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Ensaios-->MEU PÉ DE ONZE-HORAS -- 10/03/2004 - 10:28 (Oswaldo Lazzarotti) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Certa feita, em 1887, um menino chamado Carl Gustav Jung, ao voltar do colégio, passava pela praça da Catedral, quando viu-se diante de uma situação inusitada e desconcertante. O céu azul, o sol brilhava em toda sua luminosidade. O teto da Catedral cintilava. Deslumbrado diante desse espetáculo, pensou em como o mundo era belo, a igreja bela e Deus, que tudo criou, sentado lá no alto, num trono de ouro. E nesse momento, algo o deixa paralisado, estupefato e asfixiado. Algo terrível está por acontecer e ele vai depressa para sua casa.
Mas o que de tão grave e diabólico o deixa tão desesperado por vários dias? Após o tormento de várias noites de insônia, o jovem Jung chega à conclusão de que Deus estava pondo à prova sua coragem. “Se for assim e eu triunfar, Ele me dará Sua luz e Sua graça”.
Volta à praça, reúne todas as forças, como se fosse saltar nas chamas do inferno e deixa o pensamento restante emergir. Lá está a Catedral, em cima o céu azul. Deus em seu trono de ouro, alto, acima do mundo....e....de repente, saindo debaixo de seu trono, um enorme excremento cai sobre o teto novo e colorido da Catedral, que se despedaça e desaba.
Era isto ! Apenas um pensamento. E Jung é tomado de imensa liberdade, alívio e graça. Arriscara um ato de coragem.
Esta conhecida passagem do jovem Jung, futuro “Mestre da Cesaréia”, primeiro discípulo de Freud, me marca a possibilidade de transcender, do imponderável, de embarcar numa bolha do “nada” e sair por aí (sem) rumo aos confins do infinito.
Afinal, foram 48 voltas ao redor do sol que me levaram a uma sala da Universidade Tuiuti, calouro das aulas de antropologia, psicologia, filosofia, que me deixavam boquiaberto. Mas então era isto ? ! Minha angústia era o “insuportável não saber” ?! Como podia ter vivido até então, sem Platão, Sócrates, o Mito da Caverna, Santo Agostinho, as “feridas narcísicas” ?! E o existir e o ser do Existencialismo?! A cada pequena porta de um saber, escancaravam-se enormes janelas do desconhecido.
Dia destes, sentado na sacada de meu apartamento no 11º andar, uma idéia maluca e absurda. Fechei os olhos, para “ver” como seria o mundo, se eu não o percebesse. Sabia que na minha frente estava o prédio vizinho; à esquerda, a rua terminava na praia, numa fresta de mar; lá longe, o campanário de uma igreja, contra o morro que fechava o horizonte. A meu lado, um vaso com um pé de “Onze-Horas”.
Mas apenas “eu” sabia disso. O prédio vizinho não me via na sacada e desconhecia a cidade a seu redor. O campanário nunca ouvira seus sinos, nem a capela jamais soubera que Deus a habitava. O mar, sem saber, relutava em acomodar-se à gravidade. E o morro? Um amontoado aleatório - já houve época que em seu lugar, havia apenas um lugar. E o horizonte era tão (ir)real quanto o vento...que é apenas movimento. Não existem por si.
O mundo é morto ! Que horror !
Abro os olhos e, na fresta do mar, um navio pachorrento passa, saído do porto de Itajaí. Binóculo rápido! Lá está, marcado no casco: é um Narrenschiff ! A barca louca em que eram embarcados os loucos na idade média e empurrados a vagar no Mediterrâneo.
Reuno coragem e, num salto, nela desembarco do mundo, para a liberdade do mar, a mais aberta das estradas. Martini (Denny de Vitto), o baixinho do filme “Um Estranho no Ninho”, está no comando da barca. Reconheceu-me das vezes que assisti aos seus filmes. Disse que estava me esperando e me abraçou. Ao grito de “around the world !” (do filme Bounty), como num passe de mágica de desenho animado, a “Stultifera Navis” refaz-se na imponderável “bolha do nada”. E partimos, num rasgo de luz, rumo às estrelas, ao infinito, para o maior dos sonhos, viajar com Martini (um louco inocente).
Logo, logo, é há 5 bilhões de anos-luz que partimos. A Terra e o Sol deixaram de existir e ele está livre de ouvir seu planeta Terra rir de que, até a descoberta de Copérnico, ela era o centro e ele girava em torno dela.
