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Ensaios-->Ulisses entre o Amor e a Morte -- 23/07/2006 - 12:22 (Airton Sampaio de Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
'ULISSES ENTRE O AMOR E A MORTE',
NOVELA DE O. G. REGO DE CARVALHO:
PERSONAS, CRONOS, LOCUS*

Airton Sampaio

Em primeiro lugar, necessário se faz fixar Ulisses entre o Amor e a Morte, de O. G. Rego de
Carvalho (1a. ed, Teresina, Meridiano, 1953; 13a. ed, Teresina, Corisco/IDB, 2003) como um drama de um personagem-narrador recém-saído da adolescência, o protoagonistes Ulisses que, introspectivo e em crise, desvela, com exatidão e poesia, esse problemático período da vida. Este drama, no qual Ulisses, introvertido, e o mundo, em dor vertido, se entrechocam, se realiza sob a forma de novela, considerando-se a pequena dimensão quantitativa do livro, ou, mais apropriadamente, de romance, já que nele a orientação discursiva se volta mais para dentro dos personagens, sem embargo do elevado número de aconteceres, uma óbvia característica novelesca:

“Atravessamos o saguão e, ao subir o degrau da cozinha, virei o rosto. Meu pai permanecia curvado e imóvel. Por quê? Essa interrogação me empolgou de súbito, e a repeti nos lábios, debatendo-me em tristezas. (Gravo seu nome, Ulisses, p. 14).

“Em expectativa aguardamos a revelação, contudo nossa tia se calou, e assim permaneceu até ouvir a buzina de um carro, para as bandas do Leme. Aí, retirou do colo um telegrama, que apresentou, mal contendo o riso:
--- Adivinham? Seus pais chegarão daqui a pouco.” (Repouso, p. 26).

“Não contente em aguardar, fui à esquina, para ver se distinguia, entre as sombras que vagavam, aquela que iria trazer as aves. Já me desiludia, voltando a sentar-me à porta:
--- Ulisses...
Sobressaltei-me: era, porém, minha mãe.” (Dois pombos, p. 74)

Se, no entanto, Ulisses entre o Amor e a Morte é novela ou romance, não é, o enfrentamento de tal questão, o fulcro deste ensaio, que visa demonstrar, ainda que sumariamente, como o protoagonistes Ulisses e as demais personas que esta terna narrativa permeiam, quer na condição de Personagens de Base, como o Pai, quer na de Topo, como a Mãe, sem mencionar os de Lado, entre os quais Conceição e José avultam, estruturam-lhe a tessitura, do mesmo modo que o fazem os espaços, em especial os macroespaços de Oeiras (locus-fundante) e Teresina (locus-refundante). Isto significa, é certo, uma leitura enviesada da obra, afastada de outras comumente feitas em que esses espaços da diegese não são tidos como dela constitutivos, mas meros cenários, o que não é, em verdade, um passo muito plausível, uma vez que tais sucessos poderiam até dar-se, como dizem alguns mais afoitos e por isso menos atentos, em qualquer lugar do mundo, mas aí, caros leitores, aí o livro seria outro e não Ulisses entre o amor e a morte, que se passa, necessariamente, em Oeiras (espaço-origem) e Teresina (espaço-destino).

“Era de tarde, à hora em que as reses voltam pausadamente ao curral, quando chegou um vaqueiro com os mantimentos da semana e uma carta para o Avô. Este abriu o envelope e leu
silencioso:
--- De sua mãe --- disse depois, voltando-se para José. Vem Anália insistindo tanto em mudar-se para Teresina, que ela terminou cedendo. Irei providenciar sobre isso.” (Íamos deixar Oeiras, p. 47).

“Por ter adoecido, somente depois fui para Teresina. Durante a viagem, porém, Oeiras não me saía do pensamento, com seus morros, o riacho, a quinta --- tudo que me entretivera o coração e sentia perder agora, para sempre.” (Uma lembrança, p. 51).

Aliás, sobre a crise da adolescência, Chagas esclarece que

“o psicanalista francês Charles Melman nos lembra que a noção de crise, associada a esse período de transição, se encontra essencialmente em nossa cultura. Ele afirma não há ver ‘nenhum sinal dela, enquanto crise psíquica, nos textos das culturas gregas e latinas, onde seria um simples período de introdução a vida social’. A crise psíquica - na adolescência – como um processo de transição entre um mundo (infantil) e outro (adulto), pode ser assinalada como um fenômeno característico das sociedades pós-industriais capitalistas. Nelas, não encontramos ritos de passagem responsáveis pela demarcação de uma fase e outra. A ausência de cerimônias reguladoras, verificadas em sociedades ‘menos evoluídas do que a nossa’, certamente favorece a crise psíquica que conhecemos na fase adolescente”.

No caso de Ulisses e dos amigos, pode-se até inferir um indício de rito de passagem para os adolescentes da história, expresso no ato de fumar, que se apresenta, porém, não como uma norma social ritualística genérica, mas como uma transgressão, uma vez que interditado pela família, pelo menos no que tange a essa faixa de idade.

