Jovens, numa conversa de café da tarde, supuseram
reconhecer a fisionomia dos que amam no semblante
de um sujeito, sentado numa mesa à frente, que
minutos antes ficara só, pois a moça que estava ao
seu lado tinha se retirado - o rapaz apresentava o
olhar e os olhos no infinito, como se estivesse em
profundas reflexões, e de fato estava.
Dentre os mesmos - e havia um que pensava
conhecer o rapaz de outro lugar - também saíram
afirmações de que tal afeição não seria nada mais
que uma paixão.
Amor ou paixão: não havia consenso.
A única assertiva era a de que o sujeito, decididamente,
estava com cara de idiota; nadando no vazio das
elucubrações como um peixe na água.
O garçom se aproximou, queria saber se o rapaz
desejava algo - já estava ali há minutos e não tinha
consumido nada - porém, o sujeito permaneceu
calado, com a mesma cara. O garçom entendeu como
um não e, assim, supôs que o cliente pediria algo a
seguir. Foi-se.
Enquanto isso a conversa prosseguia:
"Veja, nem se mexeu!";
"Será que está se sentindo mal?";
"Será que tomou um fora da moça?"
A corrente dos que acreditavam na paixão cresceu
- houve aliás, alguém que chamou aquilo de
"falling in love" - pois os que criam no amor foram
obrigados a ceder, entendendo que a cara de idiota
era apenas de quem se apaixonava, e não dos que
estavam amando.
Diga-se de passagem que estes não tinham
absolutamente nada a fazer, você não acha amiga
leitora, ou leitor? Pois quem tem o que fazer não fica
levantando teses, tão descabidas e sem utilidades,
sobre o amor e a paixão, como se, de fato, fossem
chegar a alguma conclusão!!
Um olhar mais investigativo, porém, descobriria que
algo estava sendo tramado e que não tinha nada a
ver com nenhum dos dois sentimentos em discussão.
Já que falamos no falling in love, que fique claro que
algumas paixões que os adultos costumam
estupidamente escarnecer, denominando-as de
"amores de adolescentes", são, com estúpida
freqüência, as mais violentas, mais agoniadamente
intensas, as mais saudosas do que quaisquer outras
que se possa experimentar ao longo da vida.
A moça estava de volta, trazia um embrulho.
A cara de idiota já não era tão idiota assim,
antes era nervosa e preocupada.
"Veja, a moça voltou!".
"Ele parece estar nervoso agora".
"Parece que sente alguma dor.." - diziam com certa
razão, pois de fato o rapaz sentia a dor de quem
arranca de dentro de si tudo que acredita.
Ele levanta e se direciona ao caixa, passando longe
da mesa dos insensatos observadores que não
tinham visto a sua tremedeira, pois segurava a
arma de brinquedo que a mulher lhe tinha trazido.
O assalto acontece, ele rende, entre outros,
o responsável pelo estabelecimento e o garçom.
Um dos que defendia a tese da paixão avista
um policial do outro lado da rua e gesticula
o assalto.
O rapaz é preso, depois de ter sido surrado,
logo após libertar alguns reféns.
À delegacia, entre outros, foram intimados os
observadores e o garçom como testemunhas.
Quase de partida, depois de tudo concluído, um
dos defensores da paixão lembra de onde conhecia
o sujeito: era de um farol da avenida Brasil.
O rapaz, em algumas ocasiões, disputava espaço
com os vendedores de balas e outras bugigangas,
para pedir dinheiro a fim de comprar remédio ao filho,
que era carregado no colo pela moça, sua "amigada".
Os que discutiam perceberam, depois, que erraram
feio em suas conclusões.
O rapaz e a moça não se amavam, não estavam
apaixonados, pelo menos não naquele contexto,
e não eram idiotas.
Ambos, em sua aflição, pois tinham perdido o
trabalho há pouco, estavam tentando manter o
filho vivo; estavam sendo incompreendidos
assim como todos que precisam de ajuda.
Ora, ora, na prisão, colegas de cela disseram
que o rapaz apresentava o olhar e os olhos
no infinito, como se estivesse em profundas
reflexões, e de fato estava, e mais uma vez
nadava no vazio das elucubrações, como um
peixe na água.
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