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Ensaios-->Mestiço -- 16/04/2003 - 23:07 (Francisco Nazareth) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Contra a Arrogância Anglo-Saxónica: Alguns Parágrafos de Esperança Mestiça
 
1 – Assistimos hoje, no discurso político que domina a grande coligação anglo-saxónica belicista, ao triunfo total da modernidade. Enquanto Blair assume a imagem da razão progressista abstracta, Howard é a imagem falsificada do homem comum que trabalha e acredita no progresso prático de quem é empreendedor. Já Bush subsume tudo isto dentro de uma imagem belicista e conquistadora: qual súmula evolutiva do darwinismo social, ele é o triunfo do mais forte, do mais apto; um verdadeiro Daniel Boone de fato e gravata. Eu queria contrapor a esta modernidade abstracta, elitista, progressista, teleológica e bélica uma pós-modernidade: mas uma pós-modernidade política de esquerda, fazendo minhas as palavras de Boaventura Sousa Santos: uma pós-modernidade que seja “um humanismo (…) construído contra as abstracções iluministas, a partir da resistência concreta ao sofrimento humano”. Vejo esta pós-modernidade no discurso de posse do novo presidente brasileiro, o amigo Luís Inácio Lula da Silva. Ela é um discurso que parte da casuística. Assume a existência a partir da interacção e não a partir de conceitos impostos como “guarda-chuvas” teóricos desde palácios nos quais a fome nunca entrou. Ela é fluida, insistentemente contraditória, incompleta, errante, “misturada” e humana, exactamente porque diversa e “outra”. Para a explicar melhor, preciso de a contrapor ao habitual discurso da esquerda moderna, também ela habitualmente situada dentro do mito progressista. E, para perceber a esquerda moderna, é necessário ver ainda onde se situa o seu ponto de conflitualidade com a direita moderna.
2 – Tanto a direita moderna como a esquerda moderna são essencialmente paternalistas, usando muitas vezes mecanismos de opressão construídos na base de imagens que vêm de “baixo”, ou seja, da sua reprodução como mecanismos de poder dentro da própria estrutura da sociedade, por exemplo, na família, na igreja, na fábrica, na escola, etc. Usam para isso o mito salvífico do messianismo que, na cultura portuguesa, se traduziu na psique sebastianista. É em torno do “político pai”, que salvará o mundo do caos, que se joga a grande narrativa da razão: o político surge como um profeta do “melhor dos mundos possíveis” – à maneira de Leibniz – cuja chegada passa pelo assumir da modernidade contra o arcaísmo, isto é, pelo discurso do progresso como mecânica da divisão social e racionalizada do trabalho, pela produção em série, pela construção da corporação em forma de organigrama ou, como outro exemplo, mediante a planificação e o rigor metodológicos. Estes processos assumem sempre a forma de um elitismo teleológico: é o “político pai” quem conhece os fins; é ele que guia a massa em direcção ao reino da felicidade e é ele quem conhece melhor (quando muitas vezes não se apresenta até como seu criador) a estratégia para lá chegar. Contudo, a esquerda e a direita modernas optam por diferentes tácticas: uma pensa realizar o “reino kantiano dos fins” mediante a flexibilização e a diminuição do estado; é esta a perspectiva do neo-liberalismo. A outra sonha com o alcance da “igualdade ilustrada” mediante o uso racional do progresso estatizado. Na sua teleologia, ambas seguem o mito da razão com resultados diferentes: a imagem do progresso oculta à direita a exclusão (mediante a venda corporativa do espaço público) e à esquerda a burocratização (através da criação de uma máquina estatal pesada, “politburesca” e macrocéfala). Onde coincidem? Na produção sistemática (isto é, feita pelo sistema) de alienação. Esta degrada a própria ideia de política (surgindo esta divorciada do pensamento e da ética) uma vez que o poder não é visto de forma atributiva nem é disseminado como consciência (que seriam características de uma esquerda pós-moderna). A acompanhar a alienação surge, tanto na direita como na esquerda modernas, a estetização mediática: a reprodução massiva do signo como espectáculo, normalmente através da produção de binómios modernos simplistas – tal como