“Sem que em casa soubessem, costumávamos ir até às bandas do Cruzeiro e do Mafuá, onde nos divertiamos a va ler. Numa dessas excursões, deram-me um cigarro e, embora sentisse tonturas, jamais deixei de seguir os outros quando fumavam.
Uma vez, determinaram que haveria de ser eu quem comprasse uma carteira , e o fiz por conta do mealheiro onde Anália vinha guardando suas economias.
Aconteceu que no dia seguinte mamãe viu o maço no bolso do paletó, e indagou [desnecessário este verbo dicendi]:
--- Que caixinha é essa, aí?
--- Nada --- respondi, esforçando-me para parecer indiferente.
Ela a retirou, na mesma hora.
--- Você fumando, hem? --- ralhou, a olhar-me como se quisesse uma explicação. Ouça bem: da próxima vez que o pegar, dou-lhe uma surra --- para nunca mais.
E, num gesto impulsivo, amassando a carteira, jogou-a em cima da casa.
Tão logo narrei o sucedido à turma, esta inesperadamente se mostrou solidária à minha mãe:
--- Cigarro não é troço de menino --- fez Arnaldo, com um riso superior.” (Éramos um trio, pp. 58 – 9).

Veja-se que o adolescente Ulisses transgride normas estabelecidas [até furta a irmã!] e contorna, inclusive, o mal-estar físico provocado pelo cigarro, apenas para, numa atitude típica da própria adolescência, seguir o grupo que, apesar de em transição para a fase adulta, mostra-se como se já adultos fossem e pudessem, então, fumar, sem as reprimendas, para eles corretas, da família.

Personagem de Base e Personagem de Topo

Entende-se como Personagem de Base (o Pai de Ulisses), e Personagem de Topo (a Mãe), aqueles que delimitam, por baixo e por cima, a narrativa, constringindo-a de modo a não deixá-la escorrer-se para além desses limites tra(u)máticos. Com efeito, sem o Pai na Base e a Mãe no Topo, Ulisses entre o amor e a morte perderia tensão dramática, diluindo-se e enfraquecendo-se exatamente pela falta de limites de enredamento, não sendo então muito difícil perceber a força dos personagens, em específico a do Pai e a da Mãe do protoagonistes, na estruturação mesma da novela. Esta, além de sofrer, por via dos Personagens de Base e de Topo, uma imprescindível circunscrição, pode ser dividida, temporalmente, em três grandes mo mentos: a) antes da doença do Pai de Ulisses (uma quase total elipse narrativa, já que em geral não é posto, mas apenas pressuposto, o que dantes disso aconteceu), elipse esta como que comandada pela incômoda pergunta “Este Natal seremos felizes, mãe?”, b) durante a doença do Pai de Ulisses (o clímax mesmo da fabulação, porquanto o núcleo mais dramático do texto) e c) depois da morte do Pai de Ulisses (período em que impera, sem rival, a figura de Conceição).

“Uma manhã, ao acordar, viu-me à sua frente:
--- É verdade que nos deixa hoje? --- inquiri. Mãezinha acaba de dizer.
Meu pai ergueu o corpo suado e me encarou, firme:
--- Se ela disse, é porque vamos.
Ao ver-me retirar em silêncio, chamou-me:
--- Espere. Você não irá embora por isso, não é mesmo? Doravante eu o tratarei melhor. Não quero que tenha queixa de mim.
--- Por que teria? O senhor sempre me tratou bem. Agora é que tem gritado comigo.
--- Estou doente, filho.
Saí do quarto com um aperto na garganta. Ao chegar à copa, mamãe deu-me recado para as irmãs, pedindo desculpas por não ir vê-las antes de partir: à tarde, se tudo corresse bem, mandaria Anália fazer-lhes uma visitinha.” (A viagem, p. 19).

Além de já se ter, nesse trecho, uma idéia do Pai e da Mãe de Ulisses como personagens demarcadores dos limites da narrativa, percebe-se já, também, dois subtempos: um, anterior à doença do genitor (que equivaleria a uma situação de equilíbrio, incapaz de gerar uma narração no seu pleno sentido mas, no máximo, um mero relato); outro, posterior a esse evento, desencadeador da situação de crise ou desestabilidade que abala o narrador e, abalando-o, faz com que conte sua história, como se necessária, essa escrita, à expulsão de fantasmas interiores. Catarse? Sim, talvez purgação de quem enuncia e de quem, lendo, co-enuncia, ademais se em face de um “paraíso perdido”, no caso a vida de Ulisses antes da doença do Pai.

“Quando avistei a loja do velho, meu irmão já lhe fechava as portas. De repente, eu senti que acontecera alguma coisa: meu pai nunca faltou ao trabalho. Estaria doente?
--- Vais ver que tudo não passa de uma gripe --- aventurou meu primo, querendo tranqüilizar-me.
De volta para casa, José me aconselhou a ir. Seus olhos, por vezes, estavam brilhando, e a maneira como se esqui vou de mim, tão brusca, apenas fez reforçar minhas suspeitas.
--- Papai anda mal --- indaguei, como se me dirigisse a um estranho.
Ninguém me respondeu.” (Meu primo, p. 17).

