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Contos-->Mórbido Amor -- 23/11/2002 - 17:27 (Rosália Pirolli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A noite caía por fim, levando embora as luzes do dia e trazendo as trevas e a morbidez que me fazem gostar tanto da noite. Não que eu fosse uma vampira ou qualquer outra criatura fantasticamente noturna, apenas simplesmente detestava a luz do dia. Todas as luzes são falsas.
A rua estava quase deserta com exceção de algumas poucas pessoas que corriam para as suas casas na ânsia por encontrar suas famílias e repousarem do caos e do cansaço. Mas eu não tinha uma família para voltar depois do trabalho, e também não tinha nenhum trabalho para me obrigar a abandonar minha casa.
Vivia sozinha, num quarto imundo e pequeno num beco escuro e fétido, perto de uma avenida barulhenta e suja. Minha única companhia naquele antro era um gato extremamente negro que há alguns anos me escolhera como dona. Lembro-me que no início eu o odiava. Expulsava aquele gato negro do meu quarto com chutes de coturno nas suas costas, ou com baldes de água gelada em seu focinho. Mas ele foi ficando e aceitando todas as minhas anormalidades até que um dia eu descobri que não podia mais deixar aquele gato partir, e então ele ficou morando comigo. Seu nome não podia ser mais inspirado, Poe. Inicialmente eu o chamaria de Raven ou Crow, mas era estranho chamar um gato com um nome de uma ave, e acabou ficando Poe mesmo.
Quando eu tinha crises de choro ou de desespero ele se escondia embaixo do colchão onde eu dormia e miava até que passasse a minha falta de controle e então ele pulava no meu colo, e eu esquecia um pouco a minha tristeza e a incrível solidão que sentia. Ele era a única família que eu tinha.
Andando pelas ruas mal-iluminadas eu podia perceber que as pessoas não me olhavam, e eu sabia que para todos aqueles apressados eu era nada além de um vulto que caminhava ou uma sombra que apenas interrompia os caminhos. Não me importava com os julgamentos. Há muito tempo eu deixara de me importar com o que as pessoas pensavam e há muito tempo eu deixara de ser uma pessoa aparentemente normal. Não mais tentava esconder a angústia debaixo de uma máscara de falsidade. Meus cabelos estavam rebeldes, só não mais do que o turbilhão de sentimentos que eu sentia. Nunca sabia ao exato o que eu sentia. Era sempre uma confusão de vozes, imagens e sensações. Eu não tinha nenhuma lembrança. O resto era tudo um vácuo imenso na minha cabeça e uma ferida aberta que sangrava continuamente no meu peito.
Mas como eu gosto de andar de noite. As vezes, numa praça mais distante, quando a noite está bem escura eu podia ver as estrelas. Parece loucura mas aqueles pequenos pedaços de brilhantes no céu eram um consolo para minhas mágoas. Ninguém se importava com elas, somente os poetas que sabiam re-tratar toda a sua beleza. Ninguém se importava comigo, mas os poetas sabi-am o que eu sentia apesar de ignorarem minha existência pérfida.
O cheiro da noite também era uma das minhas sensações favoritas. É algo indescritível pois para alguns ele não passa de um odor desagradável, mas para mim era como o perfume de todas as margaridas do mundo. Podia passar horas, dias se fosse possível apenas vendo as estrelas e sentindo o cheiro da escuridão. Mas como tudo é cíclico, após a minha vazia sensação de estabilidade que é a noite vem o dia. O dia que destrói todas as minhas esperanças de tentar ser feliz.
E quando os primeiros raios vermelhos ameaçavam raiar no horizonte eu corria rapidamente para casa. Não que a luz do sol me queimasse e me transformasse em cinzas, apenas fugia dela porque ela deixava meu coração em chamas. E então eu passava o dia na minha prisão de desejos e amarguras, em meio a pesadelos e lágrimas e então quando a noite chegava eu estava livre novamente. Livre para buscar o que eu tanto procuro e nunca acho.
