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Cronicas-->7. O ESQUELETO -- 16/09/2002 - 07:19 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Por injunções da sorte, meu cadáver foi parar no necrotério de uma escola de medicina.

Os lentes logo perceberam que meus metro e oitenta e tantos de altura indicavam estrutura óssea capaz de servir de modelo para os alunos. Tendo perecido de mal orgànico, não tive nenhum osso danificado, embora tivesse até jogado futebol durante algum tempo.

Descarnado, logo montaram o esqueleto, peça a peça, e tão bom ficou o trabalho que mereceu um armário de vidro para exposição permanente.

Isso tudo presenciei muitíssimo admirado por não me afetar emocionalmente, como se se tratasse do corpo de outra pessoa.

Por aquela época, lá vão mais de trinta anos, quase quarenta, eu mantinha o cérebro bastante enevoado, como se não conseguisse sair da esbórnia da noite anterior.

Mas era de boa índole, tendo, no máximo, conforme procurava atestar para mim mesmo, prejudicado o meu próprio organismo, sem ter levado tristeza e sofrimento a nenhum coração.

Ao contrário de muitos espíritos que permaneciam por algum tempo lamentando o passamento, à vista da putrefação da carcaça, e logo iam embora, eu fiquei por ali, filosofando à maneira de Hamlet, ele, com o crànio nas mãos, eu, com o esqueleto inteiro.

- Que fazes aqui, meu amo e senhor? Não sabes que a tua indecisão quanto a buscar novos roteiros de existência não pode prender-se a meros restos materiais, menos ainda porque estão ameaçando conservar-se para muito além do que seria lógico esperar dos cadáveres sem tratamento?

Sabia que aquela voz não poderia existir, já que não havia aparelho fonador a apoiar o movimento do maxilar. Desconfiava de que era eu mesmo quem estava emitindo opiniões que impressionavam a minha visão do aparelho à minha frente e ria, sem atinar com a seriedade dos dizeres.

- Que pretendes, ó fiel e rica complexidade espiritual, deste teu servo de alguns minutos? Queres discutir comigo as razões existenciais deste encontro inusitado? Por que não te perdes na poeira dos tempos remotos, poeira de que participam outros corpos teus esparsos na atmosfera das façanhas inconsistentes?

Sorria, incrédulo, como se aquelas palavras não significassem uma lição a ser aprendida e estendida para as condições do momento. Passei a considerar até a possibilidade de algum daqueles visitantes estar a mangar com minha boa-fé, com minha bonomia.

E me deixava quedar ali, a contemplar a brancura das peças, muitas vezes agradecendo a fortuna de ter todos os trinta e dois dentes inteiros e sadios. Parecia que meu riso não mais era do que o reflexo daquele eterno sorriso escarninho.

- Queres que os alunos aprendam anatomia óssea, para te sentires útil de algum modo, já que tua vida desperdiçaste para a realização de algo de bom ou de proveitoso? De que te valeram tantas partidas de futebol, se as vitórias foram efêmeras e sem nenhuma repercussão espiritual?

Já não sorria com satisfação. Emitia um sorrisinho amarelo, como a reconhecer que algum espírito brincalhão estivesse à cata de alguma ingênua criatura para azucrinar-lhe os laivos de consciência. Houve até um dia que pensei que um daqueles órgãos conservados em formol estaria com inveja da esplêndida montagem que proporcionei com meu corpo e me molestava com considerações desagradáveis.

- Quem te disse, meu querido fantasma, que tua presença aqui me agrada? Tu me lembras os esforços que realizava para flexibilizar os movimentos, escravo de tuas vontades sem peias, já que não te alimentavas conforme a melhor dieta, muito embora, inconscientemente, ias mantendo as minhas funções em dia.

Pensei que algo de bom havia feito, mas o gajo não tinha terminado ainda:

- Pois fica sabendo que tua falta de consideração por mim e por todos os meus companheiros orgànicos terminou por ofender-te o cérebro, tanto que ainda não és capaz de manter raciocínio lógico capaz de te levar a ponderações mais espertas, quanto a te ofereceres para novos encantamentos de vida.

Definitivamente, aquela caveira estava a refletir pensamentos muito estranhos e desconjuntados. Eu não me sentia absolutamente em débito para com meus miolos, ainda mais que acompanhava dissecações em que tais partes do conteúdo cerebral eram criticados pelos estudantes como de pessoas totalmente, com perdão do péssimo trocadilho, acéfalas. Até me considerava brilhante, dado o "savoir-vivre" a que me impus, mantendo-me alheio à sorte de qualquer outro ser humano, para não tornar-me peso para ninguém.

- Eis aí a tua última consideração neste velório em que transformaste o necrotério. Já não irás mais ouvir de mim nenhuma recomendação ponderada e justa. Se quiseres conversar com alguém, terás de procurar quem te ofereça respostas com mais carne, sangue e vida. Boa sorte!

Pensei que era um blefe que minha mente estava a pregar a si mesma. Esperei por novas manifestações, porém, os sons que ouvia partiam das criaturas em desespero esvoaçando pelo ambiente, até desaparecerem, nenhuma dando mostras de me ver ali.

Daqueles quase quarenta anos, fiquei ali cerca de dezessete ou dezoito, os últimos cinco sem obter nenhum comentário.

Cansado do eremitério, resolvi acompanhar um aluno que me parecia com feições familiares. Acreditei que se tratasse de algum parente, sobrinho-neto, qualquer coisa assim. Caminhou por ruas conhecidas. Ia decidido para casa. Sentia-lhe o coração aliviado pela proximidade do conforto da família.

Perdi-me em tais pensamentos e não notei que o rapaz começava a subir uma escada envolta em névoa esbranquiçada. Achei bastante esquisito que ele continuasse cada vez mais calmo, cada vez menos pesado, até que, de repente, dei um salto para a frente e assumi aquele corpo, como se lhe desse a estrutura óssea que estava faltando-lhe.

Passei por um portal magnífico e logo ouvi uma voz conhecida:

- Bem-vindo, meu querido interlocutor. Vejo que tu estás decidido a caminhar por estas paragens. Queres companhia?

Olhei bem para a doce fisionomia do velho que me encarava e caí nos braços do avó que me ninara.

Não é verdade que esta minha história bem que poderia ter sido evitada?

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