Que, afinal, se dava com Ulisses antes da doença do Pai? Promove-se, a esse respeito, como já dito, uma quase total elipse narrativa, mas, como também já demonstrado, dão-se pistas de que as cartas, por esse mais ou menos calmo tempo, ainda não haviam sido profundamente desembaralhadas pelos fustigantes e inesperados ventos da vida. Esses tempos anteriores eram, com efeito, bons tempos, tanto que o narrador, num lance analéptico que quebra um pouco a elipse narrativa referida, diz que

“Num misto de prazer e ternura, vinham-me à lembrança os momentos felizes que esquecera e cuja evocação era uma alegria para mim.
Sem dúvida, nenhuma me enternecia mais que a daquela noite, já tão distante, em que papai me trouxe um presente da loja, elevando-me nos braços e, cobrindo-me de beijos:
--- Ulisses, vamos passear? --- ele me convidou, instantes após descer-me.
Não lhe respondi, mas deixei-me levar: apenas o realejo me atraía, de tal modo eu desejara ter um.” (Uma lembrança, p. 51).

Mas esses tempos paradisíacos de Ulisses, incapazes de, por si sós, desencadear uma autêntica narrativa, pela ausência mesma de um nó a ser desfiado, esses bons tempos desaparecem com a doença e a posterior morte do Pai, turvo tempo, aliás, sutilmente anunciado já no primeiro, belíssimo e fundamental capítulo, Gravo seu nome, Ulisses (pp. 13 – 5), em que as palavras enigmáticas da “vidente” valem como um vaticínio, a pairar sobre toda a novela, não sendo pois gratuito o universo vocabular penumbrista que o perpassa (noite, Morro do Rosário, velha, estranha, cruz, alguém, íngreme, sono, etc), isto sem falar no relógio da matriz, que se põe a bater imediatamente após o pai dizer ao menino, “procure dormir, que a noite é longa”, tendo, e isto é sintomático, antes perguntado “a luz o incomoda?” A partir, então, “daquela noite”, referida no trecho transcrito, noite agora “já tão distante” (veja-se aí, como de resto em toda a novela, a
supremacia do tempo psicológico), Ulisses se vê, depois da enfermidade paterna e, em grau maior, após a morte do genitor (“vez por outra, no entanto, eu não continha as lágrimas, quando de súbito me via órfão”, p. 42), imerso numa crise decorrente deste seu lost paradise, sem o qual, sublinhe-se, haveria narração alguma, porquanto é essa crise mesma em que mergulha o narrador que traz consigo o potencial narrativo, como se a literatura, pelo menos a Literatura, amiga que é, em essência, da utópica felicidade humana, só se pudesse fazer de dor, ou da purgação da dor, uma vez que, ao que parece, apenas o sofrimento é trans-forma-dor. Daí, na página 38, a dolorida pergunta de Ulisses, a essa altura já um autêntico protoagonistes, indagação cortante feito faca: “Este Natal seremos felizes, mãe?”.

Não se confunda, porém, paraíso, neste ensaio usado com p minúsculo, com Paraíso, com P maiúsculo, um lugar mítico, anterior à Queda ou à Abertura da Bolsa de Pandora (momento em que se dá a separação entre o Bem e o Mal, o Certo e o Errado, a Saúde e a Doença, a Vida e a Morte, a Natureza e a Cultura, etc), lugar portanto a-temporal e a-histórico, marcado pela ausência de problemas e a inexistência de sofrimento, sendo ao primeiro termo (paraíso) que o presente texto se refere, ou seja, a um lugar no tempespaço histórico em que a dor está, ao menos num dado intervalo, não inexistente, mas, como diria Schopenhauer, em suspenso.

Já se vê, pelo exposto, que a estruturação fundamental da novela em análise se dá em torno do Personagem de Base, o Pai de Ulisses, posto que são sua doença e posterior morte os gatilhos mesmos da narrativa, que o narrador, não sem dor, aperta, talvez para desapertá-lo do peito do escritor e, quem sabe, da alma dos leitores, desde que sensíveis, estes. No alto, porém, limitando por cima a diegese, encontra-se a Personagem de Topo, a Mãe de Ulisses, que contém a novela em limites propiciadores de tensão e dramaticidade. Por isso é que Ulisses (o protoagonistes) se acha entre o Amor (a Mãe e seus carinhos e, de certa for ma, o Pai, Oeiras, a Natureza, os parentes e os amigos, Conceição, etc) e a Morte (o Pai e sua doença e, de certa for ma, a Mãe, a perda da infância, o exílio de Oeiras, a enfermidade do irmão, o luto da Mãe, a separação de Conceição, etc) ou, como diria a Psicanálise, Ulisses se divide entre Eros, a pulsão de vida, e Tanatos, a pulsão de morte. E é, aliás, este dado, profundamente humano (Eros x Tanatos), que talvez faça de Ulisses entre o Amor e a Morte uma narrativa universal, que se lança para além dos espaços específicos (Oeiras e Teresina) em que se passa, sem porém deles, de modo algum, apartar-se, sob pena de se ter uma figura sem fundo. Um passo assim obviamente que retiraria a tensão dramática obtida mediante o contraste figura-fundo, sendo, pois, desaconselhável adotá-lo, ainda que a tentação, para isso, seja enorme, em razão da forte --- e inegável --- introspecção da narrativa.

