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Ensaios-->O Exercício Da Transcendência -- 05/11/2003 - 12:15 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nada no mundo vale a feliz descoberta de um grande poeta, aquela sensação misteriosa e vaga de que algo que não conhecíamos, que em momento algum vislumbráramos mas era parte indissociável de nós desde os tempos imemoriais, irrompe em nossa alma. E essa sensação, tão distinta e vária, que só os grandes poetas nos sabem despertar é o que, convencionalmente, chamamos vida.
Digo isso porque, nos últimos dias, tenho redescoberto a vida pela luz dos versos de um senhor paranaense, radicado no Rio de Janeiro, que, suspeito, já nasceu com nome corpo e alma de poeta: Foed Castro Chamma, ainda que o Castro não faça parte de seu nome civil. Uma homenagem a um outro grande poeta, o de O Navio Negreiro, imagino. São oito livros de poesia publicados, vários prêmios nacionais, além de obras de tradução e uma Antologia Poética.
A poesia cria suas próprias verdades, particulares e intransferíveis, é um universo de seres e coisas. O mundo ganha forma através da poesia. É ela que nos humaniza, quem nos desperta a hora mágica em que realidade e imaginação se fundem no encontro eternamente sonhado com o Outro, com nós mesmos. E tudo cabe nos poemas de Foed Castro Chamma: o poder da palavra, som e silêncio, a procura pelo que quer que seja nos labirintos insondáveis da linguagem, o despertar da Musa, o ato de inventar-se e se dar a ver em versos, como o fingidor de Pessoa, e principalmente, descobrimos em seus poemas o exercício da transcendência.
Os poemas que compõem a Antologia Poética do poeta paranaense fazem parte dos livros O andarilho e A aurora (1971), Pedra da transmutação (1984) e Sons de ferraria (1989), além de três sonetos inéditos de Alegorias de Abril e dois fragmentos de um poema chamado Hino ao sol. A partir dos títulos, fica impossível não pensarmos a influência de toda uma época sobre os poemas de Foed, nascido em 1927 e descendente direto de uma poesia filosófica, preocupada com a busca das essências mais íntimas do homem, com seu destino eterno, com seu poder de criação e permanência que encontramos em poetas como Cecília Meireles, Jorge de Lima e o Vinícius dos primeiros tempos. E a força metafísica dos poemas de Foed alia-se a arte de construção, reta e geométrica, ordenando signos, sons e ritmos, numa referência à poética de arquitetura cabralina. É o caso de A flauta e o silêncio: “Por mais alva que seja a presença/ do silêncio, enquanto estudo a forma,/ por mais translúcida que seja/ até doer-me a idéia,/ enquanto estudo o núcleo da serena alvura,/ ali estarei despido como o dia,/ entregando-me a toda a claridade/ como um fio d’água que se completasse/ e risse o riso opaco de sua carne.”
Foed é um poeta da resistência porque, como salientou André Seffrin na introdução da Antologia, ele foi condicionado a um afastamento editorial quase criminoso, o que só aumenta a importância da obra deste que, penso, seja o único poeta verdadeiramente metafísico, como o fora T.S. Eliot para os ingleses, ou Rainer Maria Rilke para os alemães, da poesia contemporânea brasileira. Numa época em que os poetas desistiram da pontuação, da construção do ritmo, da versificação fundamentada em elementos tradicionais da criação poética, em que seus temas concentram-se em superficialidades gritantes tomadas à realidade diária e já tão desinteressante desde os modernistas, Foed transforma-se, ele todo, em símbolo da vitória contra o banal, o cotidiano e o comezinho tornados matéria de poesia. E quem não souber sentir não pode ler os poemas deste paranaense. Quem anda qualquer coisa de convencional e humano, também não.