o proprio binómio entre esquerda e direita com o qual se pensa esta diferença particular à falta de melhor – (bom/mau, segurança/medo, exterior/interior, outro/mesmo, claro/escuro, etc), cria indiferença e manobra as expectativas em direcção à previsibilidade e ao anteceder “seguro” e arrogante das consequências (é o que acontece com a presente Guerra: o “script” já estava escrito antes). Essa criação da indiferença faz, por sua vez, com que a política deixe de ser política: uma vez que se cria a ilusão da transparência, produz-se nas pessoas o desejo de delegar a sua vontade democrática no “político-pai”; este, por sua vez, deixa de ter um estatuto representativo ou participativo (o que seria próprio de uma esquerda pós-moderna) para passar a ser um holograma construído com base no espelhar televisivodos desejos e aspirações de uma maioria passiva, comodificada, espectacularizada. Sendo – de facto – uma maioria nesse “primeiro” mundo consumidor de imagens e bens materiais, é minoria no resto do globo (contando já aqui os excluídos que residem no “primeiro” mundo), o qual é sugado para as necessidades do primeiro no qual os seus “políticos-pais” fazem crer que o único caminho para a felicidade é aquele que sai dos seus valores tidos como universais. Assim, uma vez que se “manufactura o consenso” (a expressão é de Chomsky), faz-se crer, através da visão uniformizada (segundo a qual certos valores do ocidente são os melhores e têm que ser impostos ao “outro”, nem que para isso se use a força), que a razão é a única forma de produzir felicidade (esta, obviamente, confundida com o progresso e a evolução). Assim, os políticos são substituíveis em função do “anjo da razão” que é o sistema (produtor de um simbolismo abstracto, divorciado do real, unívoco, unidimensional, isto é, uma máscara sem rosto). Este, produto de uma estratégia de poder como panóptico, isto é, como controlo e vigilância, surge envolto num discurso que dilui a diferença entre o verdadeiro e o falso, através da racionalidade da retórica. Ora é esta mesma que produz o desencantamento da democracia (talvez uma das razões, para além de outras, pelas quais 50% dos americanos não votam e 25% dos australianos votam “nulo”) e a sua consequente transformação – na modernidade – em ditadura de uma censura não facilmente decifrável (uma vez que esta veste a roupagem do sonho comercializado sob a forma de comodidade, sedução e imagem).
3 – Neste sentido, uma pós-modernidade de esquerda (para além de outras características que fui apontando) é uma pós-modernidade que apropria o conceito de “desobediência civil” como vontade de poder (inspirada no dionisíaco de Nietzsche e no panteísmo de – ninguém melhor, neste caso, que um pensador americano – Thoreau): contra uma produção da lei como violência, a revolução da não-violência, da manifestação pública do rosto, da procura da verdade como autenticidade (o que é também um acto nietzscheano). Buscar a transmutação axiológica contra a escravatura passa por resistir ao estado quando ele é corrupto, isto é, quando olha o outro sem o ver como igual na humanidade, tornando-o, por isso, objecto: é por isso que uma sociedade alienada é constituída por indivíduos passivos, tornados objectos que projectam no outro – que ainda não é objecto – o desejo de o tornar igual. Esses indivíduos egoístas desinteressam-se do bem comum da humanidade porque a julgam universal, ou seja, confundem a sua passividade com uma passividade globalizada. Indiferentes à barbárie, deslocam essa mesma carnificina para fora de si: ela só existe enquanto projecção televisiva, exactamente como o holograma que os governa. Fora de si (voltamos à dicotomia exterior/interior) a barbárie é cómoda porque está deslocada, uma vez que o poder da imagem apenas a reconfigura como uma “barbárie outra”, que está além, que está fora e é culpada de não querer ser mesma, isto é, de não querer partilhar dessa mesma comodificação. Assim, o “civilizado”, o “evoluído” e o “progressista” (que são o “mesmo”) atira(m) para fora o “outro” (o “bárbaro”, o “arcaico” e a “besta”). O bárbaro é aquele que não aceita a civilização conforme “nós” a vemos, ou seja, como a globalização de um modo único de ver o mundo.