Em uma dessas noites eu não tive vontade de sair. Abri a porta, que estava rachada e Poe esgueirou-se e fugiu para a rua. Não me importei muito, afinal eu era como ele. Fugia de noite mas sempre voltava quando a luz me cegasse. Olhei para aquele lugar maldito que eu habitava e senti um terrível impulso. Uma vontade irresistível de me jogar na frente do primeiro caminhão ou de me atirar da primeira ponte que eu visse. E assim meus passos foram me levando.
Algumas lágrimas deixavam meu olhar nebuloso como se uma bruma fina cobrisse todo o meu caminho. Olhando para cima eu sabia que nenhuma estrela estava brilhando. O cheiro da noite parecia fraco, como se estivesse morto. Eu simplesmente andei. Fui deixando meus instintos guiar meu corpo quando parei. Com a manga da minha blusa enxuguei meus olhos e vi o que parecia um portal. Mas não havia nenhuma luz atrás. Eu não tinha morrido ainda. Então, somente quando dei uma segunda e mais atenta examinada pude perceber que estava defronte um cemitério.
Não sei porque verifiquei se estava fechado aquele portão, mas por algum desígnio que eu jamais entenderei ele se abriu levando para um caminho de pedras frias e tristes.
Entrei, afinal, algo me chamara até ali. Acontecesse o que fosse preciso. Fui andando através das sepulturas. Algumas eram bonitas, de mármore brando e eram vigiadas por delicadas estátuas de anjinhos e virgens. E algumas tinham flores frescas deixadas por algum ente querido. Mas a grande maioria era simples, apenas o jazigo indicando o nome da pessoa e a data de morte. Nenhuma flor, nenhum epitáfio, nenhuma indicação do que aquela pessoa fez. Apenas sonhos de vida e realizações enfileirados em linha que jaziam debaixo da terra úmida. Poderia ser assustador para qualquer outra pessoa, mas não para mim. A morte sempre andava do meu lado, de mãos dadas comigo. Peguei uma rosa, que me chamou muito a atenção, e pus nos meus cabelos. Era uma rosa solitária que repousava sobre um túmulo. Aquele cadáver não sentiria falta daquele pequeno mimo.
Uma coruja piou ao longe, e eu suspirei como se a respondesse. Não. Os fantasmas não falariam comigo. Eu era por demais sombria para que eles pudessem me assustar.
E continuei andando pelas sepulturas até que avistei uma luz acesa. Era uma capela, e a porta estava aberta. Fui até lá. Com passos serenos e compassados. Quando entrei na capela um perfume de cravos invadiu minhas narinas. Era um perfume forte, inebriante. Não havia ninguém exceto um caixão com a tampa aberta. Nenhuma vela indicando orações ou pesar. O caixão era simples, e as flores também, poderiam ter sido furtadas de um jardim qualquer.
Me aproximei do caixão e olhei o cadáver que jazia dentro dele. Era um rapaz. O mais belo rapaz que eu já vira em toda a minha existência inócua e infértil.
Ele tinha os cabelos negros, muito negros. Negros como a noite que eu amava tanto. Seus lábios esboçavam um sorriso. Um sorriso melancólico e triste.
Sem temor algum eu afastei o véu que cobria sua face, e toquei-a. Estava fria, muito fria. A vida deixara aquele belo corpo há algum tempo. Soltei seu cabelo, comprido e liso, que emoldurava um rosto sereno e tranqüilo. Jamais eu havia visto tamanha serenidade em um rosto.
Parecia insanidade, mas eu não conseguia parar de olhar aquele rosto. Imaginava qual devia ter sido a cor de seus olhos, e uma intuição me disse que eram azuis. Azuis como o céu que eu nunca mais contemplara.
Debrucei-me sobre o caixão, e não contive um impulso. Beijei aqueles lábios gelados e sem vida.
Um calafrio percorreu minha espinha quando toquei os lábios daquele rapaz enigmático. Um calafrio que sempre estava acompanhado de alguma premonição.