Em Chaves, composto por dez sonetos, encontramos o primor de versos como: “A musa adormecida, a que acordei/ com a força dos meus gestos certo dia/ repousa no meu peito inadvertida,/ que a decorei para mantê-la viva./ Dela o que sei transformo em sonho e reato/ a luz das suas pálpebras pendidas/ à cor da fala sempre presa à boca/ como brasa de carne apetecida./ a musa adormecida, a que acordei/ do sono absoluto, ainda dorme/ decorada em meu peito. Como estátua,/ persiste e é dela a música que escuto/ fluindo dos meus olhos e o que sei/ é belo e obscuro, foge e me resiste.” Uma declaração apaixonada à poesia, ao despertar da criação, o momento precioso e etéreo em que as coisas ganham vida e o amor pelas palavras se faz como uma luta. O despertar silencioso do impulso poético, o desejo de ser todo em cada som, cada palavra, cada verso até tornar-se, o ser mesmo, algo de signo, de ritmo, de linguagem e sensibilidade mais funda.
É o caso do soneto número IX de Chaves: “Meu exercício é inventar-me e não me invento/ senão para esperar que nesta sala/ eu me escute calado a celebrar/ a magia da minha própria fala./ De que confins eu chego ou ela chega/ para atrair os pombos que nos voam/ sem que eu veja primeiro mas pressinta/ que voam sobre nós e nos coroam./ De que confins eu chego, de que noites/ abismadas que chego e já me encontro/ presente a surpreender minha chegada?/ Invento-me num círculo e me queimo/ e me reinvento e não descubro a fala,/ mas sei que está em mim atravessada.” Novamente trata-se do despertar da criação, com a diferença de que, desta vez, o poeta nos revela a medida exata do inventar-se e confundir-se em meio ao emaranhado de sons e signos, aos labirintos da linguagem.
Como o Jorge de Lima de O Acendedor de Lampiões, Foed nos acende na alma o universo poético e nos faz pensar em nossa condição humana, na descoberta da transcendência, em nosso destino eterno. Somos o que nos tornamos, na tentativa de superarmos nossa própria condição. E a vida é um esforço constante nesse sentido, na procura pelos caminhos possíveis que nos conduzam ao encontro com as antigas verdades perdidas entre as exigências diárias, os compromissos inadiáveis, os deveres e obrigações. Os poemas de Foed Castro Chamma nos ensina não apenas a volta ao bem, mas os caminhos nunca antes trilhados por nosso espírito cambaio, cotidiano, cansado e sempre às voltas com angústias, desesperos, revoltas e anulações. Em A pedra da transmutação, encontramos: “O delírio da vida no segredo/ do pensamento atrai todos os passos/ rumo ao princípio: o tempo recomeça/ na infinita distância dos espaços// interiores, cortando cada fibra/ do vendaval que bate nos sentidos/ atentos a uma lógica encoberta/ pela voracidade dos seus gritos// surdos. As mãos descansam as feridas/ do vôo sem que alcancem a medida/ do número obscuro circular/ no carvão de uma ausência repetida/ na condição de ser o duplo e o mesmo/ nesse campo cercado pelos pássaros/ voando ao redor com seus espinhos/ de penas eriçadas pelos laços// do vôo a se enroscarem no alarido/ da maldição que a vida não escoa/ na incessante repetição da luz/ e sombra acumulada em cada vôo.”
Há muito dos ideais românticos e simbolistas nos poemas desse paranaense: a busca pelo impreciso, pelo misterioso e indefinível, pelas formas claras, pela musicalidade de ritmos que, muitas vezes, se dão através de assonâncias incríveis, pelos temas universais como os espaços inescrutáveis da alma, a circularidade do tempo, a descoberta e o encontro com a língua, a transmutação da matéria, a resistência das palavras, os conflitos que movem o poeta em sua ígnea paixão: a poesia, essa antiga e delirante maneira de dar forma a um mundo imaginado e vário que, raras vezes, se dá a ver com tanta precisão como nos poemas de Foed. Nunca o melhor da tradição poética foi tão respeitada também.
Mas antes de o ler, é preciso se acostumar a ver a vida pela luz de olhos alheios, principalmente quando eles a vêem para além de toda a nossa compreensão. É bom saber que a Poesia, aquela que guarda a medida exata do que somos e fomos, de tudo o que podemos vir a ser, está a salvo nos versos deste poeta para quem foi confiada a missão de nos revelar o Mistério de tudo o quanto não se explica, mas sentimos indelevelmente. É este o exercício da transcendência.
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