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Ensaios-->A Persistência do Desejo - Uma Síntese da Literatura Gay BR -- 25/02/2003 - 12:50 (Antonio Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A PERSISTÊNCIA DO DESEJO –
UMA SÍNTESE DA LITERATURA GAY BRASILEIRA

por Antonio Júnior (*)
Natal (RN)

“O que ocultamos,é o que importa,é o que somos”
(Lúcio Cardoso, Diário Completo,1949-62)

Seria redundante chamar tal poesia de experimental, uma vez que, toda poesia autêntica, ultrapassando o limite do dizível e do nominável, não pode ser senão experimental. O certo é que o relançamento do livro de poesias “Falo”, após mais de duas décadas, permite avaliar, com mais nitidez do que na repressora época do seu lançamento, o essencial do homoerotismo criador do seu autor, Paulo Augusto. É também uma boa ocasião para abordar a literatura gay brasileira, embora não a veja enquanto gênero literário específico. Uma nação, a nossa, onde a obra de conteúdo homossexual freqüentemente tem minizado o aspecto literário para se concentrar em julgamento moral. Os contemporâneos deste livro transgressor, aqueles que chegaram a lê-lo nos duros anos 70, puderam observar, talvez com precisão, o que havia de pessoal e irreverente no estilo do poeta potiguar. O recuo no tempo e a superação da fase que o tema gay não vendia e era lido as escondidas, deixam-nos ver agora, em saliência, no complexo contexto desta poética, o tecido próprio da arte dita marginal.

A obra é do tempo do Lampião da Esquina, um jornal porta-voz dos gays brasileiros que se publicou entre 1978 e 1981, lançando nomes como Aguinaldo Silva e João Silvério Trevisan, este autor do fundamental “Devassos no Paraíso”(1986), a história da homossexualidade brasileira dos tempos coloniais até ao fim do milênio. Na introdução deste estudo fecundo que já nasceu clássico, Trevisan fala do homossexual como de alguém que instaura uma dúvida, 'algo que afirma uma incerteza, que abre espaço para a diferença e que se constitui em signo de contradição frente aos padrões da normalidade'. Paulo Augusto, nada preocupado com dar uma visão politicamente correta das evidências, provoca a partir do próprio título, “Falo”, um ambíguo jogo entre a palavra dita com autoridade e o órgão sexual masculino. Ele questiona tanto o comportamento dos chamados “frescos” como o enrustido, num estimulante embate entre o desejo e a denúncia, construindo uma poética de forte vibração erótica, nunca pornográfica.

A experiência do poeta não é de hoje. Apenas agora ela adquiriu uma total plenitude de sentido e de maneira. O Brasil iniciou-se no gênero com “Bom-Crioulo”(1895), do cearense Adolfo Caminha, considerado o primeiro romance, em todo o mundo, a abordar o amor homossexual de forma direta. Narra o envolvimento amoroso entre dois marinheiros, um deles negro, inclusive com descrições detalhadas de atos sexuais. O autor utilizou vasta soma de informação obtida a partir de depoimentos prestados em audiências jurídicas relacionadas com casos de sodomia na Marinha e no Exército. A publicação do livro suscitou escândalo e controvérsia. Em 1937, a Marinha solicitou e obteve do presidente Getúlio Vargas o embargo de uma nova reedição. Só noventa anos depois da 1ª edição o livro voltou às livrarias e às bibliotecas públicas e escolares.

