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Contos-->A REPULSIVA MULHER GORILA -- 13/11/2002 - 13:36 (Hilton Görresen) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
1
A luta próxima revolucionou a cidade. Vejam só: aquele palerma do Chicão, que só ser-ve para levantar pilhas de madeira no serviço do porto e esfregar mulher na zona com a mão cabeluda, era agora transformado em herói, procurador dos machos desta terra, como disse o escrivão juramentado Salatiel.
Claro, surgiram apostas, coisa alta: o cônsul da Argentina prometeu até abrir champa-nha, o que não falta em sua espaçosa residência. Esse cônsul, o tal de D. Ricardo, é chegado a ações e gestos largos, dando sempre a impressão de que vai iniciar um tango. Como o “San Diego” está no porto, sua casa vive atulhada de gringos, como a gente chama os maru-jos estrangeiros, sejam argentinos, suecos, holandeses, o diabo. Muito dado a jogos, dizem que foi D. Ricardo quem fez a maior aposta no Chicão.
A “Voz de Porto da Cruz”, o hebdomadário (este palavrão está escrito abaixo do nome do jornal) que sai quando muito três vezes ao ano, lançou esta semana uma edição especial, dedicada à grande luta. No artigo principal, Leocádio Rachadel, o proprietário e redator, fala de lutas famosas de outros tempos, de um tal de tesão, teseu, sei lá o quê, e de outros nomes esquisitos. O professor Carvalhal, nosso mestre de gramática, também publicou um poema complicado: “qual flor imarcescível que nos píncaros medra...”, parecendo até cópia daquela musiquinha que a gente canta: a rosa no cume cheira; só que a última palavra, me-dra, como explicou o Horacinho, meu melhor amigo e colega de escola, tinha sofrido um erro tipográfico.
2
Tudo começou quando o Alarico Gervásio, locutor da Rádio Hemisfério, depois de dei-xar escoar a voz morna do Elvis Presley, anunciou (posso até ver o Alarico tirando o chi-clete de hortelã da boca, grudando-o debaixo da mesa de som): nesta semana, teremos a sensacional estréia do Gran Circo Universal Galhardo, pela primeira vez excursionando em Porto da Cruz. Não percam!
Apesar do entusiasmo que havia no país com as primeiras produções de carros nacionais, uma realização do governo de Juscelino (em Porto da Cruz apareceu o primeiro Volkswa-gen, uma belezinha, apelidado pelo brasileiro de fuque), as coisas por aqui estavam muito paradas, nada de festinhas, o cinema ainda passando reprises do Jim das Selvas, o Weiss-muller depois de velho e gordo. Por isso pensei: Gran Circo Universal Galhardo, uma boa pedida.
Dois dias depois, foi erguido no terreno vago do Expresso Portocruzense um cirquinho mambembe, a lona colorida de remendos enormes; de animais, apenas um macaco que ba-tia palmas e um leão aposentado, chamado nos cartazes de feroz Golias. Havia, no entanto, um cartaz que chamou a atenção do pessoal: venham ver a repulsiva Mulher-Gorila, a mai-or lutadora da América do Sul.
3
Horacinho havia ajudado a erguer os mastros do circo e ficou amigo do anão Bube, de quem ganhou um passe para ver o espetáculo de graça. Aí perguntou se podia levar um amigo, que era eu, e na estréia a gente estava lá firme. Na porta estava o Bube, que também era porteiro, além de ajudante (ele preferia dizer partner) da equilibrista Nadja e parceiro do palhaço Xereta que lhe aplicava pontapés no bumbunzinho disforme.
- Oi Bube, este aqui é o Zé Eduardo, aquele que te falei – saudou o Horacinho.
- Vão entrando – dizia o anão, afobado com o movimento.
Por trás da cortina, na entrada, me entrou pelo nariz um cheiro de serragem e de mijo. Depois acostuma, pensei. Lá na frente, em um tablado, os músicos tocavam uma marcha, todos de vistoso uniforme vermelho.
Depois de uma espera enervante – a cada momento uma voz no alto-falante dizendo que dali a poucos minutos iria ter início a maravilhosa função, algo nunca visto – acenderam-se as luzes do picadeiro e apareceu o Xereta correndo em círculos, saltando, com o Bube atrás, vestidinho com roupa de bufão, arrastando uma perna meio manca. Enquanto o Horacinho me dizia, já conhecedor de tudo, que o Xereta era o dono do circo, o Bube já tinha levado quatro pontapés nas nádegas. O anão estatelava-se no chão e levantava rápido, lépido, sem nenhum sinal de dor. Devia ter a bunda calejada, o filho da mãe.
Em seguida veio o leão, mais preocupado com uma mosca que rodeava seu focinho do que com o pessoal que pagou para ver a sua brabeza. Deu dois ou três grunhidos salvadores e se apagou como meu irmão mais novo diante de estranhos.