4 – Como resistência a este modo de ver as coisas, urge, por isso, uma pós-modernidade de esquerda. Ela é, já o dissémos, necessariamente incompleta e consciente dessa incompletude;ela é contraditória e consciente das suas contradições, uma vez que vive do conflito, isto é, assume o conflito : é, por isso, fluida porque procura, errante porque conceptualmente nómada, misturada porque intelectualmente mestiça, alimentando-se da diversidade, abraçando o humano e – ao não estar “de fora” – perspectivando-se como “outra” e perspectivando o outro (não o engolindo) como “outro”. Ela é, por isso, participativa porque não delegatória, atributiva porque responsabilizante, consciente porque não egoísta, não passiva e comunitária. Anti-paternalista, concebe-se como distributiva de poder; não-salvífica, parte de uma cidadania reflexiva, isto é, de uma cidadania cosmopolita que sabe que não existem sociedades perfeitas nem culturas completas (ao “multiculturalismo” ela prefere o “inter-culturalismo” como processo em direcção à possibilidade de se trabalhar um “trans-culturalismo”). Não-teleológica, não vê o progresso como um ideal abstracto ou um reino dos fins, substituindo-o por uma noção de justiça não como ideal, mas como prática quotidiana do bem comum e da comunidade (perfil ético da política). Nesse sentido, ela não é estratégica, nem metódica, nem vigilante (ou panóptica). Substitui tais conceitos, produzidos pelo falso universalismo da arrogância branca ocidental, pela necessidade de uma atenção permanente ao contexto, à pluralidade. No entanto - e para finalizar – contra a direita pós-moderna, ela não é cínica, nem indiferente, nem vazia, nem sonâmbula, nem amnésica. Parte da denúncia permanente das formas de opressão que impedem o humano de se concretizar nas várias e diversas (portanto, plurais) formas que este assume.
5 – Ao analisarmos o cumprimento da modernidade pelos “senhores da Guerra”, talvez seja útil começar respondendo às suas marcas distintivas: porque são eles paternalistas? Exactamente no sentido em que o seu poder se exibe (com várias nuances) sob a forma de um discurso fálico. Nesse contexto, trata-se de assumir a nível do discurso político uma das narrativas dominantes do ocidente, que se ergueu sob a forma do patriarcado. Essa tutela sub-consciente ultrapassa diversas divisões sociais, para se erguer desde a família (o “chefe”) até à escola (o “mestre” e o “reitor”), passando ainda pela instituição militar (até a internet se hierarquizou em função do “Phalo” corporativo, de uma forma que faz lembrar o filme “In the Company of Men”). Mesmo quando ocupada por uma figura feminina, a tendência normal (ou normalizada) da chefia ocidental (não quer dizer que não exista, por exemplo, no oriente: isso já está assumido) é o seu carácter eminentemente intrusivo, isto é, penetrante, violador da intimidade. Nesse sentido, o patriarcado ocidental é visivelmente fálico no sentido da vigilância, isto é, no aspecto freudiano de uma construção bloqueada da repressão. Nos casos presentes, ele assume características diversas: enquanto Blair toma normalmente a forma do “pai conselheiro” (informador, apaziguador, construtor – dentro da mentalidade do “filho prevaricador” – de uma interiorização da norma da lei), já Bush assume o discurso do “pai tirano” (aquele que proíbe, que pune, que extorque, imagem muito própria da extensão do braço em direcção à arma – como no filme “Winchester 73” – cuja espiritualidade se sente castrada no caso da ausência desse mesmo fuzil). Já Howard, por seu lado, tem a figura do “pai companheiro” pseudo-igualitário (preocupado com o bem estar da “família”, simples, amante de desporto na nostálgica companhia de um filho cuja prevaricação está desejoso de trazer de volta para os “carris da normalidade”, nos quais “deve” cumprir a missão de um respeito universal pelas instituições e pelo direito criados pelo pai). Onde se cruzam, então, as características deste patriarcado? Na mitologia da salvação.