Em 1914, a revista Rio Nu publicou “O Menino de Gouveia”, de autor anônimo, conto ilustrado com a imagem nítida de dois homens praticando sexo anal. Mais de 60 anos antes, o poeta romântico Álvares de Azevedo, que morreu antes de completar 21 anos, deixou uma apaixonada carta de despedida a um amante: “Luís, há aí não sei quê no meu coração que me diz que talvez tudo esteja findo entre nós [...] há em algumas de minhas cartas a ti uma história inteira de dois anos, uma lenda, dolorosa sim mas verdadeira, como uma autópsia de sofrimento. Luís, é uma sina minha que eu amasse muito e que ninguém me amasse. Assim como eu te amo, ama-me”. Mário de Andrade, que tinha problemas com a sua opção sexual e era amigo íntimo de Luís da Câmara Cascudo e Manuel Bandeira, escreveu contos falando de amores entre rapazes. Numa das suas crônicas, o autor da rapsódia “Macunaíma – Herói sem Nenhum Caráter”(1926), diz: 'É por causa do meu engraxate que ando agora em plena desolação. Meu engraxate me deixou'. Mário foi muitas vezes ridicularizado por Oswald de Andrade, que o chamava 'o nosso Miss São Paulo traduzido em masculino'.

O sociólogo Gilberto Freyre, como chegou a declarar em entrevistas, também gostava da fruta. Ao publicar “Casa-Grande & Senzala”(1933) foi acusado nos meios tradicionalistas como pernicioso e pornográfico. Assim como o poeta oficial Olavo Bilac, que compôs o “Hino Nacional”, e o inventivo cronista João do Rio, que aos 18 anos publicou dois contos homoeróticos: “Impotência” e “Ódio”. O solitário baiano Sósigenes Costa, o criador de “Iararana”, publicado postumamente em 1979, teve a sua homossexualidade abafada durante décadas e quando há dois anos toda a sua obra foi relançada graças ao aval de José Paulo Paes, não encontrei nenhum estudioso com valentia de comentar sobre a sua sexualidade, o máximo dito foi que “não é importante para a compreensão de sua poética”. O que não é verdade. Nos anos seguintes, destacaram-se outros escritores gays: Aníbal Machado, autor de “João Ternura”(1965); o injustamente esquecido Otávio de Faria e o genial mineiro Lúcio Cardoso, um dos maiores escritores da nossa literatura, autor de “Crônica da Casa Assassinada”(1959), além de poeta, cineasta e dramaturgo.O seu “Diário Completo”(1949-62) tem passagens densas e reveladoras: “A profundeza da sensualidade é espantosa, é como um caminho sem fim. Mas caminho perfeitamente igual nas suas linhas, nas suas curvas, nos seus processos, como um vasto corredor que atravessássemos, mostrando a mesma paisagem sem surpresa”.

A poesia homoerótica de Mário Faustino, um parceiro de juventude de Paulo Francis, só raramente é lembrada. Morreu em 1962, num desastre de avião, com apenas 32 anos. Não podemos esquecer Paulo Hecker Filho, autor de “Internato”(1951). Nos anos 60 e 70 falou-se muito da escritora Cassandra Rios, que vendia em média trezentos mil exemplares anuais, e que por descrever cenas amorosas entre lésbicas foi muitas vezes intimada a comparecer perante juízes e delegados, acusada de atentado à moral e aos bons costumes. O escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, nas nossas conversas poucos anos antes de sua morte, falava do tabu em torno da secreta vida amorosa da acadêmica Nélida Piñon, do romance na Itália entre Diogo Mainardi (autor do hediondo “Polígono das Secas”, 1995) e o norte-americano Gore Vidal, além do amor irrealizado da escritora Olga Borelli por Clarice Lispector. Ela cuidou da autora de “Perto do Coração Selvagem”(1944), quando doente e até a sua morte, com paciência e dedicação. A homossexualidade do mineiro Pedro Nava só foi revelada após o seu desaparecimento. Uma história sensível e importante foi o romance entre a poeta norte-americana Elizabeth Bishop e a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares, registrado em cartas e no livro “Flores Raras e Banalíssimas”(1995), de Carmen L. Oliveira. Elas viveram juntas por dez anos na casa de Samambaia, perto de Petrópolis. O álcool destruiria essa relação, mas Bishop só voltou aos Estados Unidos depois do suicídio de Lota. No romance “O Grupo / The Group”(1963), de Mary McCarthy, a baronesa lésbica é inspirada em Lota. Vange Leonel, Valdelice Pinheiro e Leila Miccolis são nomes importantes na literatura lésbica brasileira.

