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Ensaios-->Cantos Tristes: a despedida de Ovídio -- 22/11/2003 - 05:37 (Eduardo Amaro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CANTOS TRISTES: A DESPEDIDA DE OVIDIO

Cantos Tristes são uma poesia elegíaca, uma composição em dísticos de um hexâmetro e um pentâmetro, dividida em cinco volumes.
O primeiro grande poeta deste estilo é Mimnermo, ao qual sucederam Propércio, Cornélio Galo, Catulo e Ovídio. Como o próprio autor de Metamorfoses nos conta:

“Desse tempo cultivei e estimei os poetas.
Eu os considerava, quantos fossem, deuses.
Mais velhos que eu, Mácer lia-me então as Aves suas,
E as serpentes que matam, e as ervas que curam:
A ele me ligavam os laços de amizade.
Famoso Basso por seus jambos e por seus heróicos.
Pôntico, foram ambos bons amigos meus;
E meus ouvidos encantou o harmonioso Horácio,
Com seus poemas entoar à lira ausônica.
A Virgílio entrevi; o fado avaro não me deu
Tempo de poder ser amigo de Tibulo.
Tal sucessor foi Tibulo, Galo e Propércio dele:
Nessa linha temporal eu sou o quarto”

(Tradução de José Paulo Paes)

Ao lado de Catulo, Ovídio foi o mais fecundo poeta elegíaco-amoroso do período augustiano. Lírico, polido na métrica, mitológico, elegante, engenhoso, descritivo, imaginativo, pitoresco no estilo, são algumas das características encontradas nas obras deste gênio romano.
Por todo os Cantos Tristes transparecem a solidão e a dor, o tom sombrio e angustiante da narrativa transpõe-se nas figuras retóricas muito bem trabalhadas, como se nota na passagem abaixo:

“Pareceu-me que uma parte foi separada
do meu corpo e, neste momento,
explode o brado e o gemido dos meus entes.
E os meus punhos tristes feriram o meu peito nu”

(Tradução de Luiz Eduardo Rodrigues Amaro)

Aprecie esta magnífica hipálage! A tristeza do eu lírico transferida aos punhos (mãos) que, por sua vez, transmitem ao substantivo peito o seu adjetivo nu.
Ovídio consegue, em apenas um verso, condensar o que sente e mais: passar de forma elegante uma imagem tamanha de sofrimento que causa imediata empatia naquele que lê. Ele, o leitor, sente nitidamente a dor do poeta (Ovídio) por meio desta representação acústica que emana conteúdos semânticos, no mínimo, arrebatadores.
Isto foi uma singela mostra do potencial descritivo-expressivo dos Cantos Tristes. Partamos agora para a análise de aspectos morfossintáticos do texto.
Indulgens, particípio presente, funciona sintaticamente como adjetivo para pés. Quando temos um predicado nominal, o núcleo é a adjetivação do sujeito, portanto, tardus (lento) também caracteriza pés.
Veja:

“et ipse indulgens animo pes mihi tardus erat”


“e o meu próprio pé era lento e indulgente (era o pé) para com a minha alma”

Saepe vale dicto é uma expressão latina com o significado de tendo dito muitas vezes adeus, ou ainda, segundo o dicionário de F.R. dos Santos Saraiva, “despedindo-se várias vezes”.
Discendens (partindo), outro particípio presente, este sim é empregado em sua função primordial, sendo traduzido por gerúndio no português. Da mesma forma rescipiens (olhando).
Para a expressão pignora cara, temos pignora como penhor, segurança, refém etc. Percebemos que, neste sentido, tais significados não resultariam em tradução adequada. Figuradamente, o dicionário traz objetos de afeição, parentes. Portanto, devemos interpretar como os meus entes queridos, ou ainda, as coisas que mais aprecio (tenho afeto por).
Inquam (eu disse), verbo defectivo, na poesia, é usado geralmente no final da oração. Quando utilizado no meio (mais raro este uso), deve vir entre vírgulas.
Em suas obras, Ovídio se utiliza com freqüência da expressão Nec mora (sem demora), com o intuito de fechar o pensamento, dar um desfecho ao que o eu lírico canta. O particípio presente e o gerundivo também são muito empregados.
Verba é o complemento nuclear (objeto direto) do verbo relinquo (eu deixo), ou seja, “verba (mei) sermonis relinquo imperfecta”: eu deixo as palavras inacabadas do (meu) discurso. Veja que imperfecta se refere a verba, da mesma maneira que sermonis, comprovando que o principal vocábulo do predicado é realmente verba (palavras). Por este motivo, verba imperfecta está no acusativo (neutro plural). É de conhecimento generalizado que o núcleo do predicado verbal é o próprio verbo, pois nele está contida a ação, mas não é o que está em pauta nesta sucinta explanação. O foco aqui é o substantivo verba.