Eu chegara até ali em um estado completo de sonambulismo, mas eu chegara tarde demais. O homem que eu amava era um cadáver. Parecia loucura aquele amor descomedido que tomou conta do meu coração insensível. Nunca tinha sentido qualquer coisa que se assemelhasse. Por quais malditos desígnios eu o estava conhecendo agora? Antes tivesse ignorado completamente sua existência e pensado que se esqueceram de mim quando inventaram o amor. Não podia suportar o que eu estava sentindo. Iria explodir senão confessasse à todos os demônios soturnos. A dor lacerava minhas entranhas, como se a pior de todas as torturas estivessem sendo empregadas em meu corpo. Não queria pensar mais nada, não queria sentir mais nada. Agarrei-me naquele cadáver e um grito profundamente esquecido saiu da minha garganta junto com uma explosão de lágrimas. Após isso sucumbi. Jamais saberei o que terminou acontecendo no resto da noite trágica.
Acordei quando o sol estava se pondo, e estava muito suada. Não havia tirado os calçados. A minha roupa estava suja de terra. Apalpei meus cabelos e a rosa estava lá. Agora murcha e morta. Fiquei desesperada. Não havia sido apenas um sonho. Fora real. Levantei rapidamente e quase gritei quando vi quem estava ao meu lado naquele colchão imundo.
O único amado que eu tive um dia. Aquele cadáver de rapaz que estava naquele caixão estivera ao meu lado o dia inteiro, mas eu não sabia como ele viera parar aqui. Fui tomar um banho no banheiro apertado e sujo anexo ao meu quarto. Enxuguei-me e penteei os cabelos. Coloquei a única camisola que eu tinha. Rubra como o sangue.
Joguei as roupas sujas e a toalha num canto do antro e tive medo de olhar para o colchão. Poe dormia tranqüilamente em cima do meu travesseiro, ignorando totalmente o resto. Ao seu lado estava o rapaz morto. O rapaz que eu sequer sabia o nome ou a procedência. A única coisa que eu sabia era que eu o amava.
A loucura tomou conta de mim e eu deitei novamente no colchão. Abracei-me àquele cadáver e jamais repousei tão esplendidamente em toda a minha vida. Quando acordei novamente era manhã, mas eu estava morrendo de fome. O meu companheiro não precisava se alimentar, mas eu precisava. Troquei a camisola pelas minhas habituais roupas negras. Peguei umas poucas moedas que estavam jogadas em cima de uma caixa de frutas que me servia de mesa e abri a porta, mas antes de sair beijei o meu amado carinhosamente. Poe miou mas logo voltou a dormir. Fazia tempo que eu não saía durante o dia mas ninguém pareceu incomodado com a minha presença. Anos na inexistência me fizeram invisível. Caminhei rapidamente até um boteco decadente na outra esquina e pedi um café da manhã forte e reforçado, um pão velho com margarina embolorada e café do dia anterior. O dono do boteco era um conhecido meu e aquilo era a única coisa que ele podia me oferecer pelo que eu podia pagar. Mas eu me senti uma rainha no seu banquete. A única coisa que me pesava a alma era o meu príncipe não poder estar ali também. Comi calmamente pois aquela seria com certeza a minha única refeição do dia ou talvez de dois ou três dias, e então voltei rapidamente para o meu lar, onde o meu amado e Poe me esperavam.
Minha pele ardia graças ao sol. Eu não estava mais acostumada a andar sob a luz do dia.
O homem que eu amava não se movera. Parecia uma ironia. Poe também estava imóvel. Acariciei seu pêlo para ver se esboçava alguma reação. Mas ele continuava imóvel. Aproximei minha mão de sua boca, e fiquei desesperada quando constatei que não havia sinal de respiração. Por fim vi que ele também estava gelado. Poe também havia morrido. Eu estava novamente sozinha no mundo. Tirei os sapatos e deitei abraçada ao meu amado e a Poe. Ambos gelados e mortos. Ali eu fiquei não sei quantos dias. Uma espécie de letargia tomou conta de mim. Quando abri meus olhos novamente não reconheci o lugar onde estava. Era o mesmo quarto fétido e imundo que eu morava, mas parecia ser um palácio. No colchão, o mesmo cheio de pulgas, agora parecia uma cama real macia e quente. Parecia que alguma coisa havia mudado enquanto eu estivera naquele estado moribundo. A luz entrava radiante pela janela que não existia no antro e eu precisava preparar uma refeição para o meu amante, que dormia na cama após uma noite inesquecível de amor. Corri ao mesmo boteco da esquina, e algumas pessoas ficaram me olhando com pena. O meu conhecido olhou-me assustado mas nada disse. Comprei tudo o que as minhas mãos puderam carregar e disse para todos que estava indo preparar o café da manhã para a minha família.