A diabólica enfermeira do filme de Martini, agora submissa, envelhecera e morrera logo depois da partida, por não acreditar que, a esta velocidade, Einstein alongara o tempo, na Teoria da Relatividade. Foi pena. Ela e Martini, agora amigos, enredavam-se em longos estudos da “História da Loucura” de Michel Foucault.
Vez que outra, uma música cósmica, a orquestra do Eterno, embala o Universo. E outra vez o silêncio, do sempre e do nunca, informando ao viajante, a inexistência do tempo.
Cruzamos galáxias fervilhando de vida, cada qual com seu Deus, pairando ao redor.
Os mundos se repetem. Ao passar por um deles, em formação, vimos quatro braços de um rio, saindo de um Èden. Na sua porta, um anjo de espada em punho, assiste ao primeiro diálogo daquele planeta. Deus procura por um bípede que, depois de provar do fruto da descoberta, se escondera.
“Adão, onde estás?” – O anjo sorri, antevendo a sabedoria e ironia do autor que irá escrever o Gênesis, do quanto deixará nas entrelinhas. Ora ! Deus não sabe onde Adão está? ...Deve ser o gozador máximo, das cinco vias tomasinas (Tomás de Aquino).
Adão vê-se expulso de sua natureza, desamparado, sem pátria, sem paraíso, sem confidente. Eva (e suas filhas) jamais irá entender que Adão não entende que ela não o entende... Sem pátria, sem álibis e, sabendo-se agora sem Deus, Adão responde, consciente e a medo: “Estou nu”. Mas como apenas Deus o ouvira, seus descendentes, por milhares de anos, irão perseguir a chave do sentido de sua existência, do sentimento de sua culpa, de um pecado original, sem perceber que o segredo está nestas duas palavras, “estou nu”, a natureza para sempre perdida.
Martini tenta interferir, mudar o futuro daquela humanidade. Mas Adão não o ouve. Até hoje.
Outro mundo dispunha de uma hierarquia, em camadas superpostas de santos, anjos, o Filho de Deus, Sua Mãe e, acima de tudo, o Deus do trono de ouro. Em anexos nada confortáveis, um purgatório e, bem abaixo, um inferno. Arcanjos ensaiavam suas trombetas apocalípticas, enquanto separavam seus habitantes em duas enormes filas. Este estranho mundo devia estar próximo de um triste fim.
Noutros mundos, porém, nada, além de suas luas. Deviam ser ainda ateus, ou dinossauros.
E seguimos caminho. O cosmos é escuro, pontilhado de luzes distantes. Mas, interessante, não há fontes de escuridão. Diz Martini que a escuridão pode estar cheia de luz, mas esta se manifesta apenas se, em sua passagem, esbarrar ou incidir sobre algo. Ela apenas existe. Mas existir, dirá Gassendi, não acrescenta nada. A existência, por si, é informe e vazia. E, pior...há coisas que apenas “são”. Mas se o homem existe e as coisas são, é porque existir é marcado pela essência.
E a sombra? Esta, sim, é marca de luz. Jung fez a analogia: a persona é a sombra. O “não-ser” que poderia ter sido, do existencialismo. O caminho que não se escolheu, de uma encruzilhada.
Veja, ao redor desse mundo ali, as almas ficam pairando, à espera de sua vez de retornar, para incorporar a matéria (humana) e aperfeiçoar-se, numa espécie de “metempsicose”. Lá embaixo, parece Atenas, Platão registrando os ensinamentos de Sócrates.
Nos mundos em que pousamos, trocamos notícias. Na “Floresta Negra” de um deles, numa enorme cabana, anunciava-se um novo “Banquete”. Já tinham chegado Hegel, Kierkegaard, Husserl, Heidegger, Jean Paul Sartre e outros pensadores e mestres do final do segundo milênio, Almir Pedro Sais (meu professor) inclusive. Tinham vindo outras visitas distantes no tempo: Protágoras de Abdera, afirmando que o homem é a medida de todas as coisas, “que são o que são e das que não são o que não são”. Górgias, de Leontinos, com seu livro “Do Não-Ser”, repetia que “se” existir algo, é impensável. Zenon de Eléia, com sua flecha alada do “não-tempo”.
