No decurso de suas vidas, presumo que os meus prezados Leitores já constataram a tácita trama, embora não tenham ligado muito a isso, que a 'sociedade instalada', seja na vertente que for, tende sistematicamente a impor, seleccionando os seus elementos, o que desde logo provoca a marginalização da maioria.
No momento actual acontece até um paradoxo muitíssimo curioso que, pelo menos a mim, me causa uma intensa repulsa, algo assaz próximo do vómito mental: alguns dos mais destacados privilegiados sociais vêm a terreiro proclamar que é preciso fazer algo para repescar os marginalizados. Assim, como o hipócrita desiderato que se ensaia procede sob a mesma regra, dá ou não dá este facto uma enorme vontade de chorar e rir ao mesmo tempo?
Ora, meu caros, a propósito do II Concurso Usinal de Quadras Populares, singelo evento cultural que tenho protagonizado aqui na Usina, até eu, caído em íntima reflexão, dou comigo a militar no campo dos marginalizadores intelectuais. Na circunstância, como tenho tido a sorte de ser diminuta a participação, acabo sempre por considerar mais ou menos todo o conjunto interveniente. Mesmo assim, no que à essência emanante concerne, sinto-me sem óbice lesante do preciosismo humano que genericamente reconheço e concebo.Abrindo mais o enfoque sobre a diversidade dos parâmetros da vida, sinto-me ainda lesante em todas situações, escravizado herdeiro de um persistente sistema predador que incessante penetra em todos os domínios da existência social.
Se historicamente bem nos lembramos, o hediondo Hitler tentou a selecção de uma raça pura, eliminando fisicamente milhões de vítimas que apenas tinham o 'defeito' de ter nascido. O despótico abrenúncio nazi estava convicto de que era possível unificar o infinito diverso do raciocínio. Outrossim e ainda, a actual ciência, por via pacífica e discreta, não desiste de lograr o impossível efeito a partir do ventre da mãe, debruçada e empenhada que está em seleccionar os genes e os meios de reprodução.
Bem, o assunto da selecção humana - ou da bicharada, na visão dos 'supremos eleitos' - dá pano para encher o mundo todo de mangas. Eu, no caso, apenas pretendo modesta e muito brevemente reconhecer, e reconhecer-me, de que estou bem ciente do imbrogliante complexo onde até aqui, querendo ou não, irremediavelmente tenho participado, sem contudo deixar de ensaiar uma bem mais promissora actividade para o imediato: viver e deixar viver consoante a incontornável estratégia da MÃE NATUREZA, onde todas as selecções se apresentam ciclópica e organizadamente subordinadas. Em suma, estou firmemente convencido que o trigo tem de conviver quanto baste com o joio para que daí resulte um pão gostoso e saudável.
António Torre da Guia |