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Ensaios-->Os Descaminhos da Lembrança -- 19/12/2003 - 02:11 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os Descaminhos da Lembrança

Ao Professor José Pedro Antunes, com quem aprendi que a literatura, às vezes, precisa estar viva.


Li, recentemente, O Avesso dos Dias, primeiro romance publicado pelo médico paulista Cláudio Galperin. Romance com cara e jeito de conto, essa forma literária moderna por excelência e que caminha para tornar-se o grande gênero de nossa época - época em que as pessoas exigem cada vez mais um tipo de literatura rápida, que se aproxime do frenesi da vida cotidiana, feita de pressa, sobressaltos e inalienáveis compromissos, além de excitar a imaginação, massacrada diariamente pelas idiotices televisivas.
O Avesso dos Dias é um livro desconcertante em todos os sentidos, desde a sua estrutura narrativa até o tema abordado. Impossível saber se é mesmo um romance ou se é um estilhaçado conto moderno, fragmentos narrativos de um homem com câncer cerebral que tenta fixar para além do esquecimento e da morte a história de sua vida. Uma crudelíssima luta entre memória e esquecimento. E na primeira página encontramos um dístico jocoso, cômico se não fosse trágico:

“Quanto mais o tumor cresce mais eu esqueço.
Quanto mais eu esqueço mais o tumor cresce.”

A lógica narrativa delira e se dilui com o apoio notável da afirmação acima. O livro todo se constitui de fragmentos soltos de uma memória já incapaz de qualquer ordenação ou cronologia. Não há linearidade: a narração oscila sob o tênue fio que separa as lembranças e o absoluto esquecimento. Estado clínico, maturidade, infância, amores e desamores, amigos, encontros e desencontros, tudo são fragmentos de uma vida que já não pode ser retratada com precisão ou lógica, uma vida alheia a toda possibilidade narrativa.

Passado e presente embaralham-se e ganham contornos etéreos. Dúvidas. O próprio movimento discursivo é posto em questão pelos suspeitosos movimentos da memória. E a doença, ao invés de despertar no narrador um senso trágico, uma dimensão dramática, serve às mais variadas e irônicas dissimulações, de modo que não podemos distinguir com clareza o que é esquecimento do que é omissão ou intencional reticência.

A luta pela vida se estabelece através de uma ironia dessacralizadora para com a doença, a certeza da morte, para com a vida mesma. É a saída encontrada pelo narrador para não imprimir à própria existência uma aura de beatitude, isso porque nós sofremos, de uma forma geral, daquela hipocrisia cristã, daquele escrúpulo burguês, que transforma os doentes graves ou os mortos velados em santos em potencial. Eu mesmo já vi canalhas e pulhas abjetos em vida tornarem-se santos à beira do caixão, como se apenas a doença ou a morte dignificassem verdadeiramente o homem. Basta reparar qualquer velório: todo mundo com aquele ar consternado, sóbrio, sereno, a fazer comentários sobre o morto: Era um santo! Digníssimo! Que caráter e que retidão! Duvido sempre. Pouquíssimas pessoas valem epítetos assim, e a maioria, se a gente for olhar de perto, não é flor que se cheire.

O narrador de O Avesso dos Dias não faz concessões. Reconhece que não há motivos para santificações de nenhuma espécie. E é dessa irônica dessacralização que surge, ao longo da narrativa, a presença das incontáveis citações de tratados médicos. Mistura de narração memorialística e ensaio médico. Nada mais atual se considerarmos o número cada vez mais crescente de hipocondríacos e afins, medicando-se desesperadamente em toda farmácia de plantão. São as neuroses modernas de que Freud dera notícias. O narrador explica, teoricamente, os efeitos da doença sobre seu corpo e sua memória ao mesmo tempo em que nos deixa a dúvida:

“Cecil - Tratado de Medicina Interna. Página 2158.
As alterações mentais podem incluir pouca persistência em tarefas rotineiras, maior irritabilidade, labilidade emocional, inércia, esquecimento, redução no espectro de atividade mental e indiferença às práticas sociais. O paciente pode queixar-se de cansaço fácil, tonteiras e letargia. Pode haver retardo temporal e demora nas respostas do pensamento e das funções motoras. Se o tumor continua a crescer, esses sintomas podem progredir até confusão mental, demência e eventualmente estupor.”

