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Ensaios-->GOZO E NOJO NA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA -- 23/02/2005 - 12:14 (Leonardo Almeida Filho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Gozo e nojo na literatura brasileira contemporânea


J.G. Ballard, na introdução de sua novela “pornográfica” Crash (1974)(1) , afirma que “nossas vidas são presididas pelos grandes e geminados leitmotifs do século 20 – sexo e paranóia.” Diante dessa constatação desencantada, o escritor defende a representação literária da paranóia e obsessão sexual pela instauração de uma estética que una a sofisticação tecnológica – cenário típico da modernidade - aos prazeres imediatos do sexo sem afeto.
O que Ballard coloca em questão ao redigir o seu prefácio, na verdade, é revelar o conflito em que se encontra o autor contemporâneo diante da necessidade de produzir suas obras em meio à massificação dos produtos culturais, sem deixar-se contaminar por essa “imediatidade”, banalidade e vulgaridade. Por outro lado, e não menos importante, traz à mesa da discussão estética e sociológica, a permanente defesa da inserção do intelectual na vida de seu tempo, ou seja, a incontornável participação do autor na vida social e a figuração, em sua obra, dos elementos recorrentes em seu cotidiano. No caso específico desse autor contemporâneo, para Ballard, a representação pela arte dessa paranóia e da fixação no sexo.
Essa discussão não é nova, como não são novos esses elementos no cotidiano das pessoas comuns e dos artistas. Sangue e sêmen, nojo e gozo, paranóia e orgasmo, são elementos recorrentes na história da arte. Sexo e violência constituem um par constante nas representações artísticas, notadamente nas artes plásticas e na música. A pornografia que invade a literatura moderna, notadamente a partir dos libertinos franceses do século XVIII, tem seu lugar em língua portuguesa nas cantigas medievais de escárnio e maldizer (séculos XV e XVI).
A última flor do Lácio preserva uma vasta tradição de erotismo em versos que vai de Bocage a Glauco Matoso, passando por Gregório de Matos Guerra, no barroco colonial, Bernardo Guimarães em nosso Romantismo e Manuel Bandeira em nosso modernismo. Apesar dessa bagagem e caminho, a poesia erótica sempre foi vista como algo menor, menos nobre, pitoresca. Às obras eróticas sempre esteve reservado um lugar de sorriso e desprezo, textos com fumos de extravagância e irreverência destinados ao olvido e piadas de salão. Não foi por outro motivo que um poeta “sério” como Carlos Drummond de Andrade solicitou que se publicasse apenas após a sua morte seu delicioso volume de poemas eróticos O amor natural.
Outro caso interessante dentre os grandes poetas brasileiros é o de Manuel Bandeira, que, em 1962, escreve “A cópula”, poema inédito até 1986, quando a revista Bric a Brac, de Brasília, após minuciosa pesquisa de estilo e grafológica, concluiu pela confirmação da autoria do poema (o poema original, manuscrito, foi enviado pelo poeta a Pedro Nava, como presente, e foi encontrado em 1986, no acervo de obras raras da biblioteca da UnB, num exemplar de Parnaso Bocagiano-Poesias Eróticas e Burlescas e Satyricas, que o mesmo Bandeira havia presenteado, em 1945, a Pedro Nava.). Confirmada a autoria, a extinta Bric a Brac, no seu número II, divulga o poema, concluindo que, a partir de então, Manoel Bandeira, que havia sido simbolista, modernista e concretista, era agora também um bocagista.
A cópula

Depois de lhe beijar meticulosamente
O cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce
O moço exibe à moça a bagagem que trouxe:
Culhões e membro, um membro enorme e turgescente.

Ela toma-o na boca e morde-o, incontinenti
Não pode ele conter-se e, de um jacto, esporrou-se
Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alterou-se
E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente.

Que vai morrer: “Eu morro! Ai não queres que eu morra?!”
Grita para o rapaz, que aceso como um Diabo,
Arde em cio e tesão na amorosa gangorra.

E titilando-a nos mamilos e no rabo
(que depois irá ter sua ração de porra)
Lhe enfia cono (2) a dentro o mangalho (3)até o cabo.