Se eu estivesse um resquício de lucidez veria que estava apenas de camisola e que todos me olhavam assustados. Mas eu nada percebi. Voltei rapidamente e comecei a cozinhar um banquete. O cheiro funesto porém delicioso espalhava-se por todo o beco. Quando terminei arrumei a grande mesa de banquete com a mais fina toalha de linho, que na verdade era um lençol semi-apodrecido e pus fiz um lindo arranjo na mesa com flores, que era a rosa morta que eu havia colhido na sepultura.
Peguei uma escova e fui pentear os cabelos de meu amante, que eram negros, brilhantes e compridos. Deixei-os soltos, e ele ficava mais bonito assim. Coloquei a sua camisa branca, um pouco amarelada e suja, mas eu não percebi estes detalhes e num esforço sobre-humano que na hora me pareceu nulo coloquei-o sentado na bela cadeira da mesa, que era assim como a própria mesa, uma caixa de frutas. Cuidadosamente peguei Poe e penteei seu pêlo, com a mesma escova que penteara o meu amado e o coloquei em cima da mesa, como se bebesse o conteúdo invisível de um prato de leite.
Eu era a mulher mais feliz de todo o mundo. Tinha o homem que eu amava ao meu lado e um maravilhoso gato de estimação. Que mais eu poderia querer? Quando terminei o banquete beijei carinhosamente o meu amado, a pele ainda era fria, mas me pareceu suave e morna. Ouvi alguém batendo na porta e tive medo, agarrei-me ao meu amado e esperei arrombarem a porta. Dois homens vestidos de branco e mais dois homens de uniforme.
Os homens de branco tentavam me separar do meu amado e de Poe, e quan-do terminaram de colocar aquela camisa estranha que me prendia os braços apenas consegui dar um último beijo no meu amado e dizer que lhe amava.
Colocaram-me num carro com sirene e logo me levaram para uma casa grande com um bonito jardim. Me perguntaram o que havia acontecido com o meu amado, mas eu não sabia de nada. Ele estava feliz aquela manhã. Tínhamos tido uma bela noite de amor e ele sorria para mim no café da manhã. Os homens ficaram assustados, mas eu não. Afinal não era nenhum pecado mortal o ato de amar.
Então deram-me um comprimido e eu desmaiei.
Quando acordei estava num quarto branco e limpo, e com uma roupa também branca e limpa. Estava me sentindo muito pesada e parecia que carregava um fardo. Meu amado não estava comigo e isso fez-me chorar e bater nas paredes até escorrer sangue das minhas mãos e da minha face. Uma mulher apareceu na porta e entrou e eu segurei-a pelo vestido e sacudi-a violentamente. Ela havia escondido o meu amado e Poe. Eles estavam tentando tirar o meu amado e Poe. Eu chorava e gritava ao mesmo tempo. Os olhos da mulher se arregalaram e eu vi um fio metálico brilhar contra a luz. Fiquei pesada novamente e tudo escureceu. Apenas
quando acordei percebi que estava em outro lugar. Era um quarto todo acolchoado e eu estava presa por uma camisa. Me debati o quanto pude, e dois homens me olharam o tempo todo através de uma janelinha na porta, fazendo anotações. Quando cansei algumas lágrimas escorreram de meus olhos e eu pedi que meu amado viesse me buscar. Apenas senti quando ele me tomou nos seus braços fortes e sussurrou para que eu nada temesse. Novamente meus olhos escureceram e eu caí. Caí para não mais levantar.
Na manhã seguinte quando as enfermeiras foram dar sedativos para a nova paciente encontraram-na morta. Inexplicavelmente morta. Os médicos não acharam outro jeito de homenagea-la.
Aquele antigo cemitério possuía agora uma nova sepultura. Onde lado a lado repousavam. Eu e o meu amor.






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