Veja-se, por oportuno ao raciocínio, o trecho a seguir, na verdade o co-movente capítulo Unidas as mãos (pp. 104 – 5). Ora, esse passo é suficiente para demonstrar, por exemplo, que o adro da igreja não é, no texto, mero elemento de decoração, mas espaço que contribui, estruturalmente, para a configuração do tônus dramático dos encontros entre Ulisses e Conceição, até mesmo na antológica cena da separação definitiva dos dois, sem dúvida uma das mais belas da literatura brasileira, em que o leitor sabe, por elipse, que o adro referido é o da igreja de São Benedito, em Teresina, no Piauí. Aliás, sempre que transito pelo adro não de uma igreja, mas pelo adro da igreja de São Benedito, em Teresina, no Piauí, inevitavelmente me lembro de Conceição e Ulisses, assim como toda vez que penso em Ulisses e Conceição à mente emerge não o adro de uma igreja, mas o adro da igreja de São Benedito, em Teresina, no Piauí, tão umbilical e inseparavelmente a este locus está ligado, pelo menos para o analista, o par Ulisses-Conceição. Daí considerá –lo não um mero cenário permutável por qualquer outro, em qualquer parte do mundo, mas um lugar constitutivo da narrativa, a ponto de dizer, com todas as letras, que fora dos espaços (macro, Oeiras e Teresina; midi, fazenda do Avô, rio Parnaíba, etc; mini, casas, etc; micro, quartos e salas) em que efetivamente se dá Ulisses entre o Amor e a Morte perde muito do lirismo que exala e se priva, em demasia, de sua carga dramática. Ademais, é possível captar em São Benedito o “benedicto”, o “que abençoa”, sem mencionar que se trata, esse santo católico, de um ícone negro numa obra, não raro, muito branca, estando-se, quiçá, ainda em face de um paralelo, talvez conscientemente traçado, entre esse sacrespaço teresinense e o do Morro do
Rosário, em Oeiras, referencialidade, também, de negritude. E, a ser verdade tudo isto, como tomar tais espaços como simples molduras narrativas e não como elementos constitutivos da própria estruturação diegética? De tão belo que é, a transcrição inteira do capítulo Unidas as mãos (pp. 104 – 50), não sem motivo o “fecho” da novela, se impõe:

“Pouco após a missa do galo, tornei a encontrar Conceição. Já me sentia calmo, numa quietude que tanta estranheza me causa, agora: a lembrança que dela me restava era esmaecida, como, às vezes, nos sonhos. Não foi sem surpresa, contudo, que a vi aproximar-se de mim, à porta da igreja em cujo adro, tempos antes, passeamos enamorados um do outro.
Ela veio de mansinho e se postou à minha frente, sem nada dizer, sorrindo apenas. Voltava eu a compreender que es tava diante de meu único e puro amor.
--- Ulisses --- falou afinal --- você ainda gosta de mim?
Não lhe respondi.
--- Apesar de tudo? --- acrescentou, fitando-me nos olhos.
Tentei mostrar-me indiferente, como mandava o capricho, mas não pude:
--- Por que agiu daquele modo?
Conceição se aproximou mais, tomando-me a mão:
--- Queria que eu apanhasse? Você não conhece o gênio de meu pai [veja-se que, aqui, o autor não atrapalha o fluir o texto com o desnecessário verbo dicendi perguntou, já que marcada está a interrogação pelo correspondente sinal gráfico].
Ela se calou a seguir, esperando que a perdoasse. O amor-próprio estava, no entanto, demasiado ferido para que viesse a desculpar-lhe o erro, nessa noite.
--- Olhe, minha tia me chama --- e apontou-me a mãe de Arnaldo. Regressarei amanhã à fazenda dos velhos, e só voltarei se tiver certeza de que me estima.
E, abaixando a vista, a desprender-se:
--- Eu te amo, Ulisses.
Conceição saiu rápida, sem volver o rosto. Quando mais tarde a procurei para renovar os votos de amor que lhe tinha feito e constantemente repetia, já não a encontrei: misturara-se à multidão.
Dela, ainda hoje, guardo a recordação desse momento, em que nossas mãos, as minhas aquecidas nas suas, se uniram pela última vez.”

Ora pois como, caro leitor, de que modo imaginar tal cena, com a mesma força poética, apartada do adro da igreja de São Benedito? Isto seria semelhante a fazer Memórias Póstumas de Brás Cubas se passar em São Paulo, e não no Rio, não um Rio qualquer, mas o Rio de Machado de Assis. Neste caso, como tomar a Rua Tal, seguir pela Y, descer pelo largo X? Assim, Conceição e Ulisses só podem se amar e desamar num único lugar do mundo, que é Teresina, no Piauí, e em Teresina, no Piauí, além de na Praça Pedro II, “à porta da igreja em cujo adro, tempos antes, passeamos enamorados um do outro”.

