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Ensaios-->Macunaíma: Mito Original -- 05/11/2003 - 12:10 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O movimento modernista da segunda década do século XX ficou conhecido por seu caráter demolidor, revolucionário, que reviu os conceitos estéticos e literários do passado, que serviam como fonte de referência para a criação artística nacional. As revoluções estéticas do modernismo determinaram uma nova forma de perceber e compreender a tradição literária, além de adotar um olhar crítico às correntes e movimentos de vanguarda advindos da Europa. Não se tratava mais simplesmente de copiar os modelos estrangeiros, mas de transforma-los, de pensa-los sob perspectivas nacionais, estabelecendo uma relação entre tradição e vanguarda, entre passado e presente, repensando a criação artístico-literária por um viés francamente historicista.
Assim sendo, o modernismo principia no Brasil sob o signo da ruptura e da conversão, da aproximação e do afastamento, da revolução e da crítica aguerrida. Sob esta perspectiva, criar passa a ser sinônimo de procura, busca e entendimento daquilo que muitos artistas, críticos e historiadores da literatura brasileira iriam chamar de caráter nacional. A literatura passa a ser uma forma de pensar artisticamente o que é ser brasileiro, o que significa, em essência, a brasilidade. Surgem obras que, por suas características estilísticas, não passam de simples arremedo dos movimentos europeus, que não pensam, efetivamente, a condição nacional. Outras, no entanto, levam ao radicalismo extremo essa mesma condição. Era preciso o equilíbrio estético-artístico em que as questões políticas e culturais não fossem o objetivo direto das obras, mas seu enigma, o interdito, a idéia velada.
Dessa forma, aparecem obras como Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grade, de Oswald de Andrade; Brás, Bexiga e Barra-Funda, de Alcântara Machado; e, principalmente, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Macunaíma é o ponto alto da prosa modernista, combativa e aberta às novas tendências estéticas do século XX. Romance indefinível, misto de narrativa folclórica, poética e rapsódia, não se pode, ainda hoje, precisar o alcance e a dimensão dessa obra que, com o tempo, passou a ser o grande monumento da narrativa moderna brasileira. Mário de Andrade renovou o romance nacional e ainda criou o mito brasileiro por excelência numa obra instigante, desafiadora, em que tudo passa a ser descoberta e revelação.
Baseado no mito indígena de Macunaíma, coletado e narrado pelo naturalista alemão Koch-Grünberg, em seu livro Vom Roraima zum Orinoco (De Roraima ao Orenoco), Mário de Andrade recria, redimensiona e potencializa o mito, transformando-o na essência de seu livro e revestindo-o de significados latentes, de compreensões possíveis, fazendo do que era simples narrativa tribal um arquétipo literário definidor de nosso próprio processo civilizatório. Macunaíma, o índio “filho da noite”, “negro retinto”, ganha de sua amada, pouco antes desta morrer, uma pedra preciosa, a Muiraquitã. A pedra é roubada pelo gingante Venceslau Pietro Pedra, que foge para São Paulo, o que obriga o índio a sair de sua tribo, juntamente com seus dois irmãos, para reaver o objeto roubado, o símbolo do amor consagrado.
O roteiro parece simples, mas quando se trata de Mário de Andrada é preciso ter cuidado. Nada na obra do paulista é simples ou gratuito. Mário foi um dos grandes autores nacionais, talvez o maior e mais profundo conhecedor da tradição brasileira, do folclore à alta cultura (a cultura erudita), passando pela política, pelas artes plásticas, pela etnografia e pela antropologia. Macunaíma não é uma obra gratuita, entretenimento pequeno-burguês, romance de leitura despretensiosa. Ao contrário, é símbolo, produto de construção estética, criação de alto nível, feita de subentendidos, de interdições, de idéias que não se dão a ver ou distinguir imediatamente, com a clareza e a transparência das obras de entretenimento ou dos romances ditos sociais, em moda desde fins do século XIX.
