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Contos-->Noite Destoante -- 14/12/2002 - 15:54 (marcio moraes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Uma chuva fina a quem chamam garoa, insistia em cair deixando o cabelo dele parecendo grisalho, como se tivesse envelhecido após sair daquele bar, mas os traços do rosto desmentiam essa hipótese.
Caminhávamos em direção ao táxi vermelho, estacionado do outro lado da rua.
Uma motocicleta passa sobre uma poça – espelhos jogados ao chão - respingando aquele suco de asfalto nas nossas calças o que provoca nele um súbito momento de raiva – exclamação.
“No stress”, eu falo calmamente, querendo parecer equilibrado, rio por dentro.

- Qual seu signo?
- Ele responde ser peixes.
Seria a vítima? O sofredor fatalista ou o salvador?
O carro abriu as portas para que entrássemos, senti um calor, mas não havia suor.
- Não repare a bagunça.
Disse meio tímido enquanto fechava a porta que denunciava o apartamento alugado – chaves, chaveiro, Predial Imóveis.
Quase sorriu, julgando entender.
A mão aberta estendida à minha mão aberta. Mas a mão do outro voltou-se a encolher-se ao sentar no meu sofá imaginário.
- Preciso dar um jeito de substituir essas almofadas por um sofá de verdade, se quiser podemos ir lá pra dentro.
Apontei minha mão no sentido do quarto, tentando parecer o menos precipitado possível, se é que foi possível.
A gente nunca sabe exatamente como agir nessas situações em que envolve prazer, o seu e o do outro.
Ele concordou se apoiando numa das mãos, deixando sua impressão no chão de parquê, enquanto empunhava o corpanzil para frente, como numa coreografia da qual eu era o expectador.
- Um “L” .
- O quê? Perguntei curioso.
- Esta sala, tem o formato de um “L”.
- Ah sim, respondi olhando em volta, tentando parecer familiarizado com aquela sala, embora nunca havia percebido nenhuma letra, nenhuma palavra, nenhuma frase naquele lugar.
Ás vezes procuramos marcas no lugar que moramos, alguma cumplicidade, códigos, algum projeto traçado no teto, ou uma figura diabólica numa parede mofada. Mas nunca encontrei nada naquele apartamento, agora tinha um “L”.
Estávamos no terceiro andar de um prédio de quatro.
Mas ele caminhou até a sacada e olhou o céu, eu fui ao encontro dele e olhei aquele céu também, a garoa cessara e uma fina neblina pairava no ar. Os dois, um ao lado do outro, olhando o céu escuro de outono. Um carro buzina lá embaixo e nos tira do transe, ele vira-se e fica de costas para o céu.
O frio nos obriga a voltar para a sala.

- Quer ouvir algo? Não pus nada até agora, me perdoa. Gosta de Adriana?
Estava aqui em algum lugar, pensei, procurando o disco na desordem da casa, na desordem da vida.
- Achei.
Ele já estava na sala novamente, de pé, na minha frente, eu, agachado, play.


“Eu ando pelo mundo prestando atenção
em cores que não sei o nome
cores de Almodóvar,
cores de Frida Kahlo , cores.
Passeio pelo escuro, eu presto muita
atenção no que meu irmão ouve
e como uma segunda pele, um calo,
uma casca, uma cápsula protetora.
Eu quero chegar antes pra sinalizar
o estar de cada coisa, filtrar seus
graus.
Eu ando pelo mundo divertindo
gente, chorando ao telefone,
e vendo doer a fome nos
meninos que têm fome”.


- Vamos virar a noite ouvindo Adriana, adoro ela, ela canta o que a gente quer ouvir, o que gostaríamos de falar.
Levantei-me e fiquei de pé, tal qual ele, os olhares se cruzaram, tão raro, pensei.
- Fala, disse baixinho, o olhar parado em algum ponto no olhar dele.
Mas não havia nada a falar, não naquele momento.
Meu braço tocou de leve no braço nu dele, a manga da camisa comprida descansando acima, dobrada.
Seus dedos se movimentaram ligeiramente, 1-2-3-4,
O polegar ficou imóvel.
Adriana se calara e o silêncio era quebrado apenas pelo relógio antigo preso na parede, presente, herança.
Dez para as quatro, desviou o olhar e disse, meio sério, porém calmo, diferente, pensei, lembrei de outros – bar-cama-pau-bunda- me liga.
- É cedo. Vou pôr outro disco. Fica.
Mas o outro balançou a cabeça para os dois lados, devagar, slow motion , que não podia, que precisava ir, que era tarde, que não me preocupasse, que voltava.
Pela primeira vez senti amor por ele. Pela primeira vez senti amor, ali, naquela sala calada.
Ainda o vi sumir no corredor comprido, mas não olhou para trás, não precisava.
E de repente eu estava sozinho na sala, em formato de “L”.
Talvez de louco.
Talvez de lindo.
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