Personagens de Lado

Isto posto, é momento de trazer ao proscênio os personagens de lado, ou seja, aqueles que se relacionam com o protoagonistes Ulisses fora do eixo Pai-Mãe. Se o mais central deles é
Conceição, o outro personagem de lado fundamental é José, o irmão, responsáveis, ambos, por reavivar no adolescente Ulisses a sensação dolorosa de viver comprimido entre duas margens de um rio (saber-se-á, no romance seguintemente publicado por O. Rego de Carvalho, que se trata de um Rio Subterrâneo, 1967), uma delas sendo o Amor (Conceição, a réplica da Mãe?),

“Desde aquela noite, preferia morrer. Toda a ternura que devotava à minha mãe desapareceu, e em seu lugar veio surgindo a aversão. Nunca pude esquecer o abandono a que me entregou, quando fazia tanta questão de seus cuidados.” (Adolescência, p. 65)

“--- Ulisses? --- perguntou [não raro, o autor, apesar do rigor na tessitura literária, usa, desnecessáriamente, o verbo dicendi]. A senhora se refere a ele?
--- Sim.
--- Pois fiquem sabendo que nada existe entre nós. Se lhe dou confiança é apenas em atenção a Arnaldo.”
(...)
Não me animei a encará-la sequer, de tão comovido. Tinha o coração amargurado, e me sentia no abandono. Não fosse Norberto, meus olhos se encheriam de água.” (A primeira desilusão, p. 102).

e a outra margem, a Morte (José, a repetição do Pai?),

“O mano tinha os olhos fechados:
--- Meu filho, beba.
Ele descerrou as pálpebras e fitou o copo estendido à sua frente:
--- Filhinho --- mamãe agora estava chorando --- beba.
Quis acercar-me, porém recebi instrução para telefonar ao pronto-socorro, pedindo uma ambulância. Senti o sangue gelar-me e, meio confuso, dirigi-me à casa do vizinho, usando de seu aparelho sem que me autorizasse.
Nem sei como pude discar o número certo: tinha a impressão de alguém estava à morte, uma pessoa a quem estimava. Eu sofria, e muito.
Quando voltei o pensamento para mim, achava-me diante da rede de meu irmão. Este acatara o pedido da velha e, após ter vomitado, ainda parecia doente, as feições contraídas pela dor.
--- Por que José agiu assim? --- mamãe perguntava, bem mais aflita do que eu.” (Deus é a salvação, pp. 86-7).

Conceição

Onomasticamente “a imaculada”, Conceição marca em Ulisses uma das mais fortes experiências que alguém pode, nessa etapa da vida, vivenciar: a descoberta do sexo.

“Nadamos [o lócus narrativo desta passagem é, não por acaso, a água, elemento eivado de sensualização] por três minutos. Depois nos sentamos na praia arenosa, cada um entretido em fazer alguma cousa. De pingos de areia barrenta comecei a levantar um castelo de torres esguias.
--- Larga isso e vem cá --- chamou-me Norberto, enquanto apontava uma mulher nua que tinha esboça do no chão.
Eu já ia perto, quando Arnaldo me desconcertou com uma pergunta súbita:
--- Ulisses, você já... --- e fez um gesto despudorado.
Olhei para meu primo, a fim de pedir-lhe ajuda: ele sorriu apenas.
--- Não --- confessei, a vista abaixando.
Houve um instante de silêncio e, para fugir a novas descobertas, afastei-me um pouco. A indagação de Arnaldo, contudo, não me saía do pensamento. Recordei Amélia, uma mocinha que fazia muito tempo me abraçara em Oeiras, tinha eu sete anos.
Vi Conceição diante de mim, curvando-se para apanhar os ovos e deixando à mostra os pequenos seios dourados...
Quando, horas depois, voltei para casa e me disseram que os pombos [aves-símbolo de sensualidade e acasalamento] tinham desaparecido, não dei quase atenção, por sentir que nessa tarde se descortinou para mim um mundo admirável. (Na coroa do Parnaíba, p. 81).

Esta descoberta se dá, porém, não só como um dado erótico (o capítulo Na coroa do Parnaíba é um dos mais tocantes exemplos, na literatura brasileira, de hipoerotismo), mas também como uma possibilidade de complementação (de que os pombos são, indiciariamente, uma sugestão), de um eu ávido pela reconstituição do mítico Andrógino original, o UM pleno por Zeus partido em DOIS, agora incompletos, o que se torna dramático em face da baixa independência individual de Conceição e Ulisses (ela, sob o domínio rigoroso da família, representada pela autoridade do pai; ele, temeroso da desunião de mãos um dia amorosamente unidas). Nesse sentido, diz Girolamo que