Caio Fernando Abreu, o autor de “Morangos Mofados”(1981) e “Onde Andará Dulce Veiga?”(1990), surgiu nos anos 70 e nunca escondeu sua homossexualidade. As cartas que escreveu para a poeta Hilda Hilst, autora da história gay “Rútilo Nada”(1993), são comoventes, assim como alguns contos, destacando-se “Aqueles Dois”. Nesta mesma década faz-se notar a obra ficcional de Aguinaldo Silva e Darcy Penteado (autor de “A Meta”, 1976, coletânea de contos autobiográficos). Aguinaldo Silva publica em 1975, “Primeira Carta aos Andróginos”, um relato cru dos engates num cinema carioca. Outros nomes importantes para a compreensão literária gay nacional são os de João Gilberto Noll, Silviano Santiago, Herbert Daniel, Bernardo Carvalho, Luis Capucho, Jean-Claude Bernardet e os poetas Roberto Piva (se classifica como 'eu sou o jet-set do amor maldito'), Glauco Mattoso, Valdo Mota, Ítalo Moriconi, Antonio Cícero e Nestor Perlongher, argentino que vivia em São Paulo. Silviano Santiago, também poeta e ensaísta, não passou despercebido com “Stella Manhattan”(1985) e enfrentou vergonha e culpa no seu romance “Uma História de Família”(1993). Herbert Daniel é autor de um sincero livro autobiográfico, “Passagem para o Próximo Sonho”(1982), obra que narra sua participação na guerrilha brasileira e seus problemas enquanto homossexual que, após fugir do Brasil durante a ditadura de 1964, acabou se empregando como porteiro numa sauna gay de Paris. Jean-Claude Bernardet, em parceria com Teixeira Coelho, publicou em 1993 a novela epistolar “Os Histéricos”. Bernardo Carvalho é autor do excelente volumes de contos “Aberração”(1993). Capucho escreveu o erótico-pornô “Cinema Orly”(1999) e o capixaba Valdo Mota é um adepto da sodomia mística literária.

Na dramaturgia, Nelson Rodrigues deu a senha do “ladrão boliviano” em “Toda a Nudez Será Castigada”(1965); Chico Buarque de Holanda imortalizou o travesti Geni em “A Ópera do Malandro”(1978); e Plínio Marcos comoveu platéias com o homossexual marginal Veludo de “Navalha na Carne”(1967). Nenhum deles é gay, mas trataram o tema com sensibilidade e verdade. Mas talvez a mais importante obra tupiniquim de celebração gay seja “Grande Sertão: Veredas”(1956), onde Guimarães Rosa desenha a ambigüidade. Nesse épico da linguagem, o jagunço Riobaldo ama secretamente seu jovem parceiro Diadorim, sem saber que ele não passa de uma mulher masculinizada. O escritor italiano Claudio Magris disse tratar-se “de uma das mais importantes histórias gays já escritas”. No Rio Grande do Norte, além de Paulo Augusto, destacam-se vários escritores e poetas de homossexualidade latente.

Dedicando “Falo” ao lendário marginal João Francisco dos Santos, que passou à história como Madame Satã, Paulo Augusto toca nas idéias e comportamentos libertários da contracultura dos 70, caracterizando uma identidade que reivindica o lugar da diferença. Obra que assume uma importância poética, para além da estética, contribuindo que o indivíduo se liberte das amarras sociais e morais. O autor traz para dentro de seu texto a narrativa de suas experiências, de suas emoções, de uma sensualidade pulsante que motivou o interesse poético. Ele demonstra que poeta é justamente aquele que, longe de buscar amparo em reconhecimentos, deixa acontecer, ou melhor, fomenta em si mesmo, no mundo e nas palavras, o desamparo do desconhecido, do espantoso, do valente.





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