6 – Tudo isto, porque se trata de convencer os rebeldes que “nós”, os “pais”, sabemos o que é melhor para “eles”. Afinal, nós somos a civilização desenvolvida, porque nós é que criámos a “riqueza” com que eles se alimentaram tanto tempo e que agora pretendem rejeitar! Não esquecer, apesar de tantos anos de sanções, que o Iraque de Saddam era, apesar do “estalinismo” dominante, o estado mais secular da região. Esquecer tudo isto, é esquecer que para os iraquianos também Saddam desempenhou a figura do “pai”, do condutor austero, do tirano laico. É esquecer também que, em seeculos de dominação, nunca ninguém perguntou, de facto, ao povo do Iraque o que este desejava. É esquecer que o Iraque é um produto do fim do colonialismo inglês e, com ele, da divisão das suas várias etnias, entre as quais as mais oprimidas (os Curdos e os Xiitas) pelas armas ocidentais dos sucessivos governos de Bagdade. Neste sentido, o mito da legitimidade do salvador, na sua crença de superioridade, produziu miséria e desolação. Dividiu (por exemplo, o Curdistão em quatro) em vez de unir. Aniquilou em vez de alimentar. O salvador, o pai salvador, é assim o produtor da miséria do filho, de um filho negado ao qual nunca foi perguntado se, enquanto outro, aceitava essa filiação judaico-cristã. Visto como arcaico, esse filho é negado dentro do mito da razão associada ao progresso e é visto, enquanto tal, como inferior, dentro de uma concepção de sobrevivência da cultura mais forte, eivada de elitismo teleológico (crença de que os valores de um têm que ser os valores de todos, isto é, universais). Tal concepção tem profundas raízes no mundo anglo-saxónico, nomeadamente através da associação do puritanismo religioso com o evolucionismo. Esta não surge tanto no plano do evolucionismo darwinista (embora o darwinismo possa ser visto como uma teodiceia), uma vez que a noção de evolução por adaptação, em Darwin, dava uma maior ênfase ao contexto (alias, falar em evolução no plano darwinista e, mais tarde, no plano da genética das populações, não corresponde totalmente a falar numa evolução onto-teo-teleológica, como se existisse apenas um plano pré-estabelecido dentro de uma qualquer noção de “natureza”). Nos discursos políticos de Blair, Howard e Bush, sobretudo no que se refere à habitual tese do “choque de civilizações” (reportada a Huntington) e à superioridade do ocidente (cujo grande arauto é David Landes), a versão evolucionista mais frequente é a do darwinismo social. Esta corresponde a uma marca fundamental da modernidade dominante anglo-saxónica e da sua concretização no discurso globalizado neo-liberal.
7 – De facto, enquanto Darwin concebia a diferença com relativa a factores geográficos, que entravam no jogo da selecção como momentos decisivos de “escolha” por adaptação (por isso diferiu de Lamarck, muito mais determinista), hoje temos tendência – no plano dos discursos culturalistas que se tornam inconscientemente discriminatórios – para pensar a diferença apenas a partir da cultura e para reinvestir a biologia a partir dela, com uma quase que geral tendência para universalizar. De facto, este é um dos frutos perversos do marxismo na ideologia neo-liberal. Enquanto que algumas das ideias fundamentais da crítica social marxista (como a alienação, o humanismo genérico e a análise da divisão do trabalho) foram relegadas para o “caixote de lixo” da história (sobretudo porque abaladas pelo estalinismo, que as silenciou), aquelas que se mantiveram foram curiosamente adaptadas pelo discurso neo-liberal, numa curiosa união – profundamente moderna – entre a oficialização burocrática e propagandista do “pai” Joseph e os arautos da “livre” iniciativa. Entre estas ideias está – obviamente – a ideia de que a história tem um sentido – um “fim” (enquanto finalidade hegeliana) – aliás muito bem aproveitada pelos pensadoresda democracia liberal no seu contentamento com esta enquanto estado acabado e perfeito do “espírito”. É neste sentido que se inscreve – enquanto tipicamente marxista – a descrição que David Landes faz da “inevitabilidade” da subida ao poder da burguesia europeia. É também no plano do reinvestimento cultural de uma noção “ambígua” (e também ela produzida culturalmente) de “natureza” que surge a forçada versão que Herbert Spencer deu de Darwin. Na senda do cientismo próprio da época (bem descrito por Comte no sentido de que “ou as ciências humanas se tornavam … científicas (!) ou não eram ciências” … Dilthey reagiria com a diferenciação entre explicação e compreensão) Spencer acreditava que os europeus brancos e protestantes tinham evoluído (ou progredido) mais que o “resto” e que a versão correcta do mais adaptado era aquele que dominava através do poder económico contra os pobres (ou seja, o grupo dos “não dotados” de capacidade competitiva). Para Spencer, uma sociedade ilustrada seria aquela em que os inadaptados fossem “autorizados” a morrer. Por outro lado, associada ao “contrato” calvinista, esta teoria transformou – nos países anglo-saxónicos – o estado previdência no contrário dessa “autorização para a morte” através da psicologia da vítima. Por outras palavras: aos “incapazes” (definidos como incapazes a partir “de cima”) não deve ser dada educação (algo que eles “obviamente” não alcançam) mas, sim, auxílio no sentido do “coitado” que não consegue e por isso deve ser ajudado. Quem se passeia, hoje, pelas ruas de Londres, Sydney (na Austrália basta ir ao chamado “Centrelink”) ou São Francisco encontra isto bem marcado na face dos mendigos e dos negligenciados (muitos deles Aborígenes ou Navajos, mas não só): a produção social da indigência, da ignomínia e do parasitismo. Não custa ainda a perceber como é que tal teoria se transformou na ideologia da superioridade do ocidente (base teórica do liberalismo): o homem europeu – ou ocidental – na sua ganância industrial e individualista é o cume da evolução. A literatura americana – no seu ímpeto lírico e crítico de denúncia – está cheia de desmontagens deste modelo social. Uma boa leitura de Theodore Dreiser, Sherwood Anderson ou Bret Easton Ellis demonstra bem essa capacidade de acusação.
8 – Para se perceber melhor o modo como a versão de Spencer se transformou – nos Estados Unidos – numa ideologia de estado é preciso, no entanto, regressar à enigmática e tenebrosa figura do pensador William Graham Sumner, em certo sentido o pai da ética neo-liberal. Para Sumner a existência humana tem como traço distintivo a competição (um executivo norte-americano, que conheci de férias no Laos, dizia-me que a motivação principal para o seu trabalho era competir com o colega do lado para que ele perdesse o emprego primeiro; quando questionado sobre as pessoas que se cruzavam na rua – nesse país do “terceiro mundo” onde se encontrava “de férias” – apenas respondeu: “estão condenados à extinção e não há nada a fazer!”). Sumner pensava que a competição é a essência da razão pela qual os mais inteligentes se tornam ricos e os incapazes pobres (segundo o turista americano é a competição que produz o domínio dos Estados Unidos, “the greatest country in the world!”). Qualquer intervenção pública (Sumner era contra a ideia de “estado previdência”) para minimizar o curso da natureza apenas cria uma sociedade “artificial”, onde os pobres são sustentados, em vez de se deixar a “natureza” seguir o seu curso, que é a eliminação destes. Poderíamos perguntar, então, se não serão todas as sociedades estruturas artificiais (no sentido de que são convenções simbólicas)! De facto, o que acontece com os socio-darwinistas é que, ao “naturalizarem” a sua ideologia, esquecem que as sociedades humanas não têm apenas componentes naturais (cabendo desde logo perguntar “que conceito de natureza?”): elas são também, como disse, produtos de convenções culturais. Há um absoluto esquecimento, por parte da ideologia socio-darwinista, de que se está a reificar a linguagem (um bom exemplo disso é a célebre frase do senso comum: “não se pode mudar a natureza humana!” Apetece logo perguntar: que natureza humana? De acordo com quais critérios culturais, valores, crenças, ideias, etc?). Assim, na sequência deste baixar de braços perante a injustiça, Segundo o darwinismo social de Sumner a responsabilidade do estado reside apenas na manutenção “da ordem e da paz” (contra ataques exteriores e insurreições interiores) e na “garantia dos direitos de propriedade”. Para o darwinismo social o sucesso material é uma