“O mais antigo texto sobre erotismo já publicado é o ‘Banquete de Platão’: nele, o narrador Aristófanes conta que, na Origem, a humanidade se compunha de homens, mulheres e de um terceiro ser, denominado Andrógino. Os Andróginos eram seres mais completos e com grande poder, pois encorpavam o masculino e o feminino, tendo o melhor dessas duas dimensões do humano. Possuíam forma esférica, a mais perfeita e aprimorada, quatro mãos, quatro pernas, quatro orelhas, dois órgãos sexuais, duas caras e uma cabeça, mas cometeram o erro de desafiar os Deuses. Então, como castigo, Zeus, o grande rei do Olimpo, o símbolo máximo da consciência, os separou com seus raios. Cada Andrógino foi cortado em duas partes, passando a sentir-se mais incompletos e infelizes [outra versão da Queda].
Os novos seres mutilados passam então a procurar em toda parte sua cara metade, sua alma gêmea. Quando acontece de se encontrarem, a atração é extremamente forte. Com muito erotismo, desejam restaurar a antiga perfeição, se entrelaçam, tentam fundir-se, se perder um no outro; no entanto, apesar da intensa predisposição de ambos, a fusão é sempre momentânea e está condenada a desaparecer, para que a identidade sobreviva e cada indivíduo possa continuar como um ser distinto”.

É claro que essa busca da reconstituição do Andrógino primevo, que se bastava, se dá sempre no plano do inconsciente e, no caso de Ulisses mais que no de Conceição, é candente que se efetive não apenas em Eros, mas também em Philos (Amor para além de Eros). Esta dimensão afetiva de Ulisses é, na verdade, o desejo profundo do rapazote que, apesar de tudo, anseia que as mãos unidas dela e dele nunca jamais se desunam. É então talvez por medo de sofrer a Morte (a separação, o raio de Zeus) do Amor (instância que se estabelece quando DOIS se tornam UM)
que Ulisses se fecha em sua mágoa imatura contra Conceição, tomando-a como pretexto para a
escrituração de um roteiro mesmo de vida, roteiro es te tão caro a ele e cujo lema parece ser “não
ame, pois quem ama sofre”.

“Ela veio de mansinho e se postou à minha frente, sem nada dizer, sorrindo apenas. Voltava eu a compreender que estava diante de meu único e puro amor.
--- Ulisses --- falou afinal --- você ainda gosta de mim?
Não lhe respondi.” (Unidas as mãos, p. 104).

Pode-se até dizer, com alguma liberdade interpretativa que, ao resistir em não reatar com Conceição, Ulisses opta por, como no psicologicamente revelador jogo infantil do pega-morre, assentar-se no es paço seguríssimo do “ferrolho”, onde quem lá fica não toca ninguém (portanto, não mata), nem é tocado (portanto, não morre). O preço, porém, dessa morada no Paraíso é que, deste jeito, também não se joga e, se não se joga, igualmente não se vive, que viver é ao mesmo tempo matar e ser morto --- e matar e morrer doem demais em Ulisses que, pelo menos até a escritura da novela, não é um trans-forma-dor. Não se entenda, no entanto, que seja Ulisses um fraco, que isto ele, em verdade, não o é. Ulisses é, isto sim, um ser amedrontado, quase em pânico diante da Vida e de suas duas Grandes Realidades: o Amor (antes de Teresina, a Mãe; em Teresina, Conceição e a Mãe) e a Morte (antes de Teresina, o Pai; em Teresina, Conceição e José).

“Quando, uma semana depois, conduzíamos José ao seminário [outra fuga, esta, dos rigores da vida?], encontrei Conceição: ela evitou meu olhar, e fingi não vê-la.” (A caminho do seminário, p. 90).

Note-se que Ulisses, por mais que tente fixar-se no espaço indolor do “ferrolho”, não o consegue, pois a vida, com suas alegrias e tristezas, a vida é uma ordem, daí que, “fingindo” não ver a moça, participa do jogo amoroso, em resposta à provocação dela, que lhe “evitou” o olhar. Conceição, por sua vez, integra o reino feminino e paradoxal da sedução e do recato, dona que é de uma pureza de gênero culturalmente construída, sem embargo de exalar intensa sensualidade.

“Quando passava pelo galinheiro, ouvi uma voz chamar-me hesitante: era a prima de Arnaldo que, junto à cerca de buriti, arrumava numa cesta os ovos que reunira no chão.
--- Quer falar-me --- interroguei, enquanto me esforçava para vencer a inquietação.
Ela se mostrou calada por alguns instantes; enfim relanceou-me um olhar:
--- Não perguntou meu nome? --- disse, curvando-se para apanhar os ovos. Pois é...
Conceição. Quis dizer-lhe que a achava bonita. Mas a voz ficou presa à garganta e, quando pude dominar-me, já Conceição tinha saído, encandeada pela luz do sol.” (Uma prima de Arnaldo, p. 73).

“Houve um instante de silêncio e, para fugir a novas descobertas, afastei-me um pouco. A indagação de Arnaldo, contudo, não me saía do pensamento. Recordei Amélia, uma mocinha que fazia muito tempo me abraçara em Oeiras, tinha eu sete anos. Vi Conceição diante de mim, curvando-se para apanhar os ovos e deixando à mostra os pequenos seios dourados... (Na coroa do Parnaíba, p. 81).

