscópio, que eram cineminhas individuais onde, por meio da colocação de uma moeda, o espectador, pondo o olho num monóculo, via passar pequenos filmes – pequenos duplamente: curtos e de imagem reduzida. Portanto, o cinema, quando surgiu para as platéias, foi visto como um aperfeiçoamento de tudo o que já era apreciado: a fidelidade da fotografia, a sensação de coisa viva dos mareoramas, a noção de tamanho real das placas da lanterna mágica e o movimento dos quinetoscópios. Tudo junto num mesmo aparelho.
Em terceiro lugar, deve-se notar a rápida incorporação do cinema às estratégias da industrialização, do comércio e do capitalismo, o que favoreceu a sua expansão e o seu conseqüente desenvolvimento. O cinematógrafo, uma vez testado e aprovado pelo público, teve a sua produção industrializada pelos irmãos Lumière, que à época eram industriais bem-sucedidos no ramo da fotografia. O comércio de equipamentos de projeção foi o primeiro que surgiu no universo do cinema. Os filmes dessa fase inicial não tinham muito valor em si, mas compunham o negócio dos cinematógrafos, como demonstrativos das proezas desses. Eram quase sempre vendidos a metro, independentes dos seus títulos e das histórias que traziam. Os operadores, por sua vez, os exibiam na ordem que quisessem, dividiam suas partes em filmes independentes, alteravam a velocidade de filmagem (pelo mecanismo das manivelas), incorporavam recursos sonoros, voltavam a fita para provocar mais risos na platéia, dentre outras esquisitices. GEADA (1976, p. 46) relaciona a expansão dos cinematógrafos também ao crescimento demográfico:

“A rápida expansão do cinema nas principais cidades da Europa na viragem do século deve-se fundamentalmente ao crescimento demográfico e econômico das grandes concentrações urbanas ligadas ao capitalismo industrial. O aumento brusco das populações desencadeou novas formas de comércio público, organizado em grandes armazéns e lojas que gradualmente tornaram caducos os mercados e feiras e os afastaram para a periferia. A produção em série saída das fábricas passou a ter o seu equivalente no consumo em massa proporcionado pelos grandes estabelecimentos. Este processo de renovação urbana foi indissociável da criação de um sistema de transportes que visava assegurar a circulação das mercadorias e dos trabalhadores pelas diversas zonas da cidade dispostas em torno dos centros burocráticos, financeiros e comerciais.”

Outro aspecto relevante é o fato de os aparelhos cinematográficos, como um novo ramo de diversão que se potencializava, por conta das suas especificidades, despertarem o interesse pela sua exploração comercial. Conforme aponta COSTA (1995, p. 02):
“Inicialmente seguindo o modelo artesanal das produções científicas de então, os aparelhos de produção/reprodução visual de imagens entraram na corrente da industrialização no momento mesmo em que acenaram com capacidades de gerar lucro e de expandir mercado.”

Os Lumière industrializaram a fabricação do seu Cinematógrafo; Edison, que já tinha conseguido bons lucros com os seus kinetoscópios espalhados pelos EUA e Europa, fez o mesmo com o seu Vitascópio; Demeny tratou de comercializar o seu Cronofotógrafo; Skladanowski também fez proliferar o seu Bioscópio e muitas e muitas marcas surgiram no mercado, às vezes simples arranjos nominativos de máquinas já conhecidas, artifício dos exibidores para individualizar o seu projetor. Dando bastante lucro e também possibilitando a expansão da produção de filmes, que iam se tornando mais e mais sofisticados (novas histórias, maiores metragens, mais efeitos sonoros adaptados a eles, uso de coloração em fitas, filmagens de ficção concorrendo com o documentarismo dos primeiros dias), a indústria do cinema ia se consolidando e expandindo suas fronteiras para além dos países que lhe deram berço. É o que registra SADOUL (1983, p.43):
“No fim de 1896, o cinema tinha saído definitivamente do laboratório. As marcas de máquinas registradas já se contavam às centenas. Lumière, Méliès, Pathé e Gaumont, na França; Edison e a firma produtora Biograph, nos Estados Unidos, e William Paul, em Londres, tinham firmado as bases da indústria cinematográfica e, todas as noites, milhares de pessoas se dirigiam para as salas escuras.”

