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Ensaios-->Cidade Íntima - A Poesia de R. Leontino Filho -- 05/11/2003 - 12:13 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Engraçado, sempre acreditei que a poesia fosse, entre todas, a grande forma artística de representação humana não por ser a mais antiga, mas por ser a arte de construir-se pouco a pouco, de ir se fazendo aleatoriamente, entre um verso e outro, e fixar-se no tempo para além das convenções e dos limites de nossa caótica essência mortal. E dia desses, lendo o livro Cidade Íntima, do professor e poeta cearense R. Leontino Filho, pude confirmar minha idéia.
Leontino nasceu em Aracati, CE, em 1961, mas radicou-se em Pau dos Ferros, cidade do Rio Grande do Norte, onde é professor de Literatura Brasileira, e agora faz doutorado na FCL, aqui em Araraquara. Boa oportunidade de conhecer essa figura incrivelmente humana, serena e erudita, que reconhece como poucos o valor incomensurável da arte e que financia, ele mesmo, a edição de seus livros, porque é, antes de tudo, um apaixonado pelo verso, e porque sabe que Poesia, no Brasil, é artigo fora de mercado ou, como diria Décio Pignatari, mantém-se fiel a tradição: não dá dinheiro, logo não há grandes editoras que se dignem a publicá-la.
Cidade Íntima é um livro raro, com versos raros e de uma sensibilidade inda mais rara, além de estar na terceira edição - o que já faz do livro, devido às circunstâncias, uma raridade incrível. Divide-se em seis partes distintas: Evoluções; Cidade Íntima; Sementes; Somos o Poema; Arco-íris e Represa. E a cada entrecho confirmo a idéia de que a Poesia é a arte de construir-se, de velar-se e desvelar-se numa procura constante de si mesmo.
Em Evoluções, tem-se uma série de epigramas que, de certa forma, nos preparam para a aventura poética de percorrer essa cidade entrevista em sonhos e versos, que se constrói não apenas pelo ato mesmo da escritura, mas também pela necessidade urgente da leitura. Epigramas sutis, de uma suavidade imagética ímpar que me faz lembrar os hai-kais japoneses: madrugada/ chuva fina/ esta lição de vida/ em mim. E nem me venham com essa bobajada de pensar que hai-kai só admite três versos porque isso é desconhecer redondamente a linguagem ideogramática dos japoneses, onde cada símbolo equivale muitas vezes à versos inteiros quando traduzidos para o idioma da última flor do Lácio, tão avesso à sínteses de qualquer espécie.
Aos epigramas segue-se Cidade Íntima, cinco poemas que vão da metapoesia ao erotismo e que revelam o ato de construção dessa cidade metaforizada que nem não chega a ser uma cidade propriamente dita. É antes o homem, o poema, o próprio poeta com suas idéias, sensações, com seus desejos mais fundos e que vai se perfazendo à medida em que irremediavelmente se confunde com seus versos. É o restabelecimento mais do que necessário do “eu” à poesia, porque não há poesia sem a voz pela qual nasce o poema, e não há poema sem idéias, sensações, desejos e desvarios, sem um pouco de confessionalismo, de entrega mais funda: Daqui,/ o coração indaga/ mergulha no abandono azul das palavras/ quando por entre sons/ reclamo,/ para mim/ lá fora/ é dentro do teu corpo/ e o abismo do teu ventre/ é mais sereno/ que o orvalhar do meu pranto. Difícil saber onde principia o erotismo confessionalista e onde termina a metapoesia. Mas o lirismo, esse está em todos os poemas, para a felicidade nossa: Partir/ numa migração de ilusões/ quando o tempo é pó/ pão/ é/ novelo/ que faz de tua intimidade/ uma virtude momentânea/ no pecado do dia-a-dia. E nem preciso dizer da beleza inquebrantável destes versos.
Em Sementes são mais cinco poemas intitulados do homem, da pátria, da vida, do sonho e do amor. Trata-se já do poeta enquanto semeador, que espalha seus versos como quem planta um pouco de si em cada um, como quem procura deixar pelos caminhos a marca de sua passagem: Limites da vida/ refúgios esmaltados na pele/ seca do homem/ dura espera daqueles que sobrevivem/ aos mágicos embaraços/ da angústia/ que cristalizam a demorada/ fecunda/ soterrada/ vivência humana. São mesmo sementes, literalmente, os versos que compõem esse entrecho. E despertam-se em nós como que a romper a dura, quase intransponível, superfície da pele.
Mas o ponto alto do livro deste cearense é, sem dúvida, Arco-íris, em que as sete cores transmudam-se em sete temas que se desdobram ao longo de quatorze poemas. Todos de uma beleza rara, de um lirismo estonteante desses que não existem mais porque o último lírico estonteante foi Manuel Bandeira. A mais bem acabada aventura poética de todo o livro, a revivescência do alumbramento perdido, daquele instante mágico em que a Poesia se confunde com revelação, descoberta e iluminação. E o poeta deixa-se fazer desse instante, consagra-o e entrega-se. O vermelho é A Configuração; o alaranjado, O Flerte; o amarelo, A Vigília; o verde, A Palavra; o azul, O Mistério; o anil, O Diálogo e o violeta, A Canção. Destaque para alguns versos como os de A Vigília: Antes era a longa caminhada/ o esplendor/ o vasto movimento/ por deslumbrantes paisagens./ Antes era a graça aprimorada/ a surpresa/ a mansa dança/ pela solitária, luminosa manhã./ Até quando dormirá em nós/ a descalça presença do amanhã?/ Até quando anoitecerá em nós/ a infinita paciência para a luta?/ Fecundamos:/ seiva, metal, vôo, cristal,/ navios que singram os agressivos mares./ Renovamos:/ clima, sumo, erva, éter,/ incensos purificadores em nós./ Gota a gota/ o sempre é tão pertinho! E o sempre é o destino destes poemas que se inscrevem no tempo, no espaço, no universo real de coisas e pessoas que se constróem com a leitura, com o mundo de sentimentos e sensações que só a Poesia pode despertar em nós. E como chave de ouro desta série de poemas, nos alumbramos com os versos de A Canção (violeta): Enfim, ninguém atravessa o presente/ sem a repentina flor do sorriso./ O arco-íris é pouco/ tão pouco/ vertigem em mim.../ sonho cravado nas canções/ dos homens.
Por fim, cinco poemas compreendem a parte final do livro. Trata-se de Represa, em que a fluidez dos versos e dos ritmos, a ausência de pontuação e a densidade das idéias criam um jogo de contrastes com o título, que sugere contenção, mas que, ao se realizar esteticamente, revela-se a mais pura e sofisticada vazão lírica a que um poeta contemporâneo pode permitir-se.
Imagino que todos os artistas, todos os escritores, poetas e homens deveriam, um dia, voltarem-se para si mesmos em busca de sua própria e intransferível Cidade Íntima, pois assim é que se descobre a maneira mais exuberante, mais humana e verdadeira de construir-se e aprende-se quotidianamente. A Poesia de R. Leontino Filho nos revela um dos possíveis caminhos para a descoberta de nós mesmos, além de nos ensinar a difícil lição de sentir a vida de todas as maneiras.
Reafirmo aqui minha crença na redenção do homem pela Poesia e, como afirmou Verlaine, tout le rest est littérature.
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