Assim, se o algoz de Ulisses é o onipresente fantasma da Morte, tão mais dolorosa quanto mais amado o morto (o Pai, o irmão, etc), é a família o capataz de Conceição, principalmente se guiadas tais famílias, como deixa entrever a novela o era a de Conceição, por rígidos princípios morais.

“Conceição se aproximou mais, tomando-me a mão:
--- Queria que eu apanhasse? Você não conhece o gênio de meu pai.” (Unidas as mãos, p. 104).

Em meio, porém, à repressão, e quiçá até devido a ela, quão sedutora é essa moça! Com efeito, qual uma Capitu oeirense, Conceição é sinuosa que nem uma cobra, constantemente na ofensiva e jogando sempre o bote no qual Ulisses se enrosca, apesar do medo, gigantesco, que ele tem de sofrer, decorrente do temor, mais que enorme, de amar.

“Ela veio de mansinho e se postou à minha frente, sem nada dizer, sorrindo apenas. Voltava eu a compreender que estava diante de meu único e puro amor.
--- Ulisses --- falou afinal --- você ainda gosta de mim?
Não lhe respondi.
--- Apesar de tudo? --- acrescentou, fitando-me nos olhos.
Tentei mostrar-me indiferente, como mandava o capricho, mas não pude:
--- Por que agiu daquele modo?
Conceição se aproximou mais, tomando-me a mão:
--- Queria que eu apanhasse? Você não conhece o gênio de meu pai.
Ela se calou a seguir, esperando que a perdoasse. O amor-próprio estava, no entanto, demasiado ferido para que viesse a desculpar-lhe o erro, nessa noite.
--- Olhe, minha tia me chama --- e apontou-me a mãe de Arnaldo. Regressarei amanhã à fazenda dos velhos, e só voltarei se tiver certeza de que me estima.
E, abaixando a vista, a desprender-se:
--- Eu te amo, Ulisses.
Conceição saiu rápida, sem volver o rosto. Quando mais tarde a procurei para renovar os votos de amor que lhe tinha feito e constantemente repetia, já não a encontrei: misturara-se à multidão.” (Unidas as mãos, pp. 104 – 5).

Mas Ulisses não é o intrépido Odisseu, nem Conceição é a determinada Penélope, embora, na narrativa ogerreguiana, haja uma inversão: Conceição, a que parte, não volta, talvez porque Ulisses, o que fica, não a busque. Então, a se tomarem os termos herói/heroína sob o necessário rigor teórico, é impróprio chamar o Ulisses de O. G. Rego de Carvalho “o nosso herói”, já que essa categoria nem sempre se confunde, como no caso, com a de protagonista, sendo também despropositado apodar Conceição de “a nossa heroína”.

“Ela se calou a seguir, esperando que a perdoasse. O amor-próprio estava, no entanto, demasiado ferido para que vi esse a desculpar-lhe o erro, nessa noite.
--- Olhe, minha tia me chama --- e apontou-me a mãe de Arnaldo. Regressarei amanhã à fazenda dos velhos, e só voltarei se tiver certeza de que me estima.
E, abaixando a vista, a desprender-se:
--- Eu te amo, Ulisses.
Conceição saiu rápida, sem volver o rosto. Quando mais tarde a procurei para renovar os votos de amor que lhe tinha feito e constantemente repetia, já não a encontrei: misturara-se à multidão.
Dela, ainda hoje, guardo a recordação desse momento, em que nossas mãos, as minhas aquecidas nas suas, se uni ram pela última vez.” (Unidas as mãos, p. 105).

José

Trata-se, este irmão mais velho de Ulisses, do personagem mais estranho do livro. Aliás, José, que quer dizer, onomasticamente, “aquele que acrescenta”, tem essa estranheza sublinhada em vários momentos da narrativa, o que acentua o tom introspectivo da novela e reforça sua atmosfera opressiva (por sinal já anunciado, esse penumbrismo, no que se pode chamar de o Capítulo da Vidente, que abre enigmaticamente a história), apesar de todo o lirismo que a perpassa, comprovando assim que lirismo não é sinônimo de pieguice e falsa leveza.

“José, de repente, volveu o rosto, com tal expressão de susto que me será impossível esquecer. Quase em pânico, segurou-me o braço, fazendo o ramo oscilar.
--- Ulisses, eu tenho medo. [Importante, aqui, o não-uso, do verbo dicendi].
--- Medo? --- repeti, querendo acalmá-lo, e assustando-o mais ainda.
--- Não sabe, talvez? Nunca sentiu?
A cabeça movendo em dúvida, reparei que o semblante de meu irmão se alterara, e os olhos salientes pareciam penetrar num mundo distante e insondável.
--- Jamais observou --- insistiu --- que alguém às vezes o chama, sem que pressinta de onde parta a voz?
--- Que tem isso demais? --- disse-lhe, sorrindo.
A tristeza novamente no olhar, José tentou rir comigo, fechando-se em silêncio, logo depois.” (Medo, p. 24).