Um bom exemplo da capacidade comercial da indústria dos cinematógrafos pode ser verificado na forma de os exibidores apresentarem os seus espetáculos logo nos primeiros tempos, em que a nova diversão tinha o seu status pejorado e rastejava na marginalidade, convivendo com as dezenas de outros espetáculos populares da virada do século , na época em que era visto como teatro dos pobres . Os produtores de aparelhos e filmes tinham nos vaudevilles e nos exibidores itinerantes os seus consumidores preferenciais. No primeiro caso, por serem os vaudevilles casas de espetáculos multiformes, os cinematógrafos eram encaixados na programação como número individual, exibindo quadros de magia, ilusionismo e cenas de palco filmadas, filmes religiosos e, claro, os documentários, que abundavam à época. Já os exibidores itinerantes eram viajantes que saíam de cidade em cidade, alugando salões ou teatros e mostrando a mais nova e impressionante maravilha da tecnologia, muitas vezes inserindo também outros números nas sessões. Foram eles que, fundamentalmente, disseminaram o novo entretenimento nos países menos desenvolvidos, filmando cenas exóticas nas colônias e multiplicando os títulos nos catálogos das firmas, encantando populações distantes do progresso com aquela máquina estranha, quase mágica, e que maravilhava (e também assustava) tanta gente.
Dezoito meses depois de ter seu nascimento oficializado em Paris, o cinema chega ao Rio de Janeiro. Registra VIANY (1993) que a primeira sessão se deu às 2 horas da tarde do dia 08 de julho de 1896, numa sala da Rua do Ouvidor, à época o coração da vida urbana da Corte e o reduto de todas as novidades que aportassem na cidade. O aparelho chamava-se Omniographo, nome provavelmente inventado pelo proprietário para diferenciá-lo, pois que não há qualquer registro de uma máquina com mesma denominação nos livros especializados em cinema, dentre os muitos nomes esquisitos que os aparelhos de projeção tomaram quando da sua fase de disseminação. A sala funcionava das 11 às 22 horas.
A chegada, como não poderia deixar de ser, foi saudada pelos jornais. E A Notícia, um dos mais importantes da época no Rio, assim recebeu esta nova forma de diversão:
“Hontem, vimos pela primeira vez nesta capital as projeções de fotografia em movimento. Lembram-se do cinetoscópio? Pois bem, no Omniógrafo, à Rua do Ouvidor, 57, os corpos que o cinetoscópio nos mostrava em movimento são projetados sobre um pano translúcido e mais nitidamente vistas, portanto. Imaginem os leitores milhares de fotografias colhidas, surpreendendo, por exemplo, em dois minutos as mais diversas fases do movimento de uma cena ou de um trecho de paisagem. Em uma fita, correm, em rotação de uma celeridade incalculável, mil rotações por minuto, todas essas fotografias recompondo a vida, revivendo as cenas em todos os seus pormenores. (...) Só se pode avaliar a exatidão dos movimentos, da surpreendente verdade transmitida pelo Omniógrafo, assistindo a essa exibição (...) O omniógrafo deve ter o maior êxito, os leitores que hão de ter a curiosidade de lá ir, terão que concordar conosco em que a fotografia é o vivo demônio.” (VIANY, 1993, p.131)

E qual era o cenário do Brasil à época da sua primeira sessão de cinema? Quem nos responde é GOMES(1996, p.08) que registra, numa análise lúcida, sucinta e personificadora, o encontro do cinema com o Brasil:
“Esse fruto da aceleração do progresso técnico e científico encontrou o Brasil estagnado no subdesenvolvimento, arrastando-se sob a herança penosa de um sistema econômico escravocrata e um regime político monárquico que só haviam sido abolidos respectivamente em 1888 e 1889.”