4
No picadeiro, após a última apresentação, que era da equilibrista Nadja, gostosíssima num maiô colante, entraram rapidinho dois ou três auxiliares, fixaram quatro estacas com para-fusos, passaram duas cordas unindo uma estaca a outra e estava pronto um ringue de lutas. Aí entrou o apresentador:
- E ahora (o apresentador, depois eu soube, era um nortista ex-embarcado) la merror atracion do Gran Circo Universal Galhaaardo. Enfrentando, em lutcha mortal, el pe-ligroso Cigano, com ustedes... la repulsiva Mulheeer-Goriiiila
Suspense. Tinir de pratos. Repentinamente, sai detrás da cortina e entra correndo no ringue uma figura enorme, horrível. Uma calúnia chamá-la de Mulher-Gorila, pois um o-rangotango perto dela é um Tony Curtis. A pele escura, o nariz achatado e torto, os olhos duros cuspindo desprezo. Ergueu os braços cabeludos e grunhiu para o público, dando so-cos no peito. Depois de algumas demonstrações que pareciam de grande violência, a Mu-lher-Gorila deu cabo do peligroso Cigano, um baixinho de cor parda, muito tinhoso nos golpes.
O apresentador, num entusiasmo teimoso, lançou então o desafio que mexeu com os brios da moçada do porto:
- La invencible Mulher-Gorila lo afirma que em esta cidá no tiene matcho! (murmú-rios na platéia) E lo desafia aquelho que tiver coragem para uma lutcha até la desis-tência, em la prócsima semana, no último espectáculo de este circo.
Foi quando o Chicão levantou-se, com seus quase dois metros de altura, a voz disparada pelo nervosismo:
- Já acharo macho!
As tábuas da geral quase desabaram, de ponta a ponta, com o rebuliço do povo; os que estavam perto correndo para abraçar Chicão, os outros gritando e sapateando na madeira. E ficou acertada para a próxima sexta-feira a fabulosa luta entre o Chicão, defensor da ma-cheza de Porto da Cruz, e a invencível Mulher-Gorila.
5
Entrando no local do circo, como a gente vinha fazendo todas as tardes depois das aulas, demos com o Bube conversando perto do muro com uma empregadinha. Se as mulheres deixassem o Bube falar estavam perdidas, o danado colocava elas na mira de sua conversa envolvente, encompridando os “esses” da mesma forma que arrastava a perna esquerda defeituosa. A moça sorria meio sem jeito, fingindo examinar as unhas roídas. Isso era bom sinal, ensinava-nos o Bube nas longas conversas à tardinha, quando o pessoal da companhia descansava antes do jantar.
Horacinho ajudava a alimentar o Golias; era um trabalho enorme, o infeliz leão nem tinha mais dentes. Nessa tarde, sentada num banquinho, a terrível lutadora consertava a sunga que usava todas as noites no espetáculo. Mulher-Gorila – é evidente – era seu nome artístico, todos ali tinham um nome artístico que nem na zona (descobri que o nome verda-deiro da Tatiana, do Pouso da Anta, é Anfilóquia, não é de baixar a tesão do cara?). O nome mesmo da lutadora era Nair. Quando nos viu, meio ressabiados, falou: venham cá que eu não mordo ninguém não! Foi legal com a gente, disse que não pediu a Deus aquela vida. Depois levou-nos ao seu camarim, digo camarim mas era um cantinho em uma barraca, junto com as outras artistas, repleto de fotos desbotadas que mostravam uma antiga Nair, um pouco mais magra.
6
De um comunicado da Radio Hemisfério, falando para os céus do Brasil: “tranqüilizem-se, caros portocruzenses! O senhor Francisco Epaminondas da Silva, vulgo Chicão, encon-tra-se neste momento no saguão da prefeitura municipal desta cidade. Carecem, portanto, de fundamento as desencontradas notícias sobre seu desaparecimento. E afirma o senhor Chicão que sexta-feira lá estará para enfrentar a sua desafiante, em luta sensacional”. Se-guem-se os acordes do hino da cidade, composto por Valcir H. de Azambuja, o saudoso mestre Cambuca.
7
Horacinho não foi à aula. Que filho da mãe, eu me estrepando com a tal de análise sintá-tica, que é pra gente entender a letra do Hino Nacional, e ele na praia dos Biguás com a turma do circo. Lá pelas duas horas da tarde, chegou uma caminhonete chapa branca, genti-leza de um alto funcionário municipal (o motorista perguntou pela Nadja), e fez duas via-gens até a praia. Horacinho gazeava aulas pelo menos uma vez por semana. O pai não liga-va, dizia que ele puxou pela falecida dona Olivinha, que era ignorante e que o fim dele seria mesmo pegar no pesado.