“Após a refeição, tia Julinha contou maravilhas da fazenda: possuía esta um tanque cheio de jacarés, que sangrava no inverno, e um morrinho pelado, onde se tinha costume de se brincar de escorrega. Na manhã seguinte nos mostra ria tudo.
Somente Olavo demontrou interessar-se pela narrativa, embora já conhecesse a “Selga”. O Avô e sua mulher haviam se recolhido, e por sua vez José se manteve em completo alheamento, mirando os insetos que contornavam o lampião.” (Noturno, pp. 40 – 1).

“Só mais tarde vim a descobrir que era inútil minha tentativa de esconder o pranto. De há muito tinham se apercebi do dele, e apenas fingiam ignorá-lo. Ao dirigir-me, certa vez, ao quarto do Avô, surpreendeu-me ouvir este diálogo:
--- Eles têm gostado aqui da “Selga” --- comentava tia Julinha. Menos José. Que criatura esquisita!
--- É assim mesmo, esse menino.
--- Mamãe, ele não sente!
--- Refere-se à morte do pai? Ulisses também...
--- Esse não. Um dia estávamos no morrinho, quando Olavo, por inadvertência [veja-se, neste advérbio, a indicação do superprotecionismo dispensado a Ulisses, poupado, o mais possível, da verbalização sobre as dores da vida], falou do tio como uma pessoa de bom coração. Eu quis amenizar, e não pude. Ulisses baixou as pálpebras. Ao erguê-las trazia os olhos úmidos; já o irmão se mostrou frio e indiferente.
--- Certo ele sofre como o outro, mas reprime a mágoa.
--- Tanto pior: a dor contida leva a muitos caminhos, até o da loucura.” (Um diálogo, pp. 42 – 3).

Percebe-se, então, que o processo de repressão dos sentimentos, notadamente a mágoa, é muito mais intenso em José que em Ulisses, o que o levará à tentativa de suicídio --- e o matar-se significa, entre muitas outra coisas, um ódio, não adequadamente expresso, ao mundo. Depois, malogrado o ato e tomado pela culpa, o que comprova a não-insensibilidade sentimental de José, o rapaz fugirá desse mundo mau, enclausurando-se num seminário, um espaço “paradisíaco” onde, pelo menos ilusoriamente, a dor não chega e, se chega, recebe, quiçá, o abrandamento pela dedicação a Deus. Essa dedicação é, ao que parece, mais medo da divindade que criou a vida, com seus sortilégios, que mesmo uma devoção sincera a ela.

“Entramos na enfermaria e vimos José, pálido como nunca. Ele nos chamou e nos estendeu as mãos, o arrependi mento estampado no rosto.
--- Quando voltarei para casa? --- perguntou [quão desnecessário esse verbo dicendi!].
--- Já, meu filho --- e a velha mordia os lábios, enquanto tomava as mão dele entre as suas.
Anália e eu nos avizinhamos também e logo nos sentimos tocados da ventura que inundava os corações de mamãe e José.
Houve um instante de compreensivo silêncio, que meu irmão cortou para anunciar sua nova resolução:
--- Mamãe --- disse, enfrentando nossos olhares --- prometi a Deus que me dedicaria à sua obra, se me salvasse. E esboçando um sorriso ante nosso consentimento: Vou ser padre.” (Um desejo, pp. 88 – 9).

Na verdade, para D´Alessandro,

“o jogo de poder que se estabelece no encontro masculino/feminino pode terminar no orgasmo, onde ambos ganham e ambos perdem. No momento do orgasmo o ser humano perde o controle do próprio eu, [já que] o orgasmo possibilita uma vivência transcendental de si mesmo. Já vimos que o prazer sexual é um fator importante de transgressão de ordem social. [É que] o vínculo acasalador, na sua busca de transcendência, tem sempre um certo tom transgressor [e] é desse aspecto transgressor que surge a cumplicidade, [pois] um vínculo acasalador que não tenha algum grau de cumplicidade é um vínculo fraco. Consideremos agora um caminho alternativo do acasalamento: o monge e a freira. [Esses], que fazem voto de castidade, socialmente são celibatários. Buscam, porém, a transcendência, através de um casamento místico [pelo qual] estabelecem, [via] Papel de Acasalador, um vínculo místico com a deidade”.

É isso o que, em última análise, faz José. Com efeito, como alguém que acende uma vela numa noite coriscante para aplacar a ira dos Céus, deixa ele a vida secular, com seus pecados e quedas, pela insular, supostamente mais serena. Com tendências obviamente celibatárias, já que a figura da Mãe paira sobre eles como uma nuvem que jamais se dissipa, Ulisses e José são, se assim se pode dizer, personagens especulares: olhar para um é, de certa forma, ver o outro, e ver a ambos é, num certo sentido, deparar-se com o medo da Morte, que se amplifica, esse medo, pela presença do Amor. Assim, e isto é aliás humano, demasiado humano, nem Ulisses nem José têm a suficiente coragem para, no transcurso tra(u)mático da vida, OLHAR O DIABO NOS OLHOS.

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VIDAL-NAQUET, P. O Mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

*Palestra proferida em 6/3/2006, no evento “Colóquio Releituras” (Teresina, 6 e 7 de março de 2006, Auditório do CCE, Universidade Federal do Piauí).
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