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Ensaios-->Gnosticismo e o fim da modernidade -- 07/04/2008 - 09:44 (Félix Maier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Retransmito pela importância das referências a Hobbes e Voegelin,

Cordial Abraço

Meira Penna

www.meirapenna.org


***

De: (...) Em nome de Nivaldo Cordeiro
Enviada em: domingo, 6 de abril de 2008 14:03
Para:
Assunto: [RL] Hobbes por Voegelin na NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA


VI - O FIM DA MODERNIDADE

Hobbes discernira na falta de uma theologia ávilis a fonte das dificuldades sofridas pelo estado inglês durante a crise puritana. Os vários grupos envolvidos na guerra civil estavam tão fanaticamente empenhados em conseguir que a ordem pública representasse o tipo correto de verdade transcendente que a ordem existencial da sociedade corria o risco de desmoronar em meio à confusão. Este era certamente o momento apropriado para redescobrir a visão platônica de que a sociedade deve existir como um cosmion ordenado, como representante da ordem cósmica, antes que se possa permitir o luxo de também representar a verdade da alma. A represen­tação da verdade da alma no sentido cristão é função da igreja, e não da sociedade civil. Caso diversas igrejas e seitas comecem a lutar pelo controle da ordem pública, se nenhuma delas for suficientemente forte para obter uma vitória inequívoca, o único resultado lógico é que, pela autoridade existencial do representante público, todas serão relegadas à posição de associações privadas dentro da sociedade. Esse problema da existência foi mencionado diversas vezes no curso das presentes expo­sições, exigindo agora uma elucidação sumária antes que a idéia hobbesiana do homem seja apresentada e avaliada. A análise começara a partir dos pontos já fixados.

O Cristianismo deixou em sua esteira o vácuo da esfera natural desdivinizada da existência política. Na situação concreta do fim do Império Romano e do início das fundações políticas ocidentais, esse vácuo não constituiu fonte importante de dificuldades enquanto o mito do império não foi seriamente perturbado pela con­solidação dos reinos nacionais e enquanto a igreja foi o fator civilizador predomi­nante na evolução da sociedade ocidental, permitindo que o Cristianismo funcio­nasse de fato como uma teologia civil. Todavia, tão logo se atingiu certo ponto de saturação civilizacional, quando se formaram centros de cultura laica nas cortes e nas cidades, quando aumentou o número de funcionários leigos competentes jun­to às administrações reais e aos governos das cidades, tornou-se inteiramente claro que os problemas de existência histórica de uma sociedade não terminavam com a espera do fim do mundo. A ascensão do gnosticismo nessa encruzilhada crítica apa­rece agora, sob nova luz, como a formação incipiente de uma teologia civil ociden­tal. A imanentização do ischaton cristão tornou possível dotar a sociedade, em sua existência natural, de um significado que o Cristianismo lhe negara. E o totalita­rismo de nosso tempo deve ser entendido como o fim da estrada percorrida pelos gnósticos na busca de um* teologia civil.

No entanto, a experiência gnóstica no campo da teologia civil envolvia grandes perigos, resultantes de seu caráter híbrido de derivativo cristão. O primeiro desses

perigos já foi discutido: trata-se da tendência do gnosticismo de suplantar, e não suplementar, a verdade da alma. O movimentos gnósticos não se satisfaziam em preencher o vácuo da teológica civil, mas tendiam a abolir o Cristianismo. Nos es­tágios iniciais do movimento, o ataque ainda era disfarçado como uma 'espiritua-lização' ou 'reforma' cristãs; nas fases posteriores, com a imanentização mais radical do eschaton, o movimento tornou-se abertamente anticristão. Conseqüente­mente, onde quer que os movimentos gnósticos tenham prosperado, destruíram a verdade da alma aberta, arruinando toda uma área de realidade diferenciada que fora conquistada pela filosofia e pelo Cristianismo. E, mais uma vez, cumpre recor­dar que o avanço do gnosticismo não representa um retorno ao paganismo. Nas civilizações pré-cristãs, a verdade que se diferenciou com a abertura da alma estava presente sob a forma de experiências compactas; nas civilizações gnósticas, a verda­de da alma não retorna a seu estado de compactação, e sim é totalmente reprimida. Essa repressão da fonte autêntica da ordem na alma é a causa da deprimente atro­cidade dos governos totalitários ao lidar com os seres humanos tomados individualmente.

