O MENINO E O PÊNDULO
Entre o tic e o tac desfiavam-se laivos de infinito. O remoído contínuo e interminável do relógio da fazenda marcava o compasso binário de um réquiem passado, presente e prospectivo .Quem o visse, vislumbrava repentinamente : suas entranhas carregavam segredos impronunciáveis.A circunferência vítrea que protegia os ponteiros parecia um olho mágico, filmando todos os movimentos da casa e guardando o filme de tantas vidas em meio ao perfeito encaixe em moto-contínuo das rodas dentadas. Havia uma energia hipnótica no balouçar incansável do pêndulo, como a desviar a atenção dos circunstantes para o observar sinistro de voyeur do olho mágico. No mais aquela música piano , monótona e repetitiva, como um mantra, só esfacelada , de hora em hora, pelas tonitruantes badaladas do carrilhão , como a despertar os instintos para a malvadeza e voracidade do tempo.
À noite, então, acumpliciado com o silêncio, o velho relógio saía da parede da sala e se espalhava por todas as dependências: inundava o telhado e o chão e fazia-se senhor absoluto da fazenda. Sua música empinava o negro corcel dos fantasmas e dos sacis e cada canto do casarão passava a resgatar a própria história, ao mergulhar docemente numa insuspeitada mitologia, banhada a meio caminho entre o onírico e o real.Só já de madrugadinha, aos primeiros gorjeios dos pássaros , quando o canto visionário dos galos mesclava-se com o berro dos bezerros antevendo a ordenha, o relógio, como um vampiro, voltava à toca e fingia hibernar. O olho mágico, no entanto, mantinha-se impassível e parecia cada vez mais brilhante, como se se tivesse revigorado com a ceia noturna, como se colhesse dados para quando se refizesse o reinado das sombras e do silêncio.
O menino, com a perspicácia que só os meninos têm, apercebeu-se dos suspeitosos movimentos do relógio. Aquele mastigado contínuo, o olho frio e sempre aberto , as diabruras noturnas...Depois, passou a computar as baixas e concluiu quem era o inimigo. O pêndulo e o mantra hipnotizavam, os ponteiros , como que abrindo as pernas, acenavam com gestos sensuais e o olho vítreo , como um redemoinho, sugava os homens, os momentos, as emoções. À noite, unia-se aos fantasmas para o carnaval antropofágico.
Um dia o menino , como um cavalheiro, resolveu por fim à matança. Com um bambu em feitio de lança, pós abaixo o velho relógio. Depois sorriu aliviado vendo ao chão o inimigo morto e esfacelado. Delicadamente , buscou em meio à s peças , com cuidados detetivescos, encontrar algum vestígio de passado, uma prova qualquer que incriminasse o serial killer. Nada. Atordoado percebeu que por entre os seus dedos escapavam ,incólumes ,fiapos indeléveis de tempo :. O tempo que dá corda aos relógios , embrutece a alma e arrefece ilusões; o tempo : ralo da vida, esmeril da esperança, a làmina afiada e certeira daquele samurai que se convencionou chamar de morte.
Crato, 14 de Junho de 2002.
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