Na escola só se falava no desaparecimento do Chicão. Boato. A Rádio Hemisfério já havia desmentido. Então o Chicão, com aquela força toda - contavam-se às centenas as suas brigas na zona, principalmente com os gringos - com aquele vozeirão grosso, de paralisar macho que não fosse muito convicto, ia fugir da raia? Certa vez, havia chamado para briga o time inteiro do Portocruzense, e ninguém foi bobo de enfrentá-lo. Eu acho que ele estava é no bem-bom com a Suzineide, uma mulata que anda fazendo estripetise no Pouso da An-ta, uma de bunda saltadinha. 8
“Senhores espectadores, selecta platea, o Gran Circo Universal Galhardo tem la honra de apresentar-lhes finalmente, em esta notche, el electrizante combate que todos ustedes aguardavam com ansiedá: el combate mortalíssimo entre el senhor Chicón e la repulsiva Mulher-Gorila”. 9
Sem querer mentir, digo que a cidade toda se aperta dentro do circo. Estivadores pesa-dos, ainda palitando os dentes, se largam nas tábuas da geral. Assobios se cruzam por cima de minha cabeça. O conjunto, de repente, ribomba a valsa de abertura e leva uma vaia.
- Solta a fera! – gritam.
Alguém se lembra de puxar a torcida do Chicão:
- E para o Chicão, nada?
- Tudo!
Até o Leolino, que tem uns ataques violentos enfrentando nazistas invisíveis, coisas da guerra, está lá do lado do velho Quincas. Pombas, que perigo, e se o caboclo fica nervoso, começa a ver alemães na frente? E olha que tem uns braços pra ninguém botar defeito.
Logo que chegam as autoridades convidadas, com toda a família, e se abancam nas ca-deiras reservadas, começa o espetáculo. Os números de equilibrismo já tinham enchido o saco, embora ninguém enjoasse de olhar as pernas da Nadja, com aquele maiô curtinho entrando na bunda. Mas o pessoal está nervoso. Xereta consegue maior atenção de todos remexendo nos brios do público: que a Mulher-Gorila vai pegar o estivador e fazer as-sim...assim, e plaft no traseiro do Bube, coitado. A geral responde com um urro de ódio.
Finalmente, o conjunto de músicos faz silêncio. A serragem, pisada e repisada, aumen-tou o cheiro, agora parecendo de bosta. O apresentador anuncia o espetáculo.
Primeiro entra o Chicão, que é saudado por uma gritaria infernal, assobios, barulho de latas. Vem com uma sunga preta, apertada, os pulsos atados com tiras de couro. Levanta os braços, agradecendo. Depois, debaixo de vaias, ninguém ouvindo as palavras do apresenta-dor, surge a Mulher-Gorila, preparada com se fosse para uma cerimônia de luxo, com uma longa capa dourada, os olhos de contorno roxo, uma aparência terrível.
O gongo soa. A lutadora deixa que Chicão ataque primeiro. O bobo veio feito um touro desgovernado e recebe o primeiro pataço: poff. Com isso fica mais cauteloso, faz rodeios, ameaça, e nisso se passam os primeiros minutos. Agora se pegam feio, pernadas, socos. Chicão acerta um murro no ombro da adversária, recebe o troco no peito cabeludo. Até que, milímetro a milímetro, como pescador que cansa o peixe na linha, Chicão vai se impondo pela enorme força. A fera vai perdendo a confiança. A balbúrdia é enorme, a força de Chi-cão sai dos braços e dos gritos de cada um.
De repente – ninguém entendeu – o juiz encerra a luta, Chicão dando sinal de desistên-cia, imobilizado pela adversária. Sem ninguém perceber, num último recurso, ela havia lhe agarrado os cocos com os dedos de alicate. Com a dor súbita, Chicão desarmou-se e pronto, a lutadora aproveitou a vantagem para aplicar-lhe uma chave de pernas sem escapatória.
A gente olha uns para os outros, sem entender nada, a cara murcha, os gritos murchando. Nesta hora, há empurrões, abre-se uma clareira em redor do Leolino que dá facadas em alemães. Surgem gritos, e não são dos alemães derrubados pelo Leolino: a lona do circo está queimando, o povaréu aos encontrões, sem poder sair do lugar.
Escorrego pra baixo do madeirame e abro um rasgão a canivete na lona, ganhando o ar fresco de fora, pra onde muitos já debandaram. Correndo para longe, fico vendo o fogo encorpando, a estalar, soprando rolos de fumaça em direção do mar. 10
Graças a Deus não morreu ninguém, mas do circo não sobrou nada, só a vontade de jun-tar os trapos e partir pra outra. A aventura é um carrapato que está grudado nas veias desse pessoal. De manhãzinha já tinham ido embora, levando o Horacinho, sacana, como apren-diz do palhaço Xereta.

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