O resultado peculiarmente repressivo do crescimento do gnosticismo na socie­dade ocidental sugere o conceito de um ciclo civilizacional de proporções histórico-mundiais. O que emerge são os contornos de um imenso ciclo, que transcende os ciclos de cada civilização. O ápice desse ciclo estaria representado pelo surgimento de Cristo; as mais avançadas civilizações pré-cristãs formariam o ramo ascendente, enquanto as civilizações gnósticas modernas constituiriam o ramo descendente. As mais avançadas civilizações pré-cristãs progrediram da compactação da experiência rumo à diferenciação da alma como centro de percepção da transcendência; e, na área civilizacional mediterrânea, essa evolução culminou no máximo de diferencia­ção, através da revelação do Logos na história. Na medida em que as civilizações pré-cristãs avançaram rumo ao ponto máximo do advento, sua dinâmica pode ser chamada de 'adventícia'. As civilizações gnósticas modernas revertem essa tendên­cia rumo à diferenciação e, na medida em que se afastam do ponto máximo, sua dinâmica pode ser chamada de 'recessiva'. Conquanto a civilização ocidental te­nha seu próprio ciclo de crescimento, florescimento e declínio, ela deve ser consi­derada — devido à ascensão do gnosticismo ao longo de sua evolução — como o ramo declinante do ciclo maior de advento e recessão.

Essas reflexões abrem a perspectiva da dinâmica futura da civilização. O gnos­ticismo moderno está longe de haver esgotado seu impulso. Pelo contrário, na va­riante do marxismo, está expandindo prodigiosamente sua área de influência na Ásia, enquanto outras variantes do gnosticismo, tais como o progressivismo, posi­tivismo e o cientificismo, estão penetrando em outras áreas sob o nome de 'ocidentalização' e desenvolvimento dos países atrasados. Pode-se dizer mesmo que, na própria sociedade ocidental, o impulso não se esgotou, pois nossa 'ocidentalização' continua a crescer. Diante dessa expansão em escala mundial, é necessário afirmar o óbvio: a natureza humana não muda. O fechamento da alma do gnosti­cismo moderno pode reprimir a verdade da alma, bem como as experiências que se manifestam na filosofia e no Cristianismo, mas não consegue remover a alma e sua transcendência da estrutura da realidade. Por isso, impõe-se a pergunta: quan­to tempo poderá durar a repressão? E que acontecerá quando a repressão prolon­gada e severa levar a uma explosão? Ê válido fazer tais indagações com respeito à dinâmica do futuro, porque elas derivam de uma aplicação metodologicamente correta da teoria a um componente observado da civilização contemporânea. No entanto, não seria válido entregar-se às especulações acerca da forma que tomará

a explosão, além da presunção razoável de que a reação contra o gnosticismo terá escala mundial, como o teve sua expansão. O número de complicadores é tão gran­de que qualquer predição se torna inútil. Até mesmo com relação a nossa própria civilização ocidental não se pode ir muito além de assinalar que o gnosticismo, a despeito de sua ruidosa ascendência, está longe de haver dominado todo o campo; que a tradição clássica e cristã da sociedade ocidental permanece bem viva; que a formação da resistência espiritual e intelectual contra o gnosticismo em todas as suas variantes é um fator notável em nossa sociedade; que a reconstrução da ciên­cia do homem e da sociedade é um dos acontecimentos marcantes da última meta­de de século e, visto retrospectivamente a partir de um ponto no futuro, talvez venha a surgir como o mais importante acontecimento de nosso tempo. Ainda me­nos pode ser dito, por razões óbvias, acerca da provável reação da tradição cristã contra o gnosticismo no império soviético. E nada sobre a maneira pela qual as civilizações chinesa, hindu, islâmica e primitivas reagirão a uma prolongada expo­sição à devastação e repressão gnósticas. Apenas com respeito a um ponto é possí­vel fazer uma conjetura razoável, qual seja, a data da explosão. Naturalmente, a data no tempo objetivo é bastante impredizível, mas o gnosticismo contém um fa­tor autodestrutivo, o qual torna pelo menos provável que a data esteja menos dis­tante do que se poderia imaginar à luz do poder gnóstico no momento. Esse fator autodestrutivo constitui o segundo perigo do gnosticismo como teologia civil.