Como bem destaca Afonso Romano de Santana, “a poesia é mais atrasada que as artes plásticas e o romance. Nessas obras, há muito, está o autor liberado para expor diretamente o que sente” (4). Refere-se Afonso ao preconceito embutido na idéia de uma poesia erótica que não sucumba ao preconceito de obra menor, fugindo do estatuto de “alta poesia”. Além disso, ao contrário da prosa e das artes plásticas, um “eu lírico” que fala de desejo, inegavelmente, expõe-se mais que um personagem de ficção que o faça. O poeta que finge sua libido, na verdade, parafraseando Fernando Pessoa, finge o “que deveras sente”.
O Brasil, a partir de 1970, assistiu ao crescimento acelerado de suas cidades, ao processo vertiginoso de favelização e à brutal concentração de renda que gerou um enorme exército de excluídos. A violência urbana fez coro à violência estatal dos anos de chumbo, esta concretizada nos porões da ditadura, na repressão aos movimentos sociais, no extermínio de ações armadas contra o regime, como no Araguaia. O espetáculo do crescimento anunciado pelo “milagre econômico” entupiu nossas ruas de camelôs, de desempregados, de subempregados, de crianças abandonadas e, par e passo, erigiu verdadeiras “ilhas da fantasia” onde uma minoria, privilegiada financeiramente, levantou muros e grades para se proteger dos miseráveis que lhe batiam (e ainda batem) à porta.
A década de 70 reservou à cultura brasileira a presença nefasta da censura e a repressão explícita, sem máscaras. Flora Sussekind registra interessante painel desse período, destacando que a presença da censura junto aos poetas e escritores faz-se tão imponente que “Uma espécie de Fleury das letras acompanha de perto a produção literária dos anos 70.”(5) O escritor desse período haveria de lidar com essa realidade e contorná-la pelo uso de requintados artifícios narrativos, pela elaboração de alegorias sofisticadas, pela abstração do verso, pela inversão e perversão. A ênfase no romance-reportagem e o surgimento da geração mimeógrafo (6) são alguns dos elementos que comprovam o jogo de cintura de nossos escritores desse período. Aquele por expor “a vida como ela é”, as mazelas de uma sociedade injusta, literatura com função parajornalística, e estes, os poetas da rua, por assumirem o controle de suas produções poéticas e levarem ao leitor, numa atitude corajosa, os seus versos, sem intermediários. Em ambos os casos, a expressão de uma época de medo e desalento, que será registrada numa potente produção ficcional e poética. No caso dos romances-verdade, deve-se alertar que esses textos cumpriam, também, um papel que interessava às elites, pois “o texto-retrato tende a ocultar fraturas e divisões, a construir identidades e reforçar nacionalismos pouco críticos.” (7)
Percebemos que essa época marca profundamente os nossos escritores, assistiram à mudanças vertiginosas na sociedade brasileira de fim de século, passando pelo processo de abertura política (lenta e gradual), pela década perdida de 80, pelos problemas políticos e econômico dos 90 neo-liberais. A representação literária, nesse período, dos eternos elementos de sexo e violência, pode ser captada,com suas nuances, nos textos selecionados para esta pequena antologia.
A contemporaneidade tornou-se o tesouro de significantes de sangue e sêmen. Falar em violência nos tempos que correm é ratificar o que se ouve nos rádios, lê-se nos jornais. Assiste-se anestesiado às dores alheias expostas nos telejornais, no cinema e nos folhetins televisivos. Sexo e violência nos são ofertados diariamente, em doses massivas, cumprindo o espetacular projeto da modernidade, esvaziando-se e desmascarando os planos iluministas de bem-estar e humanismo.
O que observamos hoje é a morte do afeto e a banalização da dor. Tornamo-nos índices de desemprego, de contaminação por HIV, de sem-tetos, de mortos em desastres. Não temos nomes, somos cifras e estatísticas. Nossos filhos matam personagens em jogos de computador em rede. O mundo nos oferece fast food e fast sex e fast blood. Nos contempla com o espetáculo de mortes assépticas e sem sangue, transmitidas via satélite. Por outro lado, nos brinda com cenas de violência urbana e familiar, estas com todos os requintes escarlates da hemoglobina, os púrpuras típicos dos hematomas, as cores fétidas da morte ao lado. A violência ingressa em nossa sala na hora do jantar, sem pedir licença e, -pior de tudo – sem que nos sensibilize o espetáculo da dor alheia. Estamos entorpecidos pela aparência, tudo parece ser, nada nos aflige. O cardápio de sexo e violência que o mundo real nos oferece é vasto, variado, está estampado em néons nas ruas da cidade, na coluna de acompanhantes dos grandes jornais, nos sítios pornográficos que a Internet disponibiliza, no discurso virulento de chefes de Estado.
Gozo e nojo, sexo e sangue. Como a arte contemporânea pode refletir esse cenário sem tornar-se, ela própria, uma espécie de fast literature? Como nossos escritores têm tratado esse tema em suas produções recentes? Como surgem, na literatura produzida no Brasil de 1970 para cá, esses elementos? Estes são os pontos fundamentais que integram a problemática do autor contemporâneo.
Eros e Tanatos, como nunca antes de agora, caminham juntos, confundem-se nas saunas e nos parques escuros das cidades. Se nos anos 70 e 80 a violência originava-se do aparelho de Estado (tortura e repressão) e no início de um processo de violência urbana, fruto das condições sociais impostas aos menos favorecidos, nos 90 ela se manifesta com maior virulência na banalização do terror urbano e na exploração do caos social.
Os nomes pipocam como projéteis perdidos pelas ruas: Mirisola, Marçal Aquino, Marcelino Freire, Nelson de Oliveira, Ruffato, Ronaldo Cagiano, Alexandre Pilatti, João Bosco, Glauco Matoso. Antes deles, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, João Antonio, Cacaso, Wally Salomão, Torquato Neto. Nossos autores, sobreviventes de toda ordem, estão envolvidos no dilema de tornar arte literária o sêmen e o sangue de nossas cidades. Tudo como antes, tudo como sempre.