característica insuperável da virtude: ele é um sintoma de progresso e de capacidade estratégica (isto é, de método, de controlo). Sumner alia aqui a pré-determinação biológica (por exemplo, a existência de culturas “mais inteligentes”, como é tão do gosto do elitismo de David Landes) à crença calvinista e puritana na predestinação do “contrato” com Deus: os mais inteligentes e ricos são aqueles que possuem o dom da “graça”. Por outro lado, é a riqueza – o sinal mais forte deste elitismo teleológico – que assegura o futuro biológico dos “melhores traços”. Esse processo dá-se através da acumulação privada de capitais que podem, então, ser reinvestidos na educação privada e na saúde, também privada, tudo com a “graça de Deus” (por aqui se vê como a distinção anglo-saxónica – e sobretudo norte-americana – entre evolucionismo e criacionismo é, na prática, uma falácia: os teóricos que mais se popularizaram no inconsciente colectivo WASP, foram aqueles que conseguiram asmelhores “sínteses hegelianas” entre as duas ideologias). Ainda, para o darwinismo social, associado à ética puritana, os “explorados” (e isto tanto serve para os pobres do “primeiro mundo” como para a divisão “Norte-Sul”) devem culpar-se a si próprios por o serem (é comum hoje em dia ver discursos arrogantes que dizem que a América Latina é pobre por causa da corrupção e da desorganização dos seus autóctones!). O que se passa com os pobres – segundo o socio-darwinismo – é que estes não se concentram no trabalho: segundo Sumner, eles envolvem-se em “prazeres vulgares” (mais uma afirmação elitista) como por exemplo a “promiscuidade” (é comum, nos países anglo-saxónicos, a referência ao Brasil como pátria do “desejo incontido”: essa referência ou é vista no plano da descriminação positiva – “it’s so exotic!” – ou no plano da descriminação negativa – “they’re disgusting and sleazy!”). Assim, para Sumner, o poder deve estar bem distante das massas (no caso actual, ele pertence ao “Norte civilizador”): estas devem ser adestradas no sentido de o saberem delegar, sob pena de caírem na anarquia (um bom exemplo para isto foi dado pelo comportamento paternalista e arrogante das “Nações Unidas” em Timor, bem como da ex-potência colonial – Portugal – e da pretendente a potência colonial – a Austrália).
9 – O resultado de tudo isto está à vista de todos: uma enorme arrogância bélica, globalizada sob a forma de legitimação universal e produtora de alienação espiritual, uma vez que associada a formas massificadas de desinformação. Sendo com base neste elitismo que se justifica a desigualdade, é também com base nele que se justifica o direito de agressão (“nós somos melhores que eles … temos que os civilizar!”). O resultado traduz-se numa negação absoluta de qualquer forma de humanismo e num silenciamento racista da diferença (uma vez que se parte de uma ideia quase platónica – e portanto metafísica – de imutabilidade da lei natural: trata-se por isso de uma visão conservadora do globo que se quer estender “revolucionariamente”). Esta crença na superioridade ilustrada esquece que as sociedades são mutáveis e que essa mutabilidade não obedece a nenhum plano pré-estabelecido (ou essência). Incapaz de abraçar o caos e a incerteza – e justificando por isso a versão unívoca de uma (e UNA) ideia de ordem – a modernidade imperialista anglo-saxónica (associada ao poder de uma informação eminentemente hierárquica) produz uma versão uniformizada do mundo que vende sob a forma de imagem (há quem fale hoje de “cêéneénização” – CNN – do mundo … eu acrescentaria “aolização” – AOL - … salve a “Al Jazeera”!). É este sistema de vigilância panóptica do “outro” (seja ele o pobre negro de L.A. que está – segundo o sistema de controlo disseminado – sempre na iminência de assaltar um banco ou o “governo pária” de um qualquer país do Médio Oriente) que se vende como retórica da dominação dualista [(“nós e os “outros”, o “mal” e o “bem”, o “civilizado” e o “arcaico”, o “interior” (a comunidade das nações bem comportadas) e o “exterior” (os estados párias, armadinhos até “aos dentes” com químicos de destruição massiva)]. É contra isto que surge uma desobediência civil sob a forma de uma pós-modernidade de esquerda e de questionamento.