O primeiro perigo era a destruição da verdade da alma. O segundo perigo está intimamente relacionado com o primeiro. Como o leitor se recorda, a verdade do gnosticismo é viciada pela imanentização falaciosa do eschaton cristão. Essa falácia não constitui simplesmente um erro teórico com relação ao significado do eschaton, cometido por esse ou aquele pensador, quem sabe uma questão de escolas. Com base nessa falácia, pensadores gnósticos, líderes e seus seguidores interpretam uma sociedade concreta e sua ordem como um eschaton; e, na medida em que aplicam sua construção falaciosa a problemas sociais concretos, eles representam erronea­mente a estrutura da realidade imanente. A interpretação escatológica da história resulta numa falsa imagem da realidade, e os erros relativos à estrutura da reali­dade têm efeitos práticos quando se faz da falsa concepção uma base para a ação política. Especificamente, a falácia gnóstica destrói a mais antiga sabedoria da humanidade com respeito ao ritmo do crescimento e do declínio que constitui o destino de todas as coisas sob o sol. Como diz o Qohélet: Para tudo há um tempo,

Para cada coisa há um momento debaixo dos céus:

Há tempo para nascer, e tempo para morrer'.

E, refletindo sobre a condição finita do conhecimento humano, o Qohélet prosse­gue dizendo que a mente do homem não pode compreender 'a obra divina de um extremo ao outro'1. O que nasce, um dia terminará, e o mistério desse fluxo do ser

é impenetrável. Esses são os dois grandes princípios que regem a existência. A es­peculação gnóstica sobre o eidos da história, entretanto, não apenas ignora esses principios, mas os perverte, transformando-os em seus opostos. A idéia do reino final presume uma sociedade que existirá sem ter fim, enquanto o mistério do flu­xo é resolvido através do conhecimento especulativo de seu objetivo. Assim, o gnosticismo produziu o que se poderia chamar de contraprincipios aos princípios da existência; e, na medida em que esses princípios determinam uma imagem da realidade para as massas que neles crêem, geram um mundo de fantasia que é, ele próprio, uma força social da maior importância da motivação das atitudes e ações das massas gnósticas e de seus representantes.

O fenômeno de um mundo de fantasia, baseado em principios definidos, exige uma explicação. Dificilmente seria possível existir um fenômeno histórico de mas­sas a menos que estivesse enraizado num impulso experiental básico. O gnosticis­mo, na qualidade de mundo de fantasia contra-existencial, talvez possa ser tornado inteligível como a expressão extrema de uma experiência universalmente humana: o horror à existência e o desejo de escapar dela. Especificamente, o problema pode ser colocado nos seguintes termos: uma sociedade, ao existir, interpreta sua ordem como parte de uma ordem transcendente do ser. Todavia, essa auto-interpretação da sociedade como espelho da ordem cósmica é parte da própria realidade social. A sociedade ordenada, juntamente com sua autocompreensão, permanece uma onda na corrente do ser; a polis de Esquilo, com seu ordenamento dado pela Dike, é uma ilha num mar de desordem demoníaca, mantendo-se precariamente em exis­tência. Somente a ordem de uma sociedade existente é inteligível; sua própria exis­tência é ininteligível. A articulação bem sucedida de uma sociedade é possível gra­ças a circunstâncias favoráveis; e pode ser anulada por circunstâncias desfavoráveis, como, por exemplo, o surgimento de um poder mais forte, voltado para a conquis­ta. A fortuna secunda et adversa é a deusa sorridente e terrível que governa esse reino da existência. A casualidade da existência, sem direito ou razão, é um horror demo­níaco, difícil de ser suportado até pelos fortes de espírito e dificilmente suportável pelas almas delicadas que não podem viver sem acreditar que merecem viver. Por isso, é razoável supor que em toda sociedade está presente, em graus variáveis de intensidade, a inclinação para estender o significado de sua ordem ao fato mesmo de sua existência. Sobretudo quando uma sociedade tem longa e gloriosa história, sua existência será tomada como algo indiscutível, como parte da ordem das coisas. Torna-se inimaginável que tal sociedade possa simplesmente deixar de existir. E, quando sofre um grande golpe simbólico — como o foi, por exemplo, a queda de Roma em 410 —, por toda a orbis terrarum ouve-se um gemido, como se houves­se chegado o fim do mundo.

