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Ensaios-->AURI SACRA FAMES -- 25/03/2005 - 16:34 (Eduardo Amaro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AMARO, Luiz Eduardo Rodrigues.
Mestrando

A que não obrigas tu os corações dos mortais, ó maldita fome de ouro!
Virgílio

1- Introdução

Luís Vaz de Camões presenteou o mundo, em 1572, com sua soberba e fecunda epopéia-personagem, Os Lusíadas, resultado da convergência de dois fatores peculiares ao século XVI: a exaltação da pátria (aspecto muito utilizado, posteriormente, pelo Romantismo) e a consagração do gênero épico de cunho humanista, ou seja, o cívico e o estético, o histórico e o literário, presentes no mesmo texto.
A obra, dividida em Proposição (I, 1-3), Invocação (I, 4-5), Dedicatória (I, 6-18) a Dom Sebastião e Narração (in media res) segue, formalmente, a estrutura neoclássica em que os hexâmetros latinos dão lugar aos nobres decassílabos, em sua maioria, heróicos.
O grande desafio de Camões foi transformar a história de Portugal em Epopéia, sem perder o horizonte real que tais acontecimentos carregavam. Para tanto, utilizou-se da seleção exata de fatos e personagens, um assunto principal (a viagem) e um único herói (Gama) que, por um processo metonímico, personifica a nação portuguesa (coletividade).
Os aspectos mitológicos ultrapassam a mera ornamentação retórica que compactua com o estilo grandíloquo exaltado na Invocação, dinamizando e embelezando as ações, pois estão intrinsecamente relacionados à história e inter-dependentes na narrativa: realidade histórica e mitologia se aliam para dar aOs Lusíadas este primor de escritura que nos remete aos mais belos e perfeitos versos que o espírito português conseguiu exprimir.
É pela voz das entidades míticas e das personagens secundárias que o narrador épico nos oferece a descrição, em uma perspectiva de agouros e infortúnios, da verdade sobre as navegações que atinge o ápice por meio de um nítido e inegável discurso anti-épico, nas palavras retumbantes do Velho venerando que, na praia de Restelo, levantou seu canto.

2- Contexto histórico

Neste período, o pensamento humanístico galopava em alta velocidade, os ventos levavam as caravelas para alto-mar e traziam especiarias e conhecimento aos povos. Existiam, segundo Sá de Miranda, duas correntes: o humanismo combativo (polêmico) e o estetizante (mundo sensorial). Em Os Lusíadas temos a presença dos dois e, no caso do Canto IV, o predomínio do primeiro.
“Homo sum: humani nil a me alienum puto”: o Humanismo do Renascimento não consistia em uma filosofia, mas em uma ideologia, uma força sócio-cultural em cujo centro estava o homem. A cultura era um sinal de nobreza espiritual, a realização de um modelo humano. Este é o espírito clássico que, aliado ao científico-racionalista, mais orientado pela experiência que pela especulação, oriundo das novas descobertas científico-geográfico-culturais, marcou a sociedade daquele tempo. Os Lusíadas constituem, no século XVI, a mais feliz concepção deste espírito renascentista português.
Estruturar a história em movimentos e capítulos, transformá-la em algo hermético por meio de períodos distintos e não relacionados, por questões didáticas, sem a percepção do processo evolutivo patente, é como caracterizar um autor e suas obras levando-se em consideração apenas o fator escola literária. Este pensamento é limitador.
Somente haverá uma boa apreciação deste texto ao discernirmos que estamos lidando com a essência dos fatos e das ideologias: suas correspondências, suas transformações durante os tempos. Estamos pensando em ideário, não em escolas literárias nem tampouco em períodos históricos.
A proposta deste texto não é ver a literatura camoniana sob o olhar romântico, em uma leitura anacrônica. É, pelo contrário, detectar o espírito, as atitudes que já existiam na fala do Velho do Restelo, bem como os movimentos econômicos que, posteriormente, cooperaram para que o capitalismo e o romantismo aflorassem na Europa. O fluxo do pensamento segue a ordem linear da história, em busca de uma essência comum, que a guia em sua evolução.