De uma morbidez irônica digna de Nelson Rodrigues. Mesma morbidez de que se faz o pretensamente singelo poeminha perdido em meio a narrativa:

“Dormonid
Halcion
Dolmadorm

Valium
Diazepan
Rohipnol
Jonnie Walker”

Receita farmacológica que, combinada, matou os velhos ícones da genialmente contestável geração beat: de Guinsberg, Hendrix e Joplin, da contracultura em geral. Trata-se da insólita combinação de medicamentos e bebida, da ironia de quem se apóia em tratados de medicina, mas se destrói compulsivamente. Não existem motivos para complacência, comiseração ou autopiedade. Escrever, para esse narrador exasperado e histriônico, é a tentativa de reconstruir-se, de não chafurdar na doença, de continuar indefinidamente no registro fragmentário de sua vida:

“É por isso que eu tenho que lembrar de tudo, até mesmo do que eu já não lembrava antes.”

Neste sentido a doença é um acontecimento positivo porque permite ao narrador rever a si mesmo, a possibilidade de se contar, de reordenar a vida que lhe escapa, não importa que confusamente, ainda que a narrativa não ocupe nunca a totalidade da página. Ele registra apenas o que recorda e inventa, sempre o que se perdeu nos limites da lembrança, tudo o que já não pode definir ou precisar como experiência real ou registro de invenção. Há algum arrependimento disperso pela narrativa, aquele remorso manso de quem vive seu memento mori em meio a umas tantas frustrações, à sensação de tudo o que podia ter sido e que não foi, ou foi e acabou esquecido.

“Por que sempre de noite? Porque tantos pedidos de desculpa? Por que tanta mudança de endereço? Por que uma lista telefônica tão gorda? Por que o Hino Nacional todas as manhãs? Por que palmilhas ortopédicas dentro de botas ortopédicas? Por que festas de aniversário? Por que mais medo do que nojo das baratas? Por que tantos pequenos objetos? Por que tanta poeira cobrindo os móveis? Por que uma mesa daquele tamanho numa sala tão pequena? Por que não matar logo os filhos? Por que não cheirar cocaína? Por que só o foro das cortinas? Por que tanta vergonha? Por que não pegar as palavras, arrancá-las de dentro dos teus ouvidos e enfiá-las de volta na minha própria boca? Por que não comprar uma bola de capotão? Por que não torcer para o River Plate? Por que não construir um carrinho de rolimã e pintar nele uma boceta gigante? Por que toda a febre de copo pulsando atrás dos olhos quando eles se movem? Por que então eles não ficam parados?
Por que você está tão calada? Por que os meus cabelos são tão vermelhos, mãe?”

Uma volta lenta à infância de inúmeras perguntas cujas respostas acabam invariavelmente perdidas no ar, porque a vida é muito mais dúvidas do que certezas, e crescer é uma ordem da qual não podemos nos privar. A terceira parte do livro principia com uma epígrafe de Augusto Monterroso: “Cuando despertó, el dinossaurio todavía estaba alli.” Outra grande dúvida para os ilustríssimos críticos literários formados sob a égide olímpica da academia, o que, acredito, não vem ao caso: se esse é mesmo o mais curto de todos os contos. Não importa! Vem bem a calhar em relação ao livro todo, que causa o idêntico estranhamento desconfortante, a mesma sensação de insustentabilidade que a epígrafe de Monterroso. A mesma pergunta que, parece, não deixa transparecer uma resposta possível: estamos diante de um romance a rigouer, ou de fragmentos de uma morte que se anuncia, pronta a fazer parte, ela mesma, do limbo disforme das coisas que não já não podem ser contadas.

O Avesso dos Dias é, na verdade, o avesso do avesso do avesso do avesso da vida e seus anseios, da morte e da memória, do fragmento de que somos feitos todos nós.
E o resto é esquecimento!
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