Portanto, em toda sociedade está presente uma inclinação para estender o sig­nificado da ordem ao fato da existência, mas nas sociedades predominantemente gnósticas essa extensão é elevada à condição de um princípio de auto-interpretação. Essa mudança — de um estado de espírito, em que se aceitava a existência como um dado, para um princípio — determina um novo padrão de comportamento. No primeiro caso, pode-se falar de uma inclinação para não levar em conta a estrutura da realidade, para se deixar envolver pela doçura da existência, de um declínio da moralidade cívica, da cegueira perante perigos óbvios e da relutância em enfrentá-los com toda a seriedade. Trata-se do estado de espírito das sociedades muito ma­duras em estágio de desintegração, que não mais se dispõem a lutar por sua exis­tência. No segundo caso, isto é, no caso gnóstico, a situação psicológica é inteira­mente diversa. No gnosticismo, o não-reconhecimento da realidade é uma questão

de princípio; nesse caso, dever-se-ia antes falar de uma inclinação para permane­cer consciente da casualidade da existência, malgrado o fato de que tal casualidade não é admitida como um problema no mundo de fantasia gnóstico; a fantasia tampouco prejudica a responsabilidade cívica ou a disposição de lutar bravamente em caso de emergência. A atitude para com a realidade permanece enérgica e ativa, mas se torna impossível pôr em foco a realidade e a ação sobre o real: a imagem é toldada pelo sonho gnóstico. O resultado é um estado penumapatológico da men­te, muito complexo, que Hooker esboçou ao traçar o retrato do puritano.

No entanto, o estudo do fenômeno em suas variedades contemporâneas tor­nou-se muito mais difícil do que ao tempo de Hooker. No século XVI, o mundo de fantasia e o mundo real ainda eram mantidos terminologicamente separados atra­vés do simbolismo cristão dos dois mundos. A enfermidade, em sua variedade es­pecial, podia ser facilmente diagnosticada porque o próprio paciente tinha a supre­ma consciência de que o novo mundo não era aquele no qual ele realmente vivia. Com a imanentização radical, o mundo de sonho mesclou-se terminologicamente com o mundo real; a obsessão de substituir o mundo da realidade pelo mundo transfigurado de fantasia transformou-se na obsessão do mundo único, em que os sonhadores adotam o vocabulário da realidade ao mesmo tempo em que alteram sem significado, como se o sonho fosse realidade.

Uma ilustração mostrará a natureza da dificuldade. Nas éticas clássica e cristã, a primeira das virtudes morais é a sophia ou prudentia, porque, sem uma compreen­são adequada da estrutura da realidade, incluindo a conditio humana, torna-se pra­ticamente impossível a ação moral com a coordenação racional dos meios e dos fins. No mundo de sonho gnóstico, por outro lado, o não-reconhecimento da realidade constitui o primeiro princípio. Em conseqüência, tipos de ação que se­riam considerados moralmente insanos no mundo real, pelos efeitos reais que deles resultam, serão consideradas morais no mundo de fantasia, porque visam um efeito inteiramente diverso. O hiato entre o efeito desejado e o efeito real será imputado não à imoralidade gnóstica de ignorar a estrutura da realidade, mas à imoralidade de alguma outra pessoa ou sociedade que não se comporta como deveria comportar-se de acordo com a concepção fantasiosa da relação de causa e efeito. A interpretação da insanidade moral como moralidade, e das virtudes da sophia e da prudentia como imoralidade, leva a uma confusão difícil de des­fazer. A tarefa é dificultada pela presteza dos sonhadores em estigmatizar como imoral a tentativa de obter um esclarecimento crítico. Na verdade, praticamen­te todos os grandes pensadores políticos que reconheceram a estrutura da rea­lidade — de Maquiavel aos nossos dias — foram caracterizados como imorais pelos intelectuais gnósticos, para não falar da brincadeira de salão dos liberais que cri­ticam Platão e Aristóteles como fascistas. Por conseguinte, a dificuldade teórica é agravada por problemas pessoais. E não há dúvida de que o contínuo bombardeio de vituperação gnóstica contra a ciência política no sentido crítico afetou seriamen­te a qualidade do debate público acerca dos problemas políticos contemporâneos.

