DESCONTINUIDADES
Frinchas, frestas, trincas, rachaduras, gretas, pelas quais passam coisas que não se vêem, que não se aguardam, que não se guardam, que atormentam. Por onde entram indagações e suspeitas se comprimem. E vedações, calafetagens não obtêm resultado com recurso algum. Desvios, agressões, transgressões. Traumas. Perdas. O que parecia inteiro, maciço, impermeável, impenetrável torna-se friável, perde coesão e segue sendo o que não era.
A estrutura trabalhou – rebatem os engenheiros. Ação do tempo. Seqüência infindável de dilatações/contrações, que se contorce para aplacar o craquelê inexorável. Tatuagens compõem emaranhados complexos de marcas não projetadas.
Em algum lugar que aponte para um nome, restam espaços que falam de ausências. No bar, o néon rabisca a escuridão e, de repente, perde luminosidade. Vaza gás do tubo de vidro. Ali, a marca da falta ressalta. É a palavra vazada. Como encosto de carro para cabeça, acomoda qualquer letra.
Interrupções, rupturas, rompimentos. Emendas, remendos, enxertos e transplantes. Roga-se e prorroga-se, mas chega a hora em que, mesmo sem quebrar, ou separarem-se os pedaços, perde-se a certidão de origem e as vias de restauração do original. Brechas surgem, e por elas incrustam-se as diferenças e as desavenças. Não fosse por um raio-x de olhar mais demorado, as estruturas passariam intactas. Como ossos quebrados e ainda alinhados parecem unidos e colados. No que foi contínuo, estabelecem-se fronteiras e limites, superfícies e espaços que não se entendem, módulos que agem a seu modo. Encaixes movem-se de mil modos para o acaso de um só estado de conjugação possível.
Por que lamentar, desesperar? Nada é mais igual. A suposta integridade é tão-só efeito – defeito? – de uma vista cansada, distraída no olhar de rotina, que não se prolonga. Pedaços não se fixam por permanecer em contato. Juntá-los para ver se aderem um ao outro, se cola o truque, se calam as dúvidas? Não, definitivamente, não. Impossível evitar a linha de uma costura, a partir da qual se multiplicam capilaridades vorazes de gozar a liberdade de expansão possível. Descendências, linhagens afastadas e emancipadas por mutação. Espaços exíguos, dotados de secretas passagens para visitantes estranhos e sorrateiras infiltrações oportunistas.
Asperezas do tempo solapam a construção do espaço monolítico. Ranhuras, fissuras e geometrias insuspeitadas vão paulatina e persistentemente impondo e recompondo o mapa das imagens fractais. O que antes vergava-se para não partir-se, parte-se agora para ceder à pressa e à pressão das tensões insuportáveis. Os fluxos não deslizam mais como antes. Tropeçam, caem, interrompem-se. Fazem força, passam, mas, passando, chegam a outro território, terra do outro ou de ninguém.
Absoluta ferocidade das forças desagregadoras desintegradoras! Não trabalham para a solidez; atuam impiedosamente no seu curso natural de decaimento aniquilador, impunes. Abastecem-se com a energia contingente do tempo e partem com a missão de colidir para partir e repartir. Chegam sempre na precisão do tempo que se consuma. Presteza de um tempo que não se perde. Tempo imemorial, que escreve suas impressões nos talhos dos seus entalhes.
Nov/2003 marcopiscitelli@bol.com.br
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