(*) O APELIDO DO ZÉ
Como se não bastasse o apelido de Zé, o José ganhou mais uma alcunha um tanto extravagante, diria mesmo, desrespeitosa: Zé Cagão. Tudo por causa de uma traquinagem infantil, de um farto gole de limonada na garrafa que Da. Beatriz deixara em sala na hora do recreio –– era limonada purgativa.
O coitado do Zé, por engano ou por pouca leitura, se estrepou todinho. Mal soara a campainha de retorno e o guri já se contorcia em arrepiantes revoluções intestinais. Banheiro? Não deu nem pra chegar no corredor, "vazou" por ali mesmo – vexame total!
Tirando essa lambança, o Zé até que era um jovem pacato, dedicado e muito paciente. Detestava, sim, ser chamado de Zé Cagão, inda mais pra quem agora conduzia turistas. Mas, aos poucos, o apelido foi caindo no esquecimento do povo. Muitos anos se passaram, mas tinha um chato que não perdoava. Por onde o encontrava, dava-lhe um furtivo tapa no traseiro e mangava: - "E aí, Zé Cagão?"
Até na hora do casamento, com o Zé ali diante do altar, o chato se postou na lateral da sacristia e, quando em vez, se ouvia claramente em meio ao silêncio da cerimônia: "- E então, Zé Cagão, vai casar ou vai cagar?" O Zé aparentava serenidade, apesar da humilhação, justo num momento tão sublime.
De acordo com a tradição, o casal seguiu a pé da igreja para sua casinha na roça, toda vem feitinha de adobe untado com o suor do próprio Zé. Branquinha de cal virgem estava quase concluída, faltava só cravar mourões e esticar a cerca. Foi quando apareceu novamente o chato de galocha, dando-lhe o habitual tapa na bunda, correndo e gritando:
"- E então, Zé Cagão, se casou ou se cagou?"
Aí já foi demais! O Zé endoidou de vez, arremessando uma lasca de braúna na sua direção. Pimba! Bem no quengo do chato, que desabou no ato e silenciou de fato. Correria, confusão, carrega pro hospital... Não teve jeito, não. Uma semana de agonia e o chato passou dessa pra melhor.
E agora, José? Preso desde o episódio e cadê advogado para sua defesa? Difícil, afinal havia muita testemunha: convidados, curiosos e os cambaus. A família da vítima era rica e a do Zé... Foi quando a Mariquita, noivinha do Zé, mulher fiel sem lua-de-mel, lembrou-se de um velho doutor, o Sebastião Pereira, vulgo Tião Cachaça, que há muito deixara a profissão, pois, como o próprio apelido sugeria, vivia de fogo. Pois não é que o Tião Cachaça aceitou o caso e passou a semana anterior ao julgamento sem provar da "mardita"!?
Na hora da defesa do Zé, o Tião Cachaça começou solene o seu discurso:
- Meritíssimo senhor juiz, honrado promotor e ilustres membros do júri.
Quando todos pensavam que ele iria continuar a defesa, ele repetiu:
- Meritíssimo senhor juiz, honrado promotor e ilustres membros do júri.
Repetiu a frase mais uma vez e foi admoestado pelo juiz:
- Peço ao advogado que, por favor, inicie a defesa.
E o Tião Cachaça repetia:
- Meritíssimo senhor juiz, honrado promotor e ilustres membros do júri.
O promotor protestou:
- A defesa está tentando ridicularizar esta Corte!
Tião Cachaça, porém, fingia nada escutar e dizia:
- Meritíssimo senhor juiz, honrado promotor e ilustres membros do júri.
O juiz:
Advirto o advogado de defesa de que se não apresentar imediatamente seus argumentos ...
Foi cortado pelo Tião Cachaça, que repetia:
- Meritíssimo senhor juiz, honrado promotor e ilustres membros do júri.
O juiz não agüentou mais:
- Seu bêbado, irresponsável, está pensando que a Justiça é motivo de zombaria? Ponha-se daqui para fora antes que eu mande prendê-lo!
Foi aí que o Tião Cachaça concluiu:
- Se apenas por repetir algumas vezes que o juiz é meritíssimo, que o promotor é honrado e que os membros do júri são ilustres, os senhores me ameaçam de prisão, imaginem a situação deste pobre homem que, durante tantos anos, em todos os dias de sua vida, foi insistentemente chamado de Zé Cagão!
Assim, o Zé foi absolvido por unanimidade e o Tião Cachaça voltou a entornar todas, na santa paz provinciana das montanhas de Minas
(*) recolhido por Renato Bravo
Nota: O julgamento é verídico, aconteceu na turística Zona da Mata mineira. Situações, nomes e apelidos são fictícios, é claro, em respeito às pessoas envolvidas
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