Sendo necessário explicitar o que diz o autor, fiquemos com estes exemplos: o Rio de Janeiro (e o Brasil como um todo, porque, naquela época, o que no Rio faltasse inexistia também no resto do país) ainda estava distante da eletricidade, que só chagaria em 1907 – os lampiões dominavam a paisagem noturna; os bondes eram puxados a burro; a cidade era constantemente assaltada por epidemias; o teatro – maior diversão da sociedade que amava a cultura e as belas artes – carecia de novidades e de pujança; predominava, na distribuição urbana, uma arquitetura colonial, feita de ruas estreitas, casarões e prédios públicos e uma infinidade de cortiços; proliferava o jogo do bicho; e, para completar, chovia rotineira e copiosamente, encolhendo os moradores em casa e desanimando a vida noturna.
Mas esse quadro de subdesenvolvimento não intimidou os animadores da cinematografia (entendida aqui como a atividade de exibir os cinematógrafos, e não no sentido que assume depois, já no período de consolidação do filme como produto de ponta do negócio do cinema). Pelo contrário. Para uma população acostumada a poucos divertimentos interessantes, tendo que se contentar, quase sempre, com jogos de salão, festas de largo (procissões, quermesses, passeios e variantes), visitas, circos e apresentações de excentricidades, além dos espetáculos de teatro, o cinema se revestiu de uma “redenção do ócio”. Tal é fato que, menos de um ano depois do comprovado sucesso de público do Ominiógrafo, a cidade ganhou um outro projetor. E este veio pelas mãos da atriz Apolônia Pinto e seu esposo, Germano Silva que, voltando de uma excursão pela Europa, adquiriram um Cinematógrafo Lumiére, anunciado como sendo “o primeiro da América do Sul”. Este aparelho estreou em 15 de julho de 1897, no Teatro Lucinda, compondo um espetáculo de variedades em que também se apresentavam uma companhia de zarzuelas e outra de animais amestrados.
No mesmo mês de julho, no último dia, inauguraria a primeira sala fixa de cinema do Rio de Janeiro, com o sugestivo nome de Salão Paris no Rio – nada mais apropriado à França Tropical que se tornou a corte brasileira, cheia de francesismos nos ateliês, nos títulos das livrarias, nos jornais, nos diálogos, nos usos e costumes sociais e domésticos. Pertencia à empresa Sales & Segreto, sociedade formada pelos conhecidos personagens da vida noturna e das diversões cariocas: o dr. Cunha Sales, empresário do jogo do bicho e proprietário do Panteon Ceroplástico, um museu de cera famoso na cidade e Paschoal Segreto, o maior empresário de entretenimentos da Belle Époque, que em 1900 receberia o sugestivo (e para muitos não menos merecido) título de Ministro das Diversões. O Salão Paris estava localizado no número 141 da Rua do Ouvidor e apresentava à sociedade da corte o seu Animatógrafo Lumiérie ou ainda Vitascópio Super-Lumiére, conforme denominaram confusamente os jornais – esta confusão terminológica, nos primeiros tempos do cinema, era corriqueira, uma vez que foram o Cinematógrafo e o Vitascópio, inventados respectivamente pelos irmãos Lumière e Tomas Edison, os aparelhos mais difundidos. Uma outra razão é o fato de que, depois que os Lumiére oficializaram o seu aparelho, todos os outros passaram, por metonímia, a ser também designados de cinematógrafos ou animatógrafos.
O cinematógrafo causou frisson no Rio de Janeiro, o que é perfeitamente compreensível pelas suas especificidades. Tratado como divertimento novo, desconhecido, estranho, rebento da modernidade, da ciência e da industrialização, ganhou uma singularidade potencializada. As pessoas queriam ver esta máquina na qual “...as fotografias por ele projetadas revelam-se com tanta nitidez e verdade, com tanta seriedade e precisão, que muitas vezes deixa o espírito na dúvida, se está, ou não diante da própria realidade.”, como afirmava uma propaganda das sessões do Cinematógrafo Lumière no Teatro Lucinda. E, em maior ou menor grau, este era o tom tanto das críticas quanto dos textos publicitários das exibições: “...maravilhosas exibições de projeções a luz elétrica, de vistas animadas em tamanho natural, que têm provocado ultimamente em Paris e Europa inteira uma assombrosa admiração.”, dizia um jornal acerca do Ominiógrafo; “...a última palavra do engenho humano! A mais sublime maravilha de todos os séculos! Pinturas moverem-se, andarem, trabalharem, sorrirem, chorarem, morrerem, com tanta perfeição e nitidez, como se homens, animais e cousas naturais fossem; é o assombro dos assombros!” afirmava o anúncio do Animatógrafo do Salão Paris.
O Rio se constituiria, em bem pouco tempo, uma terra fértil para a proliferação de cinematógrafos. Passada a fase pioneira, muitos outros cinematógrafos se espalhariam pela cidade, alargariam suas fronteiras para além da Rua do Ouvidor e se constituiriam, em pouquíssimo tempo, num entretenimento de grande acolhida pela população. Aquilo que ARAÚJO (1985, p. 28) afirmava ser “...a primeira diversão produzida na era industrial”, tornou-se também, na Corte que passaria logo a Capital da República, uma diversão popular, popularíssima, confirmando a tendência da sua trajetória nos países da Europa e nos Estados Unidos, culminando com a situação de febre epidêmica que acometeria a cidade, a partir de 1907, da qual há registros formidáveis entre os intelectuais .
“Depois da primeira sessão de cinema realizada no Brasil, em 8 de julho de 1896, surgiram os “ambulantes” (...) Assim eram chamados os projecionistas que viajavam de cidade em cidade, de vila em vila, levando a novidade às populações do interior.” A afirmação de NORONHA (1987) resume bem como se deu o processo de pulverização dos cinematógrafos pela paisagem dos estados brasileiros. Há que se considerar, aqui, a dificuldade de obtenção de dados que permitam traçar, fielmente, todos os percursos que esses aparelhos fizeram. Além das poucas pesquisas desenvolvidas sobre os primórdios do cinema no Brasil, as que conseguem vir a lume enfrentam o problema da precariedade das edições de literatura científica, ficando muito reservadas , quase domésticas , o que impossibilita o acesso de pesquisadores. Ressalvando-se as pesquisas sobre cinema no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e um ou outro ciclo regional, pouco se sabe sobre as primeiras aventuras dos exibidores ambulantes que, como bandeirantes, cruzavam os mares, rios e sertões para mostrar esta novidade fim-de-siècle a quem pudesse pagar, pelo menos, mil réis de entrada.
Assim, ARAÚJO (1981) registra que, em fevereiro de 1897, a população de São Paulo assistiu às projeções das vistas animadas do Vitascópio Edison. Um ano depois, chegaria um cinematógrafo Lumière, trazido do Rio como uma das atrações da temporada da Companhia de Novidades Excêntricas, empresa de propriedade do Dr. Cunha Sales. SILVA (1995) dá como data provável da primeira exibição de cinema em Belo Horizonte a noite de 10 de julho de 1898, sem maiores detalhes. E SILVEIRA (1978) faz um precioso registro da chegada do Cinema na Bahia, agitando a pequena e imponente província e, numa noite de gala, lotando o Teatro Politeama com quase 2000 pessoas para ver o cinematógrafo, em 04 de dezembro de 1897.