NOTAS

(1) BALLARD, J.G. Crash: estranhos prazeres. Tradução de Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro:Record, 1997. O autor declara que “gostaria de pensar que Crash é primeiro romance pornográfico baseado na tecnologia.” p.9.
(2) Órgão sexual feminino, palavra muito usada por Bocage em seus sonetos. Num deles, onde consola uma puta, Nise, o poeta nos diz: “O teu cono não passa por honrado [...] Não lamentes, oh Nise, teu estado/Puta tem sido muita gente boa/putíssimas fidalgas tem Lisboa/Milhões de vezes putas têm reinado” (Soneto VI).
(3) Órgão sexual masculino, também do vocabulário bocagiano : “Acções famosas do Fodaz Ribeiro / Preto na cara, enorme no mangalho / Eu pretendo cantar em tom grosseiro / Se a musa me ajudar neste Trabalho” (Poema num só conto, Bocage)
(4) ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. Rio de Janeiro: Record. 2002. No prefácio que escreveu ao O amor natural, de Carlos Drummond de Andrade, intitulado O erotismo nos deixa gauche?, Afonso Romano de Santana defende a idéia, perfeitamente procedente, de que “Está na hora de o erótico (ou pornográfico?) fazer parte natural da obra dos poetas. Não há do que se envergonhar.”(p.13.14)
(5) SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
(6) BEHR, Nicolas. Geração mimeógrafo. in Navégus, número 2, Ano I, Novembro, 1979. “Essa é a prova de fogo de nossa geração. É a nossa fase heróica. Pode pertencer a geração mimeógrafo um poeta que sempre imprimiu seus livrinhos em off-set, xerox , fotocópia. Geração mimeógrafo é antes de mais nada uma atitude. Fazemos parte da geração do atalho, vamos pelo desvio e burlamos todo o esquema editorial montado em cima do livro. [...] Quando o poeta vende seus livrinhos por aí, encurta-se para zero a distância entre o poeta e público, entre a poesia e a vida.”
(7) SUSSEKIND, Flora. Op.cit. p.27

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