“[...] As sociedades primitivas, o povo hebreu dos tempos bíblicos, a Antigüidade grega e romana, a Renascença inglesa, o Antigo Regime francês, todos esses passados serviram como veículos para essa visão. A escolha – e, sobretudo, a interpretação – do passado se faz segundo as diferentes orientações do Romantismo. [...]” (LÖWY, SAYRE, 1995, p. 42-3)

Segundo Marx, o mercantilismo corroborou com a Revolução Industrial, na medida em que a exportação colonial gerou um capital que propiciou a expansão comercial, graças a uma divisão do trabalho (ou exploração do trabalhador avulso) e diminuição no preço de custo das mercadorias.
O historiador W. W. Rostow, do mesmo modo, vê no período mercantilista a preparação para o “arranque” do capitalismo, aliado aos avanços e descobertas científicas (as navegações contribuíram consideravelmente para tanto) e ao dinamismo à economia mundial.
O capitalismo comercial não começou exatamente após a Revolução Francesa e Industrial na Inglaterra, bem como o pensamento romântico não se concretizou, de forma espontânea oriunda de forças do nada, sem ter uma radice no passado. A evolução do mercantilismo ao capitalismo aconteceu naturalmente, sendo o segundo uma conseqüência do primeiro e esta transição levou, evidentemente, considerável quantia de tempo. Por este motivo, o pensamento capitalista, apesar de diferente, aproxima-se do pensamento mercantilista em muitos aspectos.
Observe o que Antônio José Saraiva oferece sobre a afirmação supracitada:

“Esta evolução realiza-se um pouco por toda a parte, como era inevitável, porque a Cristandade constituía, tanto cultural quanto economicamente, um sistema solidário. Mas é especialmente precoce em certas regiões da Europa que se encontram em circunstâncias especiais. A Itália pode dizer-se definitivamente dominada pelo capitalismo comercial desde o século XIV; Gênova, Florença, Veneza são repúblicas mercantis que se emanciparam do feudalismo. Conhecem já uma complexa e poderosa organização bancária que se espalha pela Europa. Praticam não apenas a troca de mercadorias, mas já o comércio do dinheiro e o investimento de capitais. Ao Norte, as cidades flamengas encontram-se também numa posição excepcional graças ao comércio de têxteis (uma das principais fontes do capitalismo europeu) e sua situação geográfica, que fazia dos portos da Flandres entradas do Báltico e mercados a que ocorriam os produtos de um vasto e rico hinterland. Mas aqui as cidades burguesas defrontam-se, em lutas sangrentas, com o feudalismo que entende defender suas posições; o clero, o rei de França e principalmente o duque de Borgonha são os seus principais representantes. As cidades alcançavam alguma autonomia, mas não chegam, como na Itália, a criar um Estado seu. A situação é, no fim do século XV, de compromisso e de paz armada com intervalos de guerra”. (SARAIVA, 1955, p.19)

Assim aconteceu com o pensamento: o conhecimento humanístico é a base para o iluminismo que propiciou os fundamentos ideológicos revolucionários franceses. O Renascimento, em seus diversos matizes, corresponde à crise do mundo feudal, pelo qual se gera o mundo capitalista. O pensamento romântico, por sua vez, tem relação direta com o renascentista-mercantilista, pois é nesta raiz que há de se traçar todo um pensamento que culmina na revolução instauradora de uma nova ordem mundial: o capitalismo, e sua manifestação artístico-filosófico-literária, o Romantismo.

3- Ideário romântico

“Verifica-se, portanto, uma lacuna importante: não existe análise global do fenômeno que leve em consideração toda sua verdadeira extensão e multiplicidade. No que segue vamos esforçar-nos por colmatar essa falha, tomando como ponto de partida uma definição do romantismo como Weltanschuung ou visão de mundo, isto é, como estrutura mental coletiva. Tal estrutura mental pode se manifestar em campos culturais bastante diferentes: não somente na literatura e nas outras artes, mas na filosofia e teologia, pensamento político, econômico e jurídico, na sociologia e na história etc. Assim, a definição proposta aqui não se limita, de modo algum, à literatura e arte, movimentos artísticos dito “românticos”. São compreendidos como românticos – ou tendo um aspecto romântico: Sismondi em sua teoria econômica; Tönnies em sociologia; Marcuse em filosofia política; tanto como Vigny ou Navalis em literatura, Rossetti em pintura, Stravinski em música etc”. (LÖWY, SAYRE, 1995, p. 28)