Um desses aventureiros e novidadeiros atracou no porto de São Luís em meados de 1898. Trazia uma máquina que projetava imagens e tratou de divulgá-la nos jornais como “a ultima invenção deste fim de seculo em materia de maravilhas”. Tratava-se de um Cronofotógrafo “Maravilhoso invento de Demeny – Photographias Animadas” como bem dizia o anúncio. O aventureiro chamava-se senhor Moura Quineau, hábil fotógrafo que já residira em São Luís e que, pelo visto, também se rendera ao sonho do ganho rápido, fácil e alto que esses aparelhos possibilitavam.
O senhor Moura Quineau estava de passagem para o norte do país (possivelmente Belém ou Manaus, as duas maiores cidades desta região, para onde seguiam muitos espetáculos) e, como bem deixou avisado nos anúncios que fez publicar logo na estréia, não tinha a intenção de demorar-se em São Luís. O Cronofotógrafo permaneceu na cidade de 10 de abril a 15 de maio, dando sessões todas as noites, às 7, 8 e 9 horas, numa pequena sala na Rua do Sol, em frente ao Teatro São Luís. A entrada custava 1000 reáis por pessoa, com direito a cadeira.
A temporada parece ter sido exitosa, apesar de uma concorrência desleal. A menos de 10 menos do Cronofotógrafo, apresentava-se com a pompa e o luxo merecidos, a respeitada companhia teatral Dias Braga. Trabalhando com poucos recursos (geralmente os exibidores ambulantes não dispunham de muitos recursos para investir na promoção do seu espetáculo, confiando quase tão-somente na singularidade do que traziam, na propaganda espontânea que já vem inclusa nas novidades), limitando a sua divulgação a poucos e pequenos anúncios em jornal, à distribuição de cartazes e panfletos e contando com a boa acolhida da crítica dos dois principais jornas da cidade, o proprietário conseguiu o seu espaço, o seu público e o seu lucro, deixando a cidade satisfeito e voltando, tempos depois, com um novo aparelho de projeção.
Quatro dias após a estréia, o jornal Pacotilha, o de maior tiragem da cidade, com 2000 exemplares vendidos diariamente, registra as primeiras impressões acerca tanto do aparelho quanto da nova diversão que se anunciava:


“O Cronophotographo
É realmente interessante o cronophotographo que o sr. Moura Quineau tem exhibido n’um compartimento, em frente ao Theatro.
Por bem feita disposição de photographias, vê-se, como no cinematographo as figuras tomarem movimento, andarem, dansarem, jogarem esgrima, conduzirem carga, passearem a cavalo, tendo todos os movimentos e poses differentes.
Vale a pena ver-se o cronophotographo, que aliás não gasta muito tempo, não excedendo todos os seus actos de 15 a 20 minutos, no maximo.”

Seriam apenas as primeiras de muitas linhas que ainda se escreveriam pelos jornais sobre a passagem dos aparelhos de projeção de fotografias animadas por São Luís; sobre a introdução dessa novidade da era industrial, moderna, fim-de-siècle na pequena província do Maranhão, esquecida do restante do País, a pequena ilha apenas lembrada, como Atenas Brasileira, por força dos seus vultos históricos e culturais que marcaram o cenário nacional (Odorico Mendes, João Lisboa, Gonçalves Dias, Raimundo Corrêa, Aluísio e Arthur Azevedo e outros) e da qual sabia o resto do país que possuía uma classe aristocrática de finos tratos europeizados, de grandes posses, de tradicionais fortunas. Mas que, à época da introdução do cinema como espetáculo, apenas vivia dos retratos deste passado imponente pregados nas paredes grossas dos casarões ou escondidos em gavetas de cômoda de madeira de lei.


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