A identificação de sonho e realidade como uma questão de princípio produz efeitos práticos que podem parecer estranhos, mas nunca surpreendentes. Proíbe-se a exploração crítica da relação de causa e efeito na história; conseqüentemente, torna-se impossível a coordenação racional dos meios e fins na política. As socieda­des gnósticos e seus líderes reconhecem os perigos a sua existência quando eles surgem mas tais perigos não são enfrentados por meio das ações apropriadas no mundo da realidade. São, isto sim, enfrentados mediante operações mágicas no mundo da fantasia, tais como desaprovação, condenação moral, declarações de intenção, resoluções, apelos à opinião da humanidade, caracterização dos inimigos como agressores, abolição da guerra, propaganda em favor da paz mundial e do governo mundial, etc. A corrupção moral e intelectual que se expressa no somató­rio dessas operações mágicas pode impregnar uma sociedade da atmosfera estranha e fantasmagórica de um manicômio, como o experimentamos na crise ocidental de nossos dias.

Um estudo completo das manifestações de insanidade gnóstica na prática da política contemporânea extravasaria de muito os limites das presentes exposições. A análise deve concentrar-se no sintoma que melhor ilustra o caráter autodestruti-vo da política gnóstica, isto é, o fato estranho de que exista um estado de belige-rância contínuo quando todas as sociedades políticas, através de seus representan­tes, professam um ardente desejo de paz. Numa época em que a guerra é paz, e a paz guerra, parece útil,formular algumas definições para se ter certeza acerca do significado dos termos. Paz significará uma ordem temporária de relações sociais que expresse adequadamente o equilíbrio das forças existenciais. O equilíbrio pode ser perturbado por diversas causas, tais como crescimento populacional numa área e decréscimo em outra, avanços tecnológicos que favoreçam áreas bem dotadas das matérias-primas necessárias, mudanças nas rotas de intercâmbio, etc. Guerra sig­nificará o uso da violência com o objetivo de restaurar uma ordem equilibrada, quer mediante a repressão do aumento perturbador da força existencial, quer pelo reordenamento das relações sociais a fim de expressar adequadamente a nova relação entre as forças existenciais. Política significará a tentantiva de restaurar o equilíbrio de forças ou reajustar a ordem, por vários meios diplomáticos ou pela acumulação de forças dissuasórias, sem chegar à guerra. Essas definições não de­vem ser tomadas como a última palavra em matérias tão importantes como guerra, paz e política, mas simplesmente como uma declaração das regras que presidirão a formulação do problema que estamos tratando.

A política gnóstica é autodestrutiva no sentido de que as medidas que visam estabelecer a paz aumentam as perturbações que conduzem à guerra. A mecânica dessa autodestruição foi indicada acima, quando se descreveram as operações má­gicas no mundo de fantasia. Se uma perturbação incipiente do equilíbrio não for contrabalançada pela ação política adequada no mundo da realidade, e se, pelo contrário, for enfrentada por meio de feitiços, tal perturbações pode atingir tais proporções que o recurso à guerra se torna inevitável. O exemplo óbvio é a ascen­são do movimento nacional-socialista ao poder, primeiramente na Alemanha e depois em escala continental, enquanto o coro gnóstico proclamava sua indignação moral diante de feitos tão bárbaros e reacionários num mundo progressista — sem, contudo, levantar um dedo para reprimir a força ascendente por meio de um pe­queno esforço político no momento oportuno. A pré-história da Segunda Guerra Mundial suscita a séria questão de saber se o sonho gnóstico não corroeu tão pro­fundamente a sociedade ocidental a ponto de tornar impossível a política racional, deixando a guerra como único instrumento para ajustar as perturbações no equilí­brio das forças existenciais.

A condução da guerra e o período que a ela se seguiu infelizmente tendem a confirmar esse receio, ao invés de mitigá-lo. Se existe algum propósito na guerra, deve ser o de restaurar o equilíbrio de forças, e não o de agravar a perturbação; deve ser o de reduzir o excesso de força perturbador, e não a destruição da força a ponto de criar um novo vácuo de poder gerador de desequilíbrio. Não obstante, os políticos gnósticos colocaram o exército soviético no Elba, entregaram a China aos comunistas e desmilitarizaram a Alemanha e o Japão, ao mesmo tempo em que desmobilizavam nosso próprio exército. Os fatos são bem conhecidos, mas talvez não se tenha suficiente consciência de que jamais na história da humanidade uma potência mundial usou a vitória com o propósito deliberado de criar um vácuo de poder que lhe era desvantajoso. E mais uma vez, como em contextos anteriores, é necessário advertir que um fenômeno dessa magnitude não pode ser explicado pela ignorância ou falta de inteligência. Essas políticas foram executadas como uma questão de princípio, com base nas premissas gnósticas fantasiosas acerca da natu­reza do homem, acerca de misteriosa evolução da humanidade rumo à paz e à ordem mundial, acerca da possibilidade de estabelecer uma ordem internacional em abstrato, sem relação com a estrutura do campo de forças existenciais, acerca de serem os exércitos as causas da guerra, e não as forças e agrupamentos que os formam e os põem em ação, etc. A enumeração da série de ações, bem como das premissas fantasiosas em que se baseiam, mostra que o contato com a realidade está, quando nada, seriamente prejudicado, e que o deslocamento patológico pelo mundo de sonho é bastante efetivo.