“Dividor haud aliter, quam si mea membra relinquam
Et pars abrumpi corpore visa suo est”

Note que relinquam está no presente do subjuntivo (infectum), primeira pessoa do singular. No entanto, é melhor traduzido pelo imperfeito do subjuntivo, utilizando-se de uma comparação (quam = como).
Visa est relaciona-se a pars abrump (parte foi separada) que, por sua vez, relaciona-se a suo corpore (do seu corpo). Aqui há um elemento que provoca dificuldade de interpretação.
O tradutor deve estar atento ao seguinte aspecto: mea membra é relativo a suo corpore. “Quam mea membra pars abrumpi suo corpore”: como se os meus membros fossem arrancados (separados) do seu corpo – do corpo ao qual eles pertencem, ou seja, do meu corpo.

“et feriunt maestae pectora nuda manus”

Pectora nuda, ablativo absoluto, funciona, neste caso, como objeto direto do verbo feriunt (feriram). Ao passar para o português, temos: e (minhas) mãos tristes feriram o meu peito nu (objeto direto). Eis a hipálage apresentada no início desta comunicação.
Encontramos outro particípio presente no verso que segue: abeuntis, relacionado a humeris (nos ombros).

“Tum vero coniux humeris abeuntis, inhaerens
Miscuit haec lacrimis tristia dicta suis:”

Neste instante (tum vero) a (minha) esposa (coniux), apoiando-se/enlaçando-se (inhaerens) nos ombros (humeris) do partinte (abeuntis – aquele que parte), ou seja, nos meus ombros, misturou (miscuit – pretérito perfeito) estas tristes lágrimas (haec lacrimis tristia) às suas palavras (dicta suis).
Temos, a partir deste trecho, a introdução de uma personagem na elegia. Muda-se o foco narrativo. Apesar do ponto de vista ser “da esposa”, sabemos que tais palavras são proferidas por meio do eu lírico. Temos, portanto, a aproximação do autor real ao eu lírico que transfere à personagem (esposa) o discurso.
É complexo o entendimento desta mistura de narração com poesia, gêneros distintos, todavia, é o que realmente acontece, uma vez que Ovídio escreveu estes versos no exílio (relegatio – termo latino), utilizando-se da memória para mimetizar. As palavras da esposa não são, na realidade, dela e sim do eu lírico (Ovídio).

“Non potes, avelli, simul ah! simul ibimus – inquit
Te sequar, et coniux exsulis exsul erro.
Et mihi facta est, et me capit ultima tellus;
Accedam profugae sarcina parva rati.
Te iubet e pátria discedere Caesaris ira:
Me pietas, pietas haec mihi Caesar erit

Talia tentabat, sic et tentaverat ante,
Vixque dedit victas utilitate manus,
Egredior, sive illud erat fine funere ferre”

Novamente, o verbo inquit, na terceira pessoa do singular do presente do indicativo, está no fim da oração. Potes é segunda pessoa do singular e dirige o discurso ao eu lírico. Este, por sua vez, não responde, não estabelece o diálogo com ela, destina seu pensamento ao leitor, dizendo implicitamente pelas palavras da personagem que o fato já havia sido consumado (tentabat - tentava; tentaverat - tentara) assim como por suas próprias (dedit – ela deu) e que seria melhor a esposa permanecer em Roma para poder intervir a favor de Ovídio.
Esta interpretação é subjetiva, visto que a expressão victas utilitate manus (mãos vencidas pela utilidade) não possui um complemento explícito no texto. Uma coisa (ou alguém) é útil para fazer algo. A pergunta é: útil para fazer o quê? A resposta só pode vir do contexto histórico, em outras palavras, ser útil para tentar convencer César a perdoar Ovídio. Para tanto, ela deve permanecer em Roma.
Observe os trechos grifados e em negrito do original transcrito acima. Percebamos o grandioso trabalho literário construído, repleto de paralelismos e repetições de radicais que tornam o texto ritmado, agradável aos ouvidos. Para explicitar: coniux exsulis exsul; Talia tentabat et tentaverat ante; vixque dedit victas; dentre outros.
Apesar de muitos críticos defenderem ferrenhamente Metamorfoses e Arte de Amar como as melhores obras ovidianas, colocando-as, literariamente falando, acima das obras escritas no exílio, percebemos que os textos de Tomos são valorosos, tanto metricamente quanto semanticamente. Neles estão contidas belas figuras retóricas, o pulsar dos semas extravasa pela poesia. Estes versos, que romperam os séculos, chegam a nós atuais, pois na particularidade narrada por Ovídio é representada a dor universal, inerente a todos nós.
Após esta brevíssima análise, podemos apreciar, com maior prazer e entendimento, o texto latino, seguido de sua tradução ao português.

