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Ensaios-->Sá-Carneiro, o Século XX e a Procura do Outro: Um Ensaio. -- 02/12/2003 - 03:05 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Mário de Sá-Carneiro, o Século XX e a Procura do Outro: Um Ensaio.

Ao ler, estudar ou tentar compreender a figura do poeta e ficcionista Mário de Sá-Carneiro é inevitável não confundir vida e obra. Nada mais justa que a afirmação de outro grande escritor português, Fernando Pessoa: “O Sá-Carneiro não teve biografia: teve só gênio. O que disse foi o que viveu.” E quando se fala em gênio, fala-se de figuras iluminadas, de impulso criativo, de vida sacrificada sempre a favor de uma arte maior, densa, repleta de ousadia e subjetivismo.
E a ousadia, no poeta, é sacrificar-se e a sua individualidade para ser um personagem de si mesmo. Sá-Carneiro não foi, eis uma grande verdade. Viveu os mais fundos dramas existenciais que sua personalidade instigante foi capaz de sentir. Tornou-se objeto da própria poesia. Buscou-se e ao Outro com idêntica obsessão. Insatisfeito, inapto, gauche e descontente como qualquer grande poeta que mereça o nome estampado nas páginas eternas da história.
Permanece como um grande mistério, pessoal e artístico. Fragmento. Talvez não tenha sido nunca indivisível, uno, inteiro. Por isso seus versos falam tanto em procura, em desencontro. Perdeu-se em si mesmo. Elevou-se às alturas através de sua própria arte. E caiu! Não importa a queda: parte inseparável de todo ideal estético. Ao contrário do que imaginou, não se pode viver da e pela arte. Assim, a insatisfação é quase uma regra. Duplamente insatisfeito: com a vida e com a arte, resistiu ao mundo exterior, ao que quer que fosse fora dele. E deixou-se atrair por esse mesmo mundo. Paradoxal. Subjetivo.
Criou e criou-se. Nada melhor que se inventar a cada verso, a cada poema, a cada nova obra. Como Mário de Andrade, é justo dizer que Sá-Carneiro também foi “trezentos, trezentos e cinqüenta”. Sua obra foi sua vida porque assim tinha de ser. Devastou sua intimidade e cercou-a de lirismo. Diferentemente de Pessoa, não soube ser o fictor das dores que “deveras” sentiu. Sinceríssimo, desvelou sua alma e suas angústias mais íntimas.
Desejava o encontro com o Outro. E se a ausência do Outro dói, a procura por ele, também. Sá-Carneiro viveu em essência a plenitude dessa dor, o impossível encontro. Os últimos poemas que escreveu revelam uma decepção funda, um laivo de remorso pelo quanto deixou de ser ao aceitar o desafio de buscar o Outro, de senti-lo em toda a sua grata inutilidade. Não salvou-se do drama, da saudade do que não existiu, não viveu ou sentiu.
Pensou ter sido apenas quase. Suicidou-se, mas já era poeta de rara expressão. Como poderia imaginar que não era preciso ir tão além? Certo é que não viveu da própria literatura. Poucos vivem. E os escritores de gênio menos ainda. Ocasionalmente feliz, indefinivelmente triste, poeta de si mesmo, tornou cada desespero íntimo, cada insatisfação pessoal, tema universal: “Onde existo que não existo em mim?” , sua dúvida eterna.
Impressiona ter deixado obra tão coerente com cada incoerência sua. Narciso, sim. Achava feio o que não era espelho, e não havemos nunca de saber se era sua vida refletida em suas obras ou suas obras é que se refletiam em sua vida. Mistério digno de quem desejou, talvez, ser isso apenas: segredo e nada mais. Transcendeu-se. Extravasou os limites da relação vida x arte. Foi esteticamente, o que também impressiona. O ideal de beleza artística está na construção de seus versos, na plasticidade de suas imagens, no lirismo quase sempre conciliador de tantos contrários.
Quis contar-se a si mesmo, embora soubesse que a poesia, essa, é incomunicável: por isso os símbolos. E tudo são símbolos em Sá-Carneiro. É a maneira pela qual busca e lhe fala o Outro. É o modo como eleva-se, na arte, ainda que seja para cair depois, numa impossível sustentação, o preço a pagar por sua voluntária Dispersão.
Descobriu-se fragmento, estilhaço, contrariedades, e inventou o narcisismo sem o “eu”, sem imagem, impossível de imitação. Diluiu-se. Rejeitou a idéia de individualidade e, assim, despersonalizou-se. Como Fernando Pessoa, foi um sujeito plural, apesar de ter sido, vida inteira, ele mesmo, ortônimo. Síntese do homem moderno que surgia no princípio do século: desencontrado, duvidoso, perdido na exigência de ser coletivo, de não-ser ou nunca exercer a própria individualidade.
Por que não dizer que Sá-Carneiro contribuiu também, como tantos artistas de sua época, na criação desse novo homem, desse novo exercício de ser que o século XX exigiu de cada um? O poeta é esse sujeito inseguro de sua própria identidade, incapaz de definir com segurança as fronteiras entre o ambiente externo e o interno, fundindo-os, reinventando-os. E essa realidade complexa só pode ser compreendida pelos livres mecanismos do inconsciente.
Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e tantos outros modernistas viveram essa verdade absoluta: era preciso dar voz ao inconsciente. E quem pode garantir que, como queria Lacan, não seja o inconsciente o discurso e o lugar do Outro.
No início do século XX, graças às teorias marxistas, o homem passava a ser visto como parte integrante do processo histórico, base fundamental para a sua continuidade e entendimento. O inconsciente, graças à Freud e Lacan, ganhava singular importância na constituição do sujeito, a preocupação com o discurso acentuou-se também. Os artistas souberam entender essas mudanças e, no mundo todo, aceitaram o desafio de renovar a arte e de renovarem-se também. Daí a originalidade de Sá-Carneiro, de Fernando Pessoa e outros de seu tempo: não ser - parecer, fingir, era a exigência. Contribuíram na invenção dessa nova maneira de viver e sentir a realidade que os cercavam e, ao mesmo tempo, souberam preservar o melhor de uma tradição poética rica, herdada de Camões, Quental, Cesário Verde, Camilo Pessanha e alguns outros poucos eleitos.
Seguiram com a modernidade frenética que Baudelaire já havia inaugurado na poesia. Foram futuristas, surrealistas, simbolistas-decadentistas, foram toda a sorte de ‘ismos’ que as vanguardas européias inauguraram. Intelectuais-artistas ou artistas-intelectuais, alguns sacrificaram a vida a favor da arte: Pessoa e Sá-Carneiro, por exemplo, ajudam a inventar o criador moderno, mas descendem mesmo do jovem Rimbaud, não o que abandonou a arte antes dos dezoito anos para ser viajante perdido pelo mundo, soldado e traficante de escravos na África, não o que escreveu que “não se é sério aos dezessete anos”, o eterno irreverente, o enigma, mas o Rimbaud que, um dia, de forma solene e profética, sentenciou: “Eu é o outro”.
Gênios. O gênio entendido como impulso criativo e original, renovador, capaz de romper com as tradições todas sem extingui-las, mas absorvendo-as e inovando-as constantemente. Sá-Carneiro não teve biografia. Pessoa também não. Negaram a própria vida pela poesia que viveram.
E os Gênios não carecem mesmo de biografia. Graças a Deus!
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