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cronicas-->3. FORMOSA CRIATURA -- 12/09/2002 - 07:45 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Não tinha o pendor da humildade. Desde que nasceu, seus ademanes naturais lhe propiciavam o louvor dos circunstantes, cativando os corações. Era feminil de aspecto, ainda que bebê de colo.

Os olhos, ah!, os olhos! Tinha-os azuis como o céu, profundos como o oceano, virginais como a mais translúcida das fontes.

E o sorriso expandia-se em alegria, como mil sinos festivos a conclamar o povo para as festividades da religião.

Não me iludia, contudo, e me mantinha afastado dos trejeitos e facécias daquela inteligência privilegiada.

Eu a conheci no berço, a carreguei no colo auxiliado pela mãe, que me proporcionava carinhos da mais gentil amizade. E palmilhamos juntos todas as veredas e becos da vida.

Um dia - estava adentrando o ciclo colegial -, li uma obra machadiana e me pus na pele de Bentinho, rejeitando para Isabel as prendas sutis da Capitolina, infiel pela desconfiança ensimesmada do casmurro marido.

Nós dois constituímos lares e fomos felizes, cada qual com seu cónjuge. Entretanto, os laços que nos uniam eram fortes e saudáveis, tanto que nos tratávamos por compadre e comadre, pelas bênçãos aos rebentos que leváramos à pia batismal.

Voltei para a esfera espiritual mais cedo, cerca de trinta anos antes que ela. Por isso, tendo vagado bom tempo pelos horrorosos umbrais da consciência pejada de culpas, não lhe acompanhei os derradeiros anos de vida.

Já na colónia, refeito dos sustos e das correrias, consagrando-me ao socorro dos entes a quem me afeiçoei na Terra, fui convidado pelo mentor a fazer parte de comitiva que sairia em busca de Isabel, arremessada nas profundezas de escura caverna. Tinha por ela as preces de quase todos os que se constituíram em parceiros de existência, o que nos deu muito ànimo de arrebatá-la dos braços tenebrosos do mal.

Coube-me aproximar-me para o primeiro contato:

- Isabel, querida, você me reconhece?

- Não reconheço nem pretendo. Você, seja quem for, está perdendo tempo. Se não quiser ser envolvido pelo fascínio de minha personalidade, vá embora. Deixe-me curtir as dores e sofrimentos de uma vida inútil, sem proveito.

- Isabel, sou o Francisco, seu amigo de todas as horas, aquele companheiro dos folguedos da infància, da matreirice da adolescência, dos arrepios da juventude...

- Você está vindo acusar-me de quê? Eu mesma já não sei mais o que possa ter feito para provocar a sua raiva, o seu desejo de vingança.

- Mas se estou chamando-a de "querida", como é que poderia passar-lhe idéias tão funestas e depreciativas? Venho por ter sido enviado, mas teria vindo por conta própria, soubesse de suas necessidades de amor e compaixão.

- Não fale bobagens. Estou aqui definhada e feia, banguela, quase careca, enrugada, cega e meio surda. Por que fui deixar-me viver até esta maldita idade?...

- Você pereceu aos oitenta...

- Pois devia ter morrido aos trinta, quando estava jovem e tinha o poder sobre as pessoas. Na velhice, mal consegui aconselhar os netos nos estudos, sem sucesso, já que nenhum seguiu as carreiras que sugeri.

- Seus netos e bisnetos recomendaram-me que a tratasse com extremo carinho, dando-lhe todo o conforto que me for possível amealhar junto aos espíritos protetores que cuidam da colónia.

- Suas palavras são por demais bonitas e me afagam os ouvidos.

- Então, você não acha que eu estou querendo o melhor para você, pela amizade que nos uniu?

- Você veio buscar-me para levar-me aonde?

- Venho autorizado a conduzi-la a um lugar de restabelecimento físico e moral.

- Estas minhas feições irão ganhar de novo o viço da juventude?

- Se você alcançar entender que Deus é o supremo bem para as criaturas que amadurecem as virtudes, como a fé, a caridade, a esperança...

- Entendi todas as suas palavras, mas devo dizer-lhe que minha vida anterior...

- O passado a gente sepulta debaixo do amor do presente. Não tema e siga-me. Se preferir, posso carregá-la como fazia quando éramos crianças.

- Minha mãe irá ajudá-lo?

- Sua mãe e todos os que desejam o seu bem.

- Vou aceitar, com uma condição: você irá envolver minha cabeça num saco de estopa, para que ninguém me veja assim.

- Poderei fazê-lo, porque não quero desagradá-la, por todos os momentos de felicidade que curtimos juntos.

Criei uma espécie de gorro felpudo que passei a ela e tomei-a nos braços, frágil e dócil, como se me favorecessem todos os dons da espiritualidade. Era meu primeiro ato socorrista e eu me enchia de preces para não ufanar-me com o sucesso da empreitada, aspirando o hálito que me embalava a saudade.

A caminhada foi curta, assumindo os companheiros as tarefas da preparação do perispírito para os primeiros curativos fluídicos.



Hoje, dois meses depois do episódio do resgate, terei oportunidade de encontrar-me com Isabel nas dependências do hospital destinadas aos seres crestados pela vaidade. Preveniram-me quanto a não ser envolvido pela estonteante beleza da amiga. Ardo na expectativa de abraçá-la, minha irmã queridíssima, como também anseiam por isso o esposo, minha mulher, as irmãs e irmãos, a mãe e o pai, cada qual a seu tempo e hora, segundo seus próprios merecimentos.

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