O Romantismo não se caracteriza apenas em um movimento restrito a poetas (escritores) e artistas, mas também a ideólogos políticos, como filósofos, economistas, historiadores, dentre outros.
Várias são as tentativas de definir este estilo tão pluralístico. A mais sistemática, a meu ver, é a idéia de Karl Mannheim para uma análise da política romântica como “oposição à vivência burguesa-capitalista”.
Ernst Fischer aponta para a dupla essência romântica, ora voltada para o passado, ora para o futuro e pensa o movimento como “de protesto – de protesto apaixonado e contraditório contra o mundo burguês-capitalista, o mundo das ilusões perdidas”. A antipatia pelo capitalismo, e sua doutrina do “eu”, gera, por um lado, o protesto e, por outro, a autocrítica, uma vez que o homem romântico é um produto deste meio que ele próprio critica. Ao aceitarmos que o pensamento romântico é rebelde em relação à ordem do capital, o refluxo gerado e, conseqüentemente, representado na arte, economia e filosofia, tende a ser anti-capitalista e, freqüentemente, consiste em uma crítica a respeito das características do capitalismo que afetam as classes sociais de forma negativa.

“[...] A visão romântica é caracterizada pela convicção dolorosa e melancólica de que o presente carece de certos valores humanos essenciais que foram alienados. Nesse caso, é um sentido agudo de alienação vivenciado, muitas vezes, como exílio [...]” (LÖWY, SAYRE, 1995, p.40)

“O passado que é o objeto da nostalgia pode ser inteiramente mitológico ou legendário, como na referência ao Éden, à Idade de Ouro ou à Atlântida perdida. [...] No entanto, até mesmo nos inúmeros casos em que ele é bem real, há sempre uma idealização deste passado. A visão romântica apodera-se de um momento do passado real – no qual as características nefastas da modernidade ainda não existiam e os valores humanos, sufocados por esta, continuavam a prevalecer – transforma-o em utopia e vai modelá-lo como encarnação de aspirações românticas. [...]” (LÖWY, SAYRE, 1995, p.41)


Dentre as várias características românticas, uma que vale destacar é o subjetivismo, a centralização do “eu”, o individualismo que dá ênfase ao caráter único da personalidade, complementar ao “todo orgânico”.

“Ora, o desenvolvimento do sujeito individual está diretamente ligado à história e à pré-história do capitalismo: o indivíduo isolado desenvolve-se com este e por causa dele. No entanto, tal postura constitui a origem de uma importante contradição na sociedade moderna porque esse indivíduo criado por ela não consegue viver senão frustrado em seu âmago e acaba por se revoltar contra ela. A exaltação romântica da subjetividade – considerada, por engano, como a característica essencial do romantismo – é uma das formas que assume a resistência à reificação. O capitalismo suscita indivíduos independentes para preencher funções sócio-econômicas; mas quando esses indivíduos agem como individualidades subjetivas – explorando e desenvolvendo seu mundo interior, seus sentimentos particulares - entram em contradição com um universo baseado na padronização e reificação. E quando reclamam o livre exercício de sua faculdade de imaginação, esbarram na extrema planitude mercantilista do mundo engendrado pelas relações capitalistas. Neste aspecto, o romantismo representa a revolta da subjetividade e da afetividade reprimida, canalizadas e deformadas” (LÖWY, SAYRE, 1995, p.45)

Observe que, tais aspectos apontados neste texto, não são exclusivos do Romantismo: são tão somente acentuados nele. Não estamos aqui tentando definir o movimento romântico, estamos apenas resgatando e unificando algumas características que o permeiam e, como veremos, já estavam no ideário humano antes do movimento tomar força: a diversidade, a imaginação, a dupla essência temporal (passado nostálgico e futuro utópico) e seu vislumbramento (projeção) do futuro, o individualismo (subjetivismo), a revolta (protesto) contra a ordem sócio-econômica vigente e as visões trágicas e dialéticas.

4- A voz do Velho

94
“Mas um velho, d aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

95
– Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C& 361;a aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

96
Dura inquietação d alma e da vida
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

97
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
D ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

98
Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade d ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d armas te deitou:

99
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:

100
Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

101
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.

102
Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!

103
Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto milhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!

104
Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitector co filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!”