Ter limen tetigi: ter sum revocatus, et ipse
Indulgens animo pes mihi tardus erat.
Saepe vale dicto, rursus sum multa locutus
Et quase discedens oscula summa dedi.
Saepe eadem mandata dedi; meque ipse fefelli
Rescipiens oculis pignora cara méis,
Denique quid prospero? Scythia est, quo mittimur, inquam,
Roma relinquenda est: utraque iusta mora est.

Nec mora: sermonis verba imperfecta relinquo
Amplectens animo proxima quaeque meo.
Dividor haud aliter, quam si mea membra relinquam,
Et pars abrumpi corpore visa suo est.
Tum vero exoritur clamor gemitusque meorum,
Et feriunt maestae pectora nuda manus.
Tum vero coniux humeris abeuntis inhaerens
Miscuit haec lacrimis tristia dicta suis:

“Non potes avelli; simul ah! Simul ibimus” – inquit –
“Te sequar, et coniux exsul ero.
Et mihi facta via est, et me capit ultima tellus;
Accedam profugae sarcina parva rati.
Te iubet e patria discedere Caesaris ira:
Me pietas, pietas haec mihi Caesar erit”.
Talia tentabat, sic et tentaverat ante,
Vixque dedit victas utilitate manus.
Egredior, sive illud erat sine funere ferri.


Tradução literária (poética):

A soleira da porta, eu toquei,
por três vezes,
e fui chamado de volta,
ah! de volta fui chamado
por três vezes!
O meu próprio pé era lento
indulgente era com meu espírito!
Muitas coisas, muitas vezes,
eu falei... eu falei
e como se me afastasse,
dei-lhe o derradeiro
beijo.

Enfim, por que a pressa?
Roma deixo,
Cítia é para onde sou enviado,
devo deixar
a Cidade:
as duas, justas esperas.
Enfim, por que me apressar?

Sem demora, deixo
do meu discurso,
as palavras inacabadas,
abraçando com meu espírito partido
todas,
todas as pessoas mais amadas.

Sou dividido
tal como se me privassem
dos meus membros!
Pareceu-me que
uma parte de mim mesmo,
do corpo, foi arrancada,
e, neste momento,
explode o gemido,
explode o brado,
o brado e o gemido
dos meus entes
mais queridos!

Meus punhos tristes
feriram o meu peito nu!

Neste momento, partido
e partindo, enlaçando-se
aos meus ombros,
minha esposa misturou
às lágrimas
estas palavras tristes:

“Tu não podes, de mim, ser tirado!
Juntos, ah! sim, juntos
iremos.
Seguirei-te! Seguirei-te!
E serei
a esposa do exilado.
Para mim o caminho
está consumado,
a longínqua terra me tem!
Acrescentar-me-ei
como insignificante bagagem
ao funesto navio
que parte, que se perde
no salgado rio;
a ira de César ordena
que te afastes da pátria,
Piedade de mim! Piedade!
O imperador será pio comigo, amor!”

Tais coisas ela tentava
assim como antes tentara,
mas, com dificuldade,
deu as mãos vencidas pela utilidade
de, em Roma, permanecer,
em busca da imperial piedade.

Permanecer
não me é permitido.
Devo partir.
Parto, mas este sofrimento
deveria ser suportado
sem dor.

BIBLIOGRAFIA

PAES, José Paulo. Poemas da carne e do exílio. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SARAIVA, F.R.S. Novíssimo dicionário latino-português. Belo Horizonte: Garnier, 2000
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