Aproximamo-nos. Martini garante que não somos sofistas e nos aceitam. Agáton, promotor do banquete, indica o falante Aristodemo para dirigir o encontro, autêntica “Operação Cavalo de Tróia”. Sugere a escolha de outro tema , já que “O Amor” fora esgotado na obra “O Banquete” de Platão. Hegel propõe, então, “a existência como forma de expressão”, mas Kierkegaard a percebe como “idéia absoluta” e acrescenta que, além da mera manifestação, o homem dispõe de sua própria realidade e subjetividade existencial. Este enfoque é sua proposta. Atento, Husserl desafia um confronto da objetividade da “ciência monopolizadora do conhecimento”, com as possibilidades de humanizá-la, num ato de significação, de interferência da intencionalidade. Apresenta sua proposta de reflexão sobre os fenômenos, a partir dos próprios fenômenos, permitindo conhecê-los, constituí-los. Heidegger, que já se altercava com Zenon sobre a temporalidade do “Dasein”, levanta um debate de aproximação entre o existencialismo de Kierkegaard e a fenomenologia de Husserl e, com apoio de Górgias, um confronto entre o domínio do “se”, na existência inautêntica e a obrigatoriedade de escolha.
Finalmente, Sartre propõe discutir todos estes enfoques, culminando com o que todos têm em comum, o homem como intencionalmente construtor de seu destino, capaz de se deslocar e modificar o mundo, já que condenado à liberdade.
Martini, professoralmente, me faz perceber o óbvio: que estão todos, como sempre, tentando apaziguar suas angústias.
-Sim, mas ao mesmo tempo, contribuem para que os demais se situem no evoluir de suas existências, na sua história, tornando possível sua consciência de integrados ao Universo.
- E responsáveis pelo que fizeram, do que os outros fizeram deles...
À nossa saída, Sartre nos acompanha até à nave. Fica encantado com nossa “bolha do nada”. Pergunta sobre um jovem que conhecera e fora seu intérprete, numa conferência que fizera em Sorocaba, São Paulo, em 1960 (a crise política que se instalava, censurou sua realização na capital). Contamos a ele que, na data de nossa partira, era Presidente (FHC-Fernando Henrique Cardoso). Jean Paul Sartre arregala seus olhos já naturalmente esbugalhados e desmaia nos braços de Simone de Beauvoir.
Ali perto, de passagem por um grande cemitério, vimos dois vultos brancos sobre seus túmulos vizinhos. Eram Deus e Nietsche, discutindo sobre qual deles teria, de fato, morrido. (Porque sempre tem um aluno engraçadinho que escreve no quadro-negro: “Deus morreu – assinado: Nietsche”. E outro vai lá e acrescenta: “E Nietsche também” – assinado: Deus”).
Chegando por uma estrada próxima, guitarra nas costas, Raul Seixas provocava: “Parem este mundo que eu quero descer”.
De novo partimos. Chegamos ao que parecia ser o confim, o limite de alcance dos doze bilhões de anos-luz da velha luneta Hubble. Ultrapassamos uma membrana que Einstein previra existir no Universo, como cordas ondulatórias concêntricas e – incrível – nos vimos além do Universo.
Visto de fora, era do tamanho de uma pérola. E, inacreditável, fazia parte de outras pérolas, formando um colar. Não! Bilhões de colares. Martini se espanta quando afirmo tratar-se de cadeias de aminoácidos. Confirmamos: eram ligações peptídicas e estavam se replicando...no olho de um urso que acordava da hibernação. Em outra dimensão!
Eureka! Ali estava, com toda clareza: O “Big-Bang foi o “flash” de uma piscadela de um urso que ativou nossa pérola-aminoácido-universo, onde bilhões de anos correspondem aqui, ao espreguiçar de um urso-polar, na chegada da primavera.
Capturados por um novo universo em formação, nossa nave se ajusta e as proporções se equiparam. Mesmo porque, se ao raiar de um dia, tudo tiver dobrado de tamanho, ninguém irá perceber. E partimos de retorno. Concluímos que o Universo se repetia e que os bilhões de anos-luz não nos levaram nem ao fim nem ao começo de nada. Essa preocupação me faz levantar a Martini duas hipóteses: ou o mundo foi criado por um evento sobrenatural, para sempre fora do alcance dos tripulantes das Narrenschiff, ou sempre existiu. E, neste caso, a vida é co-eterna da matéria, pois se manifesta assim que um planeta se converte num laboratório criador. E isto é intencional! A vida é Ele, o Universo!
Na viagem de volta, viemos discutindo, meditando, concluindo:
-Martini: Aquilo de que fui feito, sempre esteve no Universo. Meus genes podem ter vindo de um pedreiro de Quéops, enquanto a matéria se reciclava no “Red River Valleyu”, onde nasci.
-Oswaldo: No meu caso, se reciclava no “Green Valley do Rio Uruguai”.
-Martini: No triássico, em alguma forma de vida, fui contemporâneo dos dinossauros e antes, estiver nas nuvens de poeira que se aglutinaram no sistema solar, que es espiralou na Via Láctea.
