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Ensaios-->Harold Bloom e o futuro da universidade -- 14/09/2004 - 10:53 (Celso Augusto Uequed Pitol) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A entrada na universidade é um momento especial para qualquer jovem. Pela primeira vez a sua opção será medida pela força dessa convergência harmônica de habilidades e interesses a que chamamos “vocação”. É um teste, e um grande momento, tão grande quanto o contraste entre a aspiração e a realidade. É um contraste marcante: um pouco de convívio dentro dos corredores das universidades já esmorece qualquer ânimo renovador dos estudantes. Se há qualquer idealismo fomentado pelas figuras clássicas dos mestres, ele some por completo quando o estudante se depara frente a frente com o ambiente universitário. Se fosse apenas uma das várias decepções das quais a adolescência está cheia, as conseqüências não preocupariam. Há, no entanto, bons motivos para crer que é um indício de uma tragédia – e para todas as idades.
Provavelmente pensando neles, os alunos, o professor e crítico literário norte-americano Harold Bloom disse o seguinte:

“A todos os meus melhores alunos de graduação eu digo para não cursarem pós-graduação. Façam qualquer coisa, garantam a sobrevivência do jeito que for, mas não como professores universitários. Sintam-se livres para estudar literatura por conta própria, para ler e escrever sozinhos, porque a próxima geração de bons leitores e críticos terá que vir de fora das universidades”.
(“Harold Bloom contra ataca”, Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 1995)