5- O bicho da terra tão pequeno

Uma passagem que expressa a verdade histórica, mesmo à mercê da engenhosidade inventiva épica, por meio da verossimilhança aristotélica. A força negativa, a racionalidade, o contraponto, o anti-épico, o Velho do Restelo é.
Esta personagem, que antecipa a ação, que vê além, projeta, critica; esta personagem que, repentinamente, irrompe da narrativa aos olhos do leitor quando levanta sua “voz pesada [...] que nós no mar ouvimos claramente” (IV, 94, 1-6), ao refletir com profundidade sobre o valor das coisas, a despeito de toda a glorificação épica, expressando um subjetivismo tão intenso que nunca antes havia sido representado em uma epopéia.
O discurso que é uma perfeita antítese à apoteose divinizante do relacionamento com as ninfas, por parte dos navegantes, na Ilha dos Amores, ornamentado pelas figuras retóricas e pelos revérberos da narrativa mitológica sobreposta à narrativa do real humano, bicho da terra tão pequeno, mortal, sofredor, sem destino conhecido.
A passagem começa com a descrição que o narrador épico faz do Velho, “cum saber só de experiências feito”. É um homem sábio e experiente, que vê as conseqüências, analisa, racionaliza, é, portanto, um humanista. Tal constatação pode ser reforçada pelo seu conhecimento da história, da mitologia e pelo próprio discurso que se aproxima da tragédia grega. Um homem criado aos moldes clássicos, humanísticos. Para mim, uma perfeita representação do próprio Camões! Uma espécie de alter-ego, um recurso estilístico, engenhosamente elaborado, para que o escritor pudesse, sem sofrer censura inquisitiva, expressar sua opinião, esta compactuada por grande parte da população, não da elite dominante, que é recriminada neste trecho, devido ao gosto pelo poder, “a vã cobiça desta vaidade a quem chamamos fama!”, pois tal busca causará imensos males ao povo: morte, separação de famílias, infortúnios e inúmeros agouros.
Esta é a realidade daquele português seiscentista que se atreveu a desafiar a ira de Netuno:

“Acresciam as perdas humanas. A pimenta pagava-se não só a peso de gente. Quando as naus saíam do Tejo, a principal carga era a da gente que levavam. Quando saíam da Índia, era a da especiaria que traziam. Os sacos de pimenta ocupavam o peso dos que tinham morrido durante a viagem e dos que ficavam no Oriente e não voltavam. A mortalidade no mar era muito grande. Diogo do Couto refere que com ele embarcavam para a Índia quatro mil pessoas e só duas mil chegavam vivas. Outras fontes indicam essa percentagem de meio por meio. Um francês, que passou, no século XVI, algum tempo na Índia, Pyrard de Laval, diz que viu chegar a Goa navios saídos do Tejo com mil e duzentas pessoas e só com duzentos sobreviventes. A essas perdas enormes somavam-se as da estada na Índia, cujo clima os portugueses suportavam mal, e das viagens de regresso, em que havia menos doenças, porque eram mais curtas, mas mais naufrágios porque a travessia do Índico tinha de se fazer numa época de mau tempo”. (SARAIVA, 1987, p. 192-93)