-Oswaldo: E que se dirige ao Grande Atrator (Um centro desconhecido para onde se dirigem todas as galáxias).
-Martini: Parece que os instintos, o inconsciente coletivo, os mitos primitivos, as crenças na ressurreição e reencarnação, todos os textos bíblicos e religiosos em geral, são apenas sinais acessíveis e limitados, uma consciência arquetípica dos ciclos pulsantes do Universo, da natureza eterna da vida.
-Oswaldo: E a perpetuidade não está no existir, mas no ser. O Universo só é vida, porque é cíclico, pois vida estática é morte. Assim, a morte material é a condição da vida em existências. Nos pesa a questão do “eu narcísico” de querer estar vivo de novo em outros tempos e ter consciência disto. Mas, de certa forma, eu vivo também, simultaneamente, em outros tempos, pois, em relação ao passado e ao futuro, até onde eu os projete ou reconstitua, estou presente neles. Posso dizer que tenho a “idade” e a dimensão da minha percepção do Universo. A vida é universal. Eu, indivíduo, dou uma partícula dela.
-Martini: Tão claro que veja: de células indiferenciadas iniciais, os seres vivos são gora uma combina~~ao delas, sensibilizadas para suas reações integradas. Assim, os neurônio sensibilizados t~em a intencionalidade das percepções. Assim, ter consciência é imanente, implica num preenchimento simultâneo entre o Ser (objeto) e o Nada (consciência), segundo nosso filósofo Sartre.
-Oswaldo: Então, o “eu” é pura hipótese de imaginação. Quanto aos neurônios, já se fez a experiência em laboratório na França, em 1992, comprovando a teoria da existência material dos estados de consciência, no engrama resultante da reação químico-elétrica de uma sinapse. Mas, então, há também, por analogia, op estado consciente da matéria! Ora! Então eu, ser vivo, sou este estado consciente do Universo. Então, de novo! Eu sou o Universo consciente de si mesmo !!
Martini: Tem sentido. Mas ouça agora estes antigos versos:
“Devir: é sempre uma e só coisa
A morte e a vida
O despertar e o dormir
A mocidade e a velhice
Que, quando muda é aquilo
E aquilo, por sua vez
Quando muda, é isto de novo
Sempre encerrado entre os contrários
Eterno retorno, no meio de todo devir
Do curso das coisas
O homem descobre a ordem a inteligência
Pois a essência é o vir-a-ser
O tudo em perpétuo fluxo”.
-Oswaldo: Muito bem, Martini. É do poeta Heráclito, de quinhentos anos antes de Cristo. Ele e seus contemporâneos já sabiam, mas nós descobrimos algumas coisas por nós mesmos, mesmo que o livre pensar seja só pensar. Fizemos nosso ensaio e não foram apenas pensamentos. Foram um ato de coragem.

Chegamos ao nosso ponto de partida, nosso velho/novo planeta azul. Tudo era como antes. No dia seguinte, que alívio estar de volta ao confortável e seguro cotidiano. Ainda cedo, a pé, rumo ao trabalho, revejo velhos conhecidos: num jardim, dois cogumelos de cimento e, em sua sombra, dois sapos verdes. Desta vez, tive a impressão de que responderam ao meu “bom-dia”. Espiando pelas grades, num canto do jardim, uma rosa...nada mais que uma anônima rosa. Mas eu a percebi ali, junto à sebe. Agora é, existe, é infinita.
Como voltamos? Reentramos, sem perceber, noutra das pérolas-universo, recém replicada, bilhões de anos-luz mais nova que os mundos que nossa viagem atingiu, e assim, era de novo nosso mundo original, onde, ainda tudo re-acontecia.
E Martini?
Fez-se ao mar, com sua barca, com a enfermeira resgatada na volta do tempo. Michel Foucault está com eles. Embarcou em nossa bolha do nada, clandestino, no final do Banquete. E seguem discutindo qual dos três é o louco...
-Valeu! Valente navegador! Grande Martini !
-Que o mar te seja acolhedor! (-Teu imediato)

De volta à sacada, nada mais é o mesmo. O Universo é vida. Meu pé de Onze-Horas está ali, reage à luz, ao ar, à água. Talvez, de alguma forma, também tenha alguma percepção de si-universo.
São quase 11:00 hs e suas flores acordam.
Mas uma delas, abrindo-se em minha direção, parece marota e cúmplice.
E, de repente...juro que vi...bem de leve, piscou para mim.

.o0o.

fim
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