É possível que o puxa-saquismo seja uma das mais antigas profissões da humanidade. Deve ter nascido no exato momento em que se estabeleceu a primeira relação de autoridade entre as mais primitivas tribos de primatas. Do Feudalismo nos ficou aquela imagem inapagável de Reis e nobres circulados por bobos e Rufiões de toda espécie, a lhes babar os pés e lamber as parcas migalhas que lhes caiam da mesa. Depois foi um nunca mais parar de se desenvolver, de se aperfeiçoar tal arte , até se chegar nos dias atuais, da mais conspurcada Sociedade de Consumo. Estabeleceu-se que a pessoa feliz é aquela que tem condições de adquirir os mais variados bens de consumo e que a felicidade é proporcional a esta capacidade. O cardápio é fornecido pela Mídia , que hoje tem os poderes daquele "Grande Irmão", previsto por George Orwell no "1984". Para se chegar ao Éden do consumo, os homens não medem esforços e já não têm quaisquer tipos de pudores ou escrúpulos: babam, roubam, matam, morrem. Criaram um espírito de concorrência mútua sem precedentes, numa terra que já não possui irmãos, amigos, companheiros, colegas : apenas concorrentes a serem derrotados.
Todas as instituições educacionais, imediatamente, se adaptaram aos novos rumos da Sociedade. Já que a vida lá fora é altamente competitiva, pensaram decerto, tem-se que preparar os alunos desde cedo, para esse canibalismo moderno, sob pena dos jovens serem atropelados pelos ditames dos novos tempos, quando abandonarem as Salas-de-Aula. Estimula-se, desde o Jardim de Infància, esta Concorrência e as Escolas passaram a ser verdadeiros Coliseus modernos, distribuindo os Louros aos poucos Vencedores dos seus testes e Gincanas e entregando os muitos derrotados à voracidade das feras. Ensina-se, desde cedo, que aquele ser estranho que está sentado no banco ao lado, não é um companheiro que com você vai repartir todos os bons e maus momentos da fase mais colorida da sua vida . Ele é apenas um inimigo , um vil concorrente que vai brigar acirradamente com você por um Lugar ao Sol e que deve ser dizimado na primeira oportunidade. Não bastasse isso, as livrarias pululam de livros de Auto-ajuda que prometem receitas miraculosas para o sucesso, para que se alcance o primeiro lugar, para tornar-se o melhor em tudo. Pela manhã saem de casa , em disparada, milhares de seres , pretensos vencedores, sábios e semideuses.
Vivemos numa sociedade de equívocos terríveis. Que critérios se utilizam para elevar as pessoas ao pódium ou para relegá-las ao esquecimento? Nesses critérios estreitos , humanos, injustos e perecíveis , o que fazer com a grande massa de derrotados, aqueles que se convencionou dizer que não devem ir para o trono? Que critérios poderiam ser utilizados para julgar um homem com toda sua complexidade: conhecimento científico, sentimentos, hombridade, atitudes, virtudes e defeitos?
Nesta Corrida desenfreada, com muitos vencidos e sem vencedores, criamos uma Sociedade de desafetos e inimigos. Metrópoles pululando de pessoas esquisitas, distantes e desconfiadas. O único contato possível é o impessoal e virtual. Somos solitários, voluntariamente, no meio da multidão. A humanidade vive em Guerras ( étnicas, religiosas, económicas), quase que eternas, entre povos e, também, uma guerra Fria bem mais desgastante, sem trégua, entre as pessoas.
Um dia ainda descobriremos que a felicidade não se encontra na TV que brilha na Sala, mas no coração que pulsa dentro de nós e que a verdadeira e última batalha que desencadeamos na vida não se dá na sala de aula, contra o colega do lado; mas dentro de nós mesmos, contra nossos monstros e dragões interiores.
Crato, 21/01/2000
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