Como se constata, a atitude do Velho, ao defender uma voz anti-monárquico-expansionista, constatando a ruína da terra, amaldiçoando os navegantes, vaticinando a decadência de Portugal, para depois cair no desânimo, aproxima-se da visão romântica, caracterizada pela melancolia e frustrada em sua projeção do futuro, em seu idealismo utópico. No caso do vislumbramento de Restelo: uma pátria que se desgastou tanto a ponto de estar prestes a cair sob o domínio castelhano. Este individualismo, o “eu” que se expressa em relação à história de forma pessimista, melancólica e premonitória, que emana do texto é, por excelência, uma característica que foi, mais tarde, um lugar-comum no Romantismo. Conseguimos apreender as visões trágicas, representadas muitas vezes pelas passagens mitológicas. O valente povo lusitano que, ao mar se lançou e do velho ouviu o alarido, em busca de fama e riqueza, decepcionou-se, da mesma forma que o romântico vê frustradas as suas utopias. Camelus cupiens cornua aures perdidit! As palavras do Velho ecoam como o presságio de um oráculo latino: a queda de Faetonte e Ícaro, em uma inquestionável alusão à queda do Império Português, na estância 104, perfeito vislumbramento do futuro e antecipação (histórica) dos fatos na narrativa.
Observe que estamos no âmbito da essência, do ideário: uma visão anacrônica poderia ser questionada sem termos esta ressalva, deveras importante. Estas características, bem como outras, apontadas a seguir, apenas estão presentes na ideologia transmitida pelo Velho. A visão romântica propriamente dita é, como foi apontado anteriormente, um produto do capitalismo. A atitude do Velho, ao criticar o mercantilismo expansionista, é a mesma do romântico ao capitalismo.
Na estância 95, profere a famosa frase “Ó glória de mandar, ó vã cobiça, desta vaidade a quem chamamos fama!”, ao mesmo tempo em que resgata os versos de Virgílio, projeta os sofrimentos lusitanos no futuro, ao exclamar: “Que mortes, que perigos, que tormentas, que crueldades, neles experimentas!”. As palavras de reprovação continuam até o momento em que, indignado, o velho lança ao ar interrogações objurgatórias: “Que famas prometerás? Que histórias? Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?”. A incerteza é o que impera nestas questões.
Aceitando como conseqüência do pecado adâmico (geração daquele insano) o gosto dos homens pela guerra, em um sincretismo maravilhoso da Idade do Ouro, descrita em Ovídio (Metamorfoses), com o paraíso cristão, ou seja, a idade da felicidade, o Velho censura, na estância 99, o desprezo pela vida por parte dos que buscam a fama.
Na centésima estância, o ancião antecipa a ação: refere-se às futuras guerras contra os mouros (o Ismaelita) e alude às terras e riquezas que Portugal almeja conquistar, condenando a religião dos muçulmanos, o Islamismo (lei maldita).
Alerta para o perigo de voltar as costas ao inimigo (deixas o inimigo ser criado às portas) enquanto Portugal busca “outro de tão longe” para depois amaldiçoar Ulisses, “o primeiro que, no mundo, nas ondas vela pôs em seco lenho!”.
Utilizando-se de comparações mitológicas, a recriminação intensifica-se. O velho busca, na Antiguidade Clássica, acontecimentos trágicos para prenunciar a queda de Portugal e reitera sua desaprovação aos “altos desejos” que movem os homens em busca de riqueza.
A derradeira estância, que cala a voz do Velho, é o perfeito vislumbramento para a queda do império lusitano, episódio singular, em que Faetonte, desobecendo as ordens de Apolo, apodera-se do carro do sol e, perdendo o controle, aproxima-se demasiadamente da terra, queimando o solo e abrasando as pessoas no continente africano (por este motivo, segundo a mitologia, os negros têm a pele escura, pois o calor do carro do sol fez o sangue destes precipitar à superfície da pele) e, ainda, alude ao episódio de Ícaro, quando, ao desobedecer as ordens do pai, Dédalo, mune-se das asas de cera e, fascinado pelo sol, tenta alcançá-lo, conquistá-lo, mas o astro em chamas as derrete, e ele, em queda livre, precipita-se rumo à morte certa no fatídico mar Egeu. Deste modo, o ancião vê-se amargurado, desiludido por todo aquele vão esforço e ilusão, deixando registradas na história duas últimas exclamações: “Mísera sorte! Estranha condição!”.
Por fim, ele é a testemunha da história em Os Lusíadas: in loco, na praia de Restelo, vê as caravelas do Gama, ao mar, lançaram-se, em busca da já condenada fome pelo ouro (riqueza). A mesma fome que impulsiona o lucro na sociedade do capital e que promove a exploração dos trabalhadores e da força de trabalho, provocando o acúmulo de riquezas para poucos e a miséria para muitos, o que colabora, diretamente, para a exclusão social, devido ao aumento da diferença entre as classes.
A voz do Velho reverbera hoje, em um eco psíquico tão atual quanto há quatrocentos anos atrás.

6- Referências

CAMÕES, Luís Vaz. Os Lusíadas. [S.I.]: 2005. Disponível em . Acesso em: 02 jan. 2005.
DEYON, Pierre. O mercantilismo. São Paulo: Perspectiva, 1985.
DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1965.
LESKY, Albin. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1971.
HIRANO, Sedi. Pré-capitalismo e capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1988.
LOWY, M. Romantismo e messianismo: ensaios sobre Luckàs e Benjamim. São Paulo: Perspectiva, 1990.
LOWY, M., SAYRE, R. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.
SARAIVA, A.J., LOPES, O. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2001.
SARAIVA, A.J. História da cultura em Portugal. V. II. Lisboa: Jornal do Foro, 1955.
SARAIVA, J. H. Vida ignorada de Camões. Lisboa: Europa-América, 1983.
_____. História concisa de Portugal. Lisboa: Europa-América, 1987.
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