Como se pode ver, Bloom não nos desampara e aponta um caminho, o que não é pouco. Mesmo assim, não deixa de ser frustrante ouvir um conselho desta ordem de um acadêmico deste porte e tão profundamente ligado às raízes da cultura ocidental. Afinal, trata-se de Harold Bloom, o autor de O Cânone Ocidental e Shakespeare – A Invenção do Humano, o scholar de linhagem britânica que deveria, em princípio, defender a tradição da qual faz parte. Se a crítica é tão contundente e o remédio, tão radical, é porque o professor Bloom percebe uma direção nos vagarosos movimentos da História - e o fim dessa direção pode ser o abismo.
Mas talvez o professor Bloom tenha adiado, pelo respeito ao passado, a declaração de um problema que não é novo: há meio século Otto Maria Carpeaux já observava a decadência das universidades em todo o Ocidente em A Idéia da Universidade e as Idéias das Classes Médias (Ensaios Reunidos, Topbooks, 1998), mas sem exortar o estudantado a abandoná-las. É possível sentir um tom desesperado de apelo por trás da elegante prosa de Carpeaux, homem de espírito tradicional e profundamente identificado com a idéia de Ocidente, preocupado com a disseminação da barbárie dentro e fora das salas de aula e, principalmente, com a contaminação das elites culturais. O vilão que Carpeaux identificava era o utilitarismo. O de Bloom é o mesmo utilitarismo, mas transmutado, cinqüenta anos depois, em suas nefastas conseqüências: as teses cada vez mais específicas e menos relevantes, requintadas pela arte da imitação; os círculos acadêmicos, cada vez mais concêntricos; o desprezo pelas humanidades, e, dentro delas, pela estética; dar excessiva importância ao método em detrimento dos fins, ou simplesmente esquecê-los. Se Carpeaux alertava para um vírus, Bloom lamenta o estado terminal de um paciente.
Parece irônico: o professor Bloom alerta para que os estudantes não percam a oportunidade de inserir-se na tradição ocidental apesar das dificuldades que o meio universitário lhes impõe. E se é apenas isso o que ele oferece, paciência: há os livros – além, é claro, de bons mestres isolados e do entusiasmo do estudante para superá-las. Mas sobretudo os livros, e o professor Bloom confia neles. Autor de um Como e por quê ler, espécie de guia para uma humanidade que já não vê qualquer importância nas letras, crê na leitura criteriosa e selecionada dos clássicos a tábua de salvação contra a barbárie contemporânea. “Não é possível pensar sem lembrar - e são os livros que ainda preservam a maior parte de nossa herança cultural”, disse em entrevista à revista Veja. É ler para não esquecer, e tentar recuperar o valor do conhecimento ligando a produção atual aos trâmites da tradição ocidental. Sem as universidades.
Antes de jogarmos pedras aos prédios da UFRGS e da PUC (deixo que os leitores de outras paragens façam sua opção mais próxima), cabe agora um pequeno contraponto: como qualquer opinião taxativa, a de Bloom generaliza preceitos sobre algo tão diversificado quanto o ensino universitário, o que é sempre inaceitável. Mas a verdade é que quem conhece o meio acadêmico brasileiro, especialmente na área de humanidades, dificilmente discordará do que ele diz. Quem conhece as teses produzidas, o mecanismo de avaliação, as principais tendências em termos de autores e teorias, ou quem, simplesmente, as lê, tende a concordar com o termo usado pelo erudito americano para defini-las: school of resentment (escola do ressentimento). Antes de avaliações estéticas, os livros e autores passam por uma bateria de modismos requentados, como desconstrutivismo, estruturalismo, funcionalismo, new criticism, e até o velho marxismo por vezes retorna à baila, só para mostrar que ainda pode ocupar lugar num salão cheio de gente capaz de enxergar tendências comunistas em Wilheim Meister, de Goethe, de descartar Spengler por racismo e de ver propaganda pró-americana no Pato Donald. Como já observava Carpeaux há sessenta anos, com sua característica ironia, reservou-se os anos de colégio para a formação humanista e a universidade para as coisas sérias.
A saída que Bloom propõe é difícil de ser implementada, afinal, este é um tempo de poucos leitores. Sobre isso ele também já discorreu, e põe a culpa dos videogames, na televisão e nos computadores. Mas deixa claro que fala do desastre no mundo de língua inglesa. Provavelmente não conhece a situação brasileira, e por isso não deve saber que o nosso problema é mais profundo e mais difícil: desde a reforma educacional de 1971, aprovada pelo então ministro Jarbas Passarinho, o estudante brasileiro não tem contato com assuntos “dispensáveis” à formação do bom cidadão, como o francês, a filosofia e a sociologia, e o que restou dos estudos literários foi reduzido à enumeração de autores; por outro lado, foi incrementado o ensino técnico, com vistas à produção de empregados para as megaempresas do país do futuro. Se ele ainda não veio, é certo que os efeitos da reforma são perfeitamente sensíveis e ainda serão por um bom tempo. Tiramos o último lugar no ranking mundial de leitura e nossas feiras do livro estão cheias de best-sellers o momento. Além de lermos pouco, lemos mal o ruim. Que a constante simplificação da pesquisa acadêmica ainda espante alguém é, em si, algo ainda mais espantoso: é dessa sociedade sem leitores que saem dos universitários, não de conventos intelectuais.
O esforço de Harold Bloom em resgatar a necessidade da leitura como saída para a restauração cultural do Ocidente é meritório e fruto de genuíno espírito humanista. Toda a sua obra é uma tentativa de orientar o estudantado nesse caminho individual da auto-formação num mundo massificado e trivial. É uma tentativa inteligente, e mais sensata do que a de muitos pessimistas modernos, rabugentos incorrigíveis travestidos de doutores, cuja maior contribuição é dar arsenal aos adversários da causa que fingem defender. O melhor é não esquecer o que foi construído e simplesmente encarar essa nova fase das nossas universidades como uma das várias “noites do mundo” de que nos fala Heidegger. A falta de compromisso com o saber desinteressado não deve ser motivo para abandona-las. Simplesmente devemos buscar este saber fora dos seus portões porque, para esses fins, elas já não servem. Advogados, engenheiros, arquitetos, administradores e também filósofos, sociólogos e historiadores continuarão deixando os salões de formatura e entrando no mercado de trabalho. Mas aquela classe de estudiosos comprometidos com o conhecimento - os – guardiões e cultivadores do tesouro vida espiritual da humanidade, esses sairão de outros lugares, de qualquer lugar. Uma classe agora dispersa, forjada no contato direto com os clássicos, sob os auspícios de orientadores da mesma linhagem de Harold Bloom. É uma prova de fogo. E dela talvez saiamos – todos nós - mais fortes do que nunca.



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