Telê Ancona Porto Lopes, a maior estudiosa da obra de Mário de Andrade, define Macunaíma como um romance realista, mas de um realismo que “lida com o mágico e com o maravilhoso”. E não se trata mesmo de outra coisa. Ao invés de cair na armadilha do romance realista, do romance social, definidor, Mário de Andrade revê a própria condição da narrativa e reinventa o modo de narrar, criando uma rapsódia “panfolclórica”, nos dizeres de Haroldo de Campos. Macunaíma procura ser uma nova maneira de compreender a condição nacional, o caráter brasileiro, a identidade essencial de nosso povo, tudo isso visto e percebido pelo prisma da poética mais salutar. Mário cria o mito do Brasileiro como um povo de origem e matiz francamente poéticos em que tudo é possível: a ironia, o sarcasmo, a malandragem, a ternura, o lirismo, a individualidade, o trágico e o cômico.
Mito indígena, legenda pagã, narrativa poética ordenadora, original, no sentido em que busca o momento de criação e surgimento não só de um país, mas de um povo, uma raça, uma civilização: a brasileira. Macunaíma o herói sem nenhum caráter. Caráter entendido, aqui, como ausência de preceitos morais instituídos. Não só a moral cristã, católica, herança européia que nos foi transmitida pelo contato do branco português civilizador, e que se tornou dogma, crença, fé e religião. Tampouco a moral sócio-filosófica, conjunto de valores que guiam e determinam o comportamento do homem em sociedade, ao se relacionar com outros indivíduos e com a própria estrutura social imposta e definida.
O nenhum caráter de Macunaíma diz respeito justamente a uma moral em formação, a uma identidade que procura se fixar, definir e delimitar. Macunaíma, em sua ausência de caráter representaria, então, se pudermos nos expressar através de uma metáfora, o barro a espera de escultura. É preciso modelar o caráter nacional muito mais do que defini-lo simplesmente. É preciso criar o mito original, essencial, de nossa brasilidade latente. Política e culturalmente, Macunaíma significa justamente essa tentativa de definir o indefinível, de dar formas, contornos mais ou menos claros e precisos à identidade de nosso povo, de modelar e esculpir a condição nacional, os limites do ser brasileiro. Literariamente, o livro de Mário de Andrade busca o que podemos chamar de a poesia inexplicável da vida, a dimensão poética da qual somos feitos, na qual estamos, irremediavelmente, entretecidos.
Macunaíma, personagem contraditório, operando na tênue linha entre o bem e o mal, entre a doçura e a crueldade, entre a retidão e a malandragem, mas, paradoxalmente, acima e além de qualquer maniqueísmo fácil, é definidor de um povo que, mesmo passados mais de quinhentos anos, ainda busca a si mesmo, ainda procura se definir para além das definições impostas, da condição não de raça originária, mas originada, cujo caráter seria nada mais do que uma herança em parte européia, em parte tribal. Daí nossa dupla constituição: de um lado, o racionalismo cético do pensamento ocidental, de outro a herança mítica, ou mito-poiética. Quando Mário dá amplitude nacional ao mito de Koch-Grünberg, o autor desenraiza o mito, desregionaliza a legenda pagã, e faz com que ela opere como figura ordenadora da consciência nacional, representativa, significativa. Macunaíma deixa de ser folclore geográfico e passa à condição de universo representativo, de receptáculo de nossas características mais veladas.
O mito indígena perde um pouco de sua condição de narrativa exemplar e passa a significar origem poética, lugar de nascimento, liberdade essencial em que o caráter nacional procura se amalgamar, se constituir e se formar. O nenhum caráter do anti-herói, longe de ser um dado negativo passa a ser exigência primeira para a criação e o surgimento da raça, do povo brasileiro. Espécie de ponto de partida original, de lugar algum, nenhum, em que se inicia a formação de nossa própria civilização. O Macunaíma lendário ganha contornos poéticos e passa a ser o “herói da nossa gente”, o principio de um povo, a origem francamente livre de nossa nacionalidade.
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