Além do mais, deve-se notar que o fenômeno único de uma grande potência criar um vácuo de poder que lhe é desvantajoso foi acompanhado pelo fenômeno igualmente único da conclusão militar da guerra sem a celebração de tratados de paz. Esse fenômeno adicional, bastante perturbador, também não pode ser expli­cado pela imensa complexidade dos problemas que exigiam solução. Mais uma vez é a obsessão fantasiosa que torna impossível aos representantes das sociedades gnósticas formular políticas que levem em conta a estrutura da realidade. Não pode haver paz, porque o sonho não pode ser transformado em realidade e a reali­dade ainda não rompeu o sonho. Obviamente, ninguém pode predizer que pesa­delos de violência serão necessários para romper o sonho e muito menos como será a sociedade ocidental au bout de Ia nuit.

Assim, a política gnóstica é autodestrutiva na medida em que sua negligência para com a estrutura da realidade leva à guerra contínua. O sistema de guerras em cadeia só pode terminar de duas maneiras. Ou resultará em horríveis destruições físicas e nas concomitantes modificações revolucionárias da ordem social que esca­pam a qualquer conjetura razoável; ou, com a mudança natural das gerações, con­duzirá ao abandono dos sonhos gnósticos antes que aconteça o pior. É nesse senti­do que se deve entender a sugestão feita anteriormente no sentido de que o fim do sonho gnóstico talvez esteja mais próximo do que geralmente se imagina.

Essa exposição dos perigos do gnosticismo como teologia civil da sociedade oci­dental talvez haja suscitado algumas dúvidas. A análise aplica-se inteiramente ape­nas às variedades progressivistas e idealistas prevalecentes nas democracias ociden­tais; não se aplicaria tão bem às variedades ativistas que prevalecem nos impérios totalitários. Qualquer que seja a parcela de responsabilidade pela situação atual que se possa atribuir aos progressivistas e idealistas, a fonte mais formidável de perigo iminente parece residir nos ativistas. A íntima conexão entre os dois perigos, por conseguinte, exige esclarecimento — tanto mais quanto os representantes das duas variedades de gnosticismo são antagonistas em luta no mundo inteiro. A análise dessa questão adicional pode perfeitamente usar como prefácio os pronuncia­mentos de um famoso intelectual liberal a respeito do problema do comunismo:

'Lenin estava certamente com razão quando buscou o objetivo de construir seu céu na terra e inscrever os preceitos de sua fé no tecido interno de uma humani­dade universal. Ele também estava sem dúvida certo ao reconhecer que a guerra é o prelúdio da paz, e que é inútil supor que se possa alterar a tradição de incontáveis gerações, dir-se-ia, da noite para o dia'.

'O poder de qualquer religião sobrenatural para construir essa tradição desa­pareceu; a acumulação da pesquisa científica desde Descartes foi fatal para sua autoridade. Portanto, é difícil imaginar sobre que bases pode ser reconstruída a tradição civilizada exceto sobre a idéia em que a Revolução Russa se fundamentou. Ela corresponde, abstração feita do elemento sobrenatural, ao mesmo clima no qual o Cristianismo se tornou a religião oficial do Ocidente'.

'Na verdade, em certo sentido é válido dizer que o princípio russo tem maior alcance do que o cristão, uma vez que busca a salvação das massas através da reali­zação nesta vida, dando por isso novo ordenamento ao mundo real que conhecemos'.

Poucas passagens poderiam revelar mais claramente a situação do intelectual liberal de nosso tempo. A filosofia e o Cristianismo estão além de seu raio de expe­riência. A ciência, além de constituir um instrumento para dominar a natureza, é algo que o faz suficientemente sofisticado a ponto de não acreditar em Deus. O céu será construído na terra. A auto-salvação, a tragédia do gnosticismo que Nietzsche sofreu com intensidade máxima até que sua alma se quebrou, é