Um conto interessante de Mia Couto, “Saíde, o lata de água”, em que o escritor alterna entre realidade e memória no texto. Por esta alternância, ele consegue criar o suspense que culmina em um desfecho muito bem elaborado. O clímax ocorre quando, da interferência de Severino, a verdade se revela. A história termina em uma espécie de anticlímax conformista, de forma depressiva a ponto de o leitor sentir empatia pela personagem central. Anticlímax porque é o desfecho sem surpresa; conformista porque Severino acaba por ocultar a verdade, a manter as aparências perante a sociedade.
A narração é em terceira pessoa. No entanto, percebemos, pela adjetivação e inferências do narrador, que o ponto de vista é, na verdade, da protagonista. Há uma aproximação entre o narrador e a personagem.
Outro aspecto relevante é a oralidade. A linguagem utilizada possui expressões das classes baixas e gírias, assim como a insuficiência de conectivos. Assim é Saíde: uma pessoa sem amigos, isolada, de pouca cultura, com problemas alcoólicos, em conflito.
O narrador explora o modo de ser dos moçambicanos e seus costumes, como podemos verificar nas passagens:
“Com o tempo, foi-se apercebendo de uma coisa grave: ela não lhe dava filhos. Isso ninguém podia saber. Um homem pode ter barba, não-barba. Agora filhos tem que tirar: é um documento exigido pelos respeitos”. (p. 101)
“Ele olhou para si mesmo: estava de joelhos, parecia estar de rezas. Um homem que exige não fica na posição dos que pedem. Levantou-se e foi acender o xipefo” (p. 102)
Foi dito no começo desta análise que Mia Couto elaborou muito bem a alternância entre realidade e memória (passado). É justamente nesta estrutura textual que habita a chave para que a surpresa se instaure no fim do conto.
O leitor não consegue, naturalmente e na primeira leitura, identificar a passagem da memória para a realidade, pelo envolvimento com a história e personagens, sua atenção é desviada e, desta forma, é induzido a crer que Júlia ainda convive com Saíde. O narrador faz a passagem temporal sutilmente.
Observe:
“Entrou em casa e fechou a porta. A mão ficou no trinco, distraída, enquanto passeava os olhos naquele vazio. Lembrou-se dos tempos em que a encontrou: foram bonitos os dias de Júlia Timane” (p. 100)
Agora acontece a mudança para o tempo da fábula:
“Tinha havido muito tempo. Estava sentado numa paragem à espera de nada, dessa maneira que só os bêbados esperam” (p. 100)
A história de sua união com Júlia é contada, o problema familiar, das agressões e suas desilusões. É um flashback. A realidade (que é árdua: ele foi abandonado e, para que os vizinhos – sociedade – não soubessem de sua desgraça, encena discussões, barulhos na casa) retorna a partir deste ponto:
“Sentiu a força do vento na porta e acordou da lembrança. Sempre que se recordava trabalhavam facas dentro da alma. Estava proibido de ir ao passado. E tudo por causa de Júlia, raio de mulher. Fechou a porta com a decisão da fúria”. (p. 103)
Preste atenção na metalepse e perceba como o foco narrativo é realmente de Saíde. O narrador externo, via de regra, não deveria emitir opiniões a respeito de Júlia, deveria se manter distante. Quem emite tal juízo é, na verdade, Saíde por meio do narrador.
Existem figuras belíssimas nesse texto, destaco algumas: “molhadas, as pálpebras da tarde parecem soltar morcegos”; “tinha os braços desmaiados”; “é que ninguém está por baixo desse barulho” etc.
Para finalizar, a leitura de Saíde, o lata de água é o conhecimento da vida de um cidadão moçambicano, inserido em uma sociedade tradicionalista, sofrendo a opressão que dela emana. Saíde, o de personalidade fragmentada, sozinho, sem amor, sem paz, que vive uma mentira. Uma história atemporal e metonímica: da particularidade “encenada” por Saíde para a vida de todos nós.