10 – Em que sentido poderemos, então, contrapor Luís Inácio Lula da Silva à arrogância da modernidade anglo-saxónica? Em primeiro lugar, Lula sobe ao poder com um discursobaseado na denúncia: denúncia da fome, denúncia da corrupção e denúncia da cedência de interesses que negam a autonomia do povo brasileiro. Para Lula, o estado portou-se de modo corrupto porque, na sua ganância, tratou o povo brasileiro como um objecto e não como um sujeito autónomo (herança machista e patriarcal, bem presente na expressão brasileira que caracteriza a exploração feminina como “mulher objecto”). Para ser ainda mais óbvio – e usar uma linguagem “pêtista” militante – o estado “trepou com o povo”. Ao fazê-lo, transformou o Brasil num país alienado, vendido ao mercado anglo-saxónico (terminada a exploração colonial portuguesa, o grande sugador da América Latina foi o Império Inglês; mais tarde o “testemunho” foi entregue aos Estados Unidos), isto é, um país de indivíduos que se foram tornando egoístas (ainda hoje, grande parte das maiores fortunas do Brasil coincidem com os limites das feitorias coloniais que o capital estrangeiro reinante foi mantendo), passivos (dependentes de multinacionais que criavam emprego mas não deixavam a riqueza no país) e indiferentes perante a violência (mais uma vez, a literatura é uma boa fonte de denúncia a isto: desde Graciliano Ramos até André Sant’Anna, passando por Patrícia Melo ou Ruben Fonseca). Lula não deixou de mencionar no seu discurso de posse que um país justo não pode aceitar indiferentemente um estado de permanente guerrilha civil, povoado de insegurança e de “crimes horrorosos e hediondos”. A justiça social passa pelo acabar com a fome: só acabando com a fome o brasileiro poderá ajudar comunitariamente no combate à violência e à corrupção. Só num país onde se conclui, eticamente, que o crime não é a via se poderá então combater a imagem do “corrupto” como modelo social. É neste sentido, de uma reforma da cidadania, que Lula estabelece um “compromisso” com o Brasil. Ele sabe que esse é um projecto incompleto, criticável, errante e, talvez, contraditório. No entanto, abraçando a diversidade riquíssima do país que governa (onde o estrangeiro não é forçado a assimilar-se, como na Austrália, mas onde é o proprio brasileiro que se vai “assimilando” ao que vem de fora, numa acalorada e erótica afirmação de mestiçagem) Lula quer que o brasileiro coma as três refeições do dia a que tem direito (partindo assim da concretude). Sabe que, se o conseguir, terá cumprido “a missão” da sua vida. O assumir do carácter imperfeito do seu projecto permite a Lula resolver outro problema: retirar ao seu discurso qualquer ilusão messiânica. Ele não é o salvador da Pátria. Usando o imaginário televisivo, de carácter messiânico e sebastianista, ele não é nenhum “Roque Santeiro”. Ele é um facilitador da democracia, um incentivador do diálogo entre secções de uma sociedade tremendamente inequalitária e injusta. Se conseguir colocar os brasileiros em diálogo (e isso é apenas um projecto) Lula terá contribuído “para o reencontro do Brasil consigo próprio”. Esse é, por isso, um momento de optimismo resistente: um momento de participação democrática mas também de atribuição de responsabilidade. Esse é o momento em que o Brasil não pode “baixar os braços”, o momento de uma cidadania consciente, que sabe reclamar direitos mas que também assume deveres. Essa cidadania é o lugar do mestiço: sem divisões, sem separações, ela é o lugar da mistura, do diálogo, da fluidez anti-paternalista como fonte de uma ética da política, de um abraço inclusivista à pluralidade de cores de uma nação que sabe sonhar (sempre soube!) mas que quer, hoje, ser o sonho do concreto. Por isso tudo, Lula é uma bofetada na arrogância. O ex-operário de nove dedos é hoje o presidente de um país ainda injusto mas não racista (esse racismo, que existe, não é o dogma do discurso oficial nem a névoa surda da prática social, muito mais marcada pela discriminação económica; aliás o racismo no Brasil tem o seu quê de ridículo: quem pode clamar, numa nação miscegenada, não ter sangue negro?): porque dialogante, porque empreendedor, porque misturado. Contra o elitismo segregacionista (que divide para reinar, que “guetoiza” para emudecer, que uniformiza – exactamente no sentido do uniforme que as crianças anglo-saxónicas usam para a escola – para reprimir) é minha a esperança do brasil. Eu sou, no que me constitui, na minha história, afro-luso-brasileiro. Possa o Brasil de Lula, se não afirmar-se plenamente, pelo menos denunciar o estado de “apartheid global” (para homenagear um amigo que criou a expressão) a que a arrogância anglo-saxónica nos tem condenado.
 
Francisco Nazareth
Sydney, Abril de 2003
                   
                 

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