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Ensaios-->CELULARIDADE ACACHAPANTE -- 10/05/2005 - 14:14 (Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Celularidade Acachapante

Comprar um automóvel bicombustível é aventura sem igual. Pergunte ao vendedor sobre as reais vantagens do produto. Ele vai responder:
& 8722; Ora, a flexibilidade no uso do álcool ou da gasolina.
É, parece tudo bem equacionado. E se a relação preço/combustível obrigar ao uso do mesmo combustível?
& 8722;Compre. Não há escolha. Não se preocupe com detalhes. Quase todas as marcas e modelos estão saindo assim de fábrica. Quem não possuir um dentro de dois anos, estará fora do mercado. O Sr. quer algo mais inútil e disparatado do que um menino de oito anos com celular na cintura?

Páginas inteiras e sucessões de páginas de jornais e revistas exibem os últimos modelitos de celulares, como se os leitores não necessitassem mais de outros bens e serviços, como se todas as demandas da população se fundissem num único equipamento.

Devo estar ficando velho ou saudosista, como o colunista Gilberto Dimenstein, que li outro dia na Folha. Dizia ele:
“Para mim, a imagem da criança não é a de alguém preso a um computador. É, antes, a de alguém que tinha mais coisas a fazer do que ficar esquentando o ouvido num telefone. Infância, para mim, são meninos e meninas subindo em árvores, jogando bola na rua, molhando-se na chuva, tomando banho de esguicho, vendo as águas do rio, descobrindo o movimento de uma minhoca repartida...”
Infância era mesmo essa rua da jogatina de futebol, interrompida a cada passagem de carro, o quintal das arteirices sem limites, das árvores que escalávamos para ir quase ao céu.

Uma das coisas que cansam nesta sociedade capitalista-consumista-hedonista-narcisista é a voracidade de adesão a tudo que é novo. Celular é bom, é ótimo. Mas quem REALMENTE precisaria ou se beneficiaria de um? A lista não deve ser muito extensa.

Em revista de grande circulação nacional, mês de dezembro, há páginas e mais páginas de arranjos de celulares em sinos, pisca-pisca, estrela, vela, árvore de natal, anjo, guirlanda, pinha. Ou seja: celular faz tudo. O homem moderno descobriu a célula tronco-embrionária da comunicação.

Os hábitos se incorporam tão rapidamente, que não dá tempo para pensar. Pensar é supérfluo, anacrônico. Pensar isola, imola.

As companhias telefônicas alertam:
“Orelhão é até 20 X mais barato que celular. Jogue conversa fora, não dinheiro”.
Não adianta. Os usuários ligam disparando uma série de admoestações para o interlocutor.
& 8722;Olha, é só para dizer que... Desligam.
& 8722;É bem rapidinho... Desligam.
A bateria está sempre acabando.
Do outro lado da linha, não é permitido esboçar reação.

Os que não podem sustentar um celular, gabam-se de possuí-lo apenas para receber chamadas. Espicham a comunicação para pegar carona no telefonema do outro.

A posse de tecnologias produz sentimento de relevância no mundo. Confere a identidade que se sustenta até a próxima imagem aparecer no espelho das volatilidades.

A realidade é avassaladora. A lei é deixar-se levar pelos tsunamis que derrubam o que encontram pelo caminho. Manusear um celular projeta o usuário na pós-modernidade, no fluxo da felicidade eterna, em busca do tempo perdido. A pressão de posse é pelo último dos últimos lançamentos, de preferência, daqueles tão finos como uma folha de papel, tão pequenos que o dedo pressione duas ou mais teclas ao mesmo tempo. “Design para ser visto”.

As outras lojas do shopping podem estar vazias; as de celulares, nunca. Sempre abarrotadas, com atendimento por senha.

Receio que um dia o celular acabe de vez, encurralado pela miniaturização ou intoxicado por funções. Será o maior genocídio tecnológico da história da humanidade. Bilhões de aparelhinhos, com suas venenosas baterias, serão desativados em plena vida produtiva.

Uma questão é central: toda essa comunicação para o quê? Comunicar o quê, para quem? Qual a relação entre necessidades de comunicação e explosão de posse e venda de telefones celulares? Que problemas eles resolvem, quais outros eles criam? Apostar na sociedade do futuro como “sociedade de informação ou de comunicação” não reduzirá ao extremo o sentido da vida? Isso será tudo? Não sei, e se isso for tão-somente o entorno, não o recheio?

Lembro aqui do sociólogo francês Dominique Wolton, ao dizer que, com as novas tecnologias de comunicação, entramos na era das “solidões interativas”. De fato, como é difícil estabelecer um diálogo com quem se encontra a nosso lado, envolto por ondas eletromagnéticas.

De celular à mão, saímos às ruas tão armados como os que colocam revólver na cintura. A segurança requerida é a de estar plugado 24 h. Perdemos a noção das hierarquias. Tudo é igualmente importante e urgente. Não dá para ser pego desprevenido, ou seja, desconectado. Não ser encontrado a qualquer instante, é não existir, não servir para nada. Por que é tão difícil suportar a liberdade de estar só?

A celularidade talvez nos torne mais ubíquos, mas a ubiqüidade alcançada é artificial, porque esquece a dimensão humana de proximidade, presença e interação viva.

Velocidade excessiva e aparato tecnológico demais não se articulam com a profundidade e a lentidão do afeto entre dois sujeitos, tocando-se pelas bordas de suas diferenças sociais, culturais e simbólicas. É difícil concatenar as sutilezas e as imperfeições da comunicação humana com o desempenho e o tecnicismo das máquinas de última geração.

Cada vez mais, vale citar o poeta Ogden Nash:
“O progresso pode ter sido bacana uma vez, mas já está durando tempo demais”.

Se você não descobrir utilidade para o seu celular, invente uma. Afinal, é possível utilizar a vassoura para matar uma barata. Saia por aí correndo e registre velocidade, distância e tempo. Pare. Meça a sua taxa de glicose no sangue. E que tal uma namorada virtual, capaz de falar sete idiomas, conversar sobre 35 000 mil assuntos e fazer traduções? Pois saiba: as empresas anunciam o que ainda nem foi lançado. Essa namorada foi programada para adorar mimos, como flores e chocolates. Toda vez que presenteá-la, a operadora agradecerá pelos pagamentos efetuados. E não há que temer dependência, vício. O programa não leva ninguém para psiquiatra, pois limita o acesso à moça a uma hora por dia.

E agora, iluminando o seu caminho, dirija-se aos seus aposentos com a lanterna de seu celular em punho. Desligue-o. Tente dormir para sonhar que amanhã o seu display despertará mais colorido, com câmeras digitais de resolução superior, softwares com estoques de desculpas para mentir à vontade em suas relações pessoais e profissionais, tudo à base de sons de fundo. Reserve um tempinho em sua agenda, primeira hora da manhã, para doar, revender ou simplesmente jogar num canto o seu modelo antigo, livrar-se dele de qualquer jeito para adquirir o mais recente.

Se preferir, não desligue o celular. Ouça rádio FM e aproveite seus sonilóquios para uma discagem por comando de voz. Nada como falar e ser ouvido durante o sono. Ao acordar, cheque o hálito. Um chip de menos de um milímetro detecta odores desagradáveis, inclusive o do álcool.

Em breve, celular não se destinará apenas a contatos auriculares. Você poderá aplicá-lo a outras regiões de seu corpo. Ou melhor, isso já é possível através do alerta vibratório, um verdadeiro chamamento aos prazeres viscerais mais enrustidos.

É muito engraçada a cena de entrar num sanitário público vazio e escutar alguém falando sozinho dentro de uma cabina fechada. Depois, ver esse alguém abrir a porta, caminhar sem rumo definido, indo, vindo, fazendo voltinhas, com aquele olhar de paisagem. Tempos atrás, esse falante seria encaminhado para um hospício. Hoje, muitos viveriam plenamente o gozo de sua loucura sem ser molestados com rotulagens. Bastaria encostar um celular ao ouvido.

Celular – um dogma inescapável da liturgia do século XXl.

Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli
Maio/2005

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