Em Fado, quem é que canta Herberto Helder? Se há quem o cante, desconheço. De resto, os seus versos em geral não se adequam à cassete clássica nem se proporcionam à feitura de música arredondada. Todavia, Herberto Helder, pela diversidade dos motivos que facilmente se intuem, pode e deveria ser profusamente cantado. Basta lê-lo para sentir-lhe a íntima musicalidade e desejar embrenhar a voz no seio das suas palavras.
A título de ensaio, aprecie-se e frua-se este seu poema:
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Se houvesse degraus na terra...
Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.
Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.
Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.
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Herberto não aprecia arabescos fictícios e pavoneações que atolam o mundo e as gentes de imbecilidade ridícula. Inclusive, escreve, porque é nesse exercício que se alimenta aquém ou além do pão. Herberto escreve e Vós, fadistas advindos da maviosa mistura severina, cantai-cantai. Sirvam-se: o Fado está na mesa.
SE OUVESSE DEGRAUS NA TERRA...
Se houvesse degraus na terra
e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus
e aos anéis me prenderia;
uma nuvem toda negra
coberta de intenso breu
para avisar bons e maus,
se eu pudesse, teceria...
E que chovesse e nevasse,
que houvesse luz nas montanhas
e o ouro se acumulasse
à porta do meu amor;
e que uma águia voasse
sobre as vertigens estranhas
pra beber o que sobrasse
entre os abismos da dor.
Maldito quem atirou
a maçã pró outro mundo,
uma mantilha de ouro
e uma espada de prata;
maldito quem encerrou
a raiz livre do fundo
que em busca dum vão tesouro
a pouco e pouco se mata.
Herberto Helder
Adaptação de Torre da Guia
PS = Ah, Senhor Poeta, se meti o pé na poça, tomai-me só o sapato... |