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Contos-->Uma carta para um Amigo -- 28/11/2002 - 08:04 (José Ricardo Mendes Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Vi-me de costas, debruçado sobre a mesa. Camisa de linho azul com um leve furo a baixo do colarinho. Vendo de cima para baixo- a mim mesmo – nada mais sou que esta peça de carne acocorada sobre um livro ou um papel, como neste caso.

Penetro em mim mesmo pelas costas, vou passando pelos forames ósseos e atravessando articulações até chegar às pontas dos dedos. Dedos que se movem escrevendo uma carta para um amigo.

Levanto-me para mais um copo com água. Já na cozinha, ao beber o copo com água, penso em passear pela cidade.

Minúscula por nascença e insignificante por natureza, Sapezal, é somente um ponto quase virtual no mapa e na minha vida- tendo em vista a vastidão do mundo que conheço através dos livros e da escrita.

Nesta pequena cidade eu vivo. O que me torna diferente da maioria é que tenho a capacidade de ver espíritos.

Em Sapezal tem um coreto.Acredito que faz cinqüenta anos que uma banda não sobe as escadas para tocar, só as crianças tiram proveito da construção.

Todas as vezes que passo em frente ao coreto tudo se ilumina. A cor rosa toma forma de luz, raios cortam em forma de cones luminosos os pilares do coreto. Lá estão eles, os músicos, entoando uma bela sinfonia.

.São uns totais de seis homens,uns deles, em especial, sempre me chama a atenção: Toca trompete, chapéu cobrindo a face e mostrando a barba hirsuta. O pescoço demonstra escandalosamente sua anatomia: Tonicidade muscular, veias ingurgitadas em prol da força para soprar o instrumento. Os nós dos dedos se mostram proeminentes, movimentos frenéticos articulam as falanges e falangetas.

Nunca vejo sua face, encoberta pelo chapéu. Neste dia busquei vê-la.

Ao passar pelo coreto, escutando a sonata, projetei meu corpo em função do ato e assoviei, assoviei de forma estridente e aguda. Todos pararam de tocar. O músico do trompete pôs-se a levantar a face baixando maquinalmente o instrumento.

Seu rosto foi reconhecido pelo meu cérebro que, sem titubear, sacudiu minha cabeça e se desfez em um golpe elétrico perpassando minhas entranhas.

A fotografia que tinha sobre um velho piano, na casa do meu Tio, era aquele trompetista.

Ao piscar os olhos tudo se desfez, tudo volta ao real. Algumas pessoas me rodeavam, algumas debruçadas das janelas de seus casebres, me olhavam aturdidas. Parado, ali, de frente para o coreto a assoviar feito um louco. Pirou, dizia os espectadores.

Estático, como em um beco sem saída processei a situação. Olhei de volta ao coreto. Agora, só o vento cortava seus pilares. Corri para a casa do meu tio.

Ao adentrar na sala, encontro minha tia.

- Como vai tia?
- Vou bem, seu Tio que está meio caído.
- Como assim?
- Trancou-se no quarto dês de ontem...não sou louca de incomodá-lo.
- Posso ir ? perguntei levantando as pestanas.

Ela anuiu com a cabeça, segurando um pano de pratos com a mão direita me indicou o caminha do quarto.

Ao passar pela sala de jantar focalizei o velho piano, sobre ele a fotografia emoldurada. Olhei para traz e vi minha tia me observando secretamente, escondida pelo batente da porta. Aproximei-me do piano, peguei nas mãos o retrato. Era mesmo o trompetista.

Olhei novamente para traz segurando o retrato. Minha velha tia levou as duas mãos que seguravam o pano de prato à boca, em uma demonstração clara de pavor tapava a boca semi-aberta. Foi abaixando as mãos com o pano, olhou-me de viés e falou:

- Era seu bisavô...ele queria ter sido um músico.

.Deixei sobre o piano o retrato, sai da casa do meu tio, confuso. Passei pela minha tia sem responder seu cumprimento, ela me disse algo levando as mãos que seguravam o pano de prato, como quisesse me conter.

Percorri todo o caminho para casa embebido em pensamentos. Várias lembranças percorreram minha mente: Quando eu era uma criança a brincar pela praça, quando adolescente escutava as advertências do meu pai, o primeiro amor, a primeira frustração, e a busca por sinais ou mensagens sublimadas que me fizessem relembrar meu bisavô. Tudo emaranhado e fragmentado, aqui, dentro dos meus devaneios.

Ao chegar na minha casa caminhei com andar de jumento para a cozinha, arrastando os pés e pensando no dom de ver meu Bisavô.

Tomei um copo com água e fui até meu quarto, abri a porta e novamente um calafrio me tomou. Um feixe de luz rosa se desprendeu pela fresta semi-aberta da porta.

Vi-me de costas, debruçado sobre a mesa. Camisa de linho azul com um leve furo a baixo do colarinho. Vendo de cima para baixo- a mim mesmo – nada mais sou que esta peça de carne acocorada sobre um livro ou um papel, como neste caso.

Penetro em mim mesmo pelas costas, vou passando pelos forames ósseos e atravessando articulações até chegar às pontas dos dedos. Dedos que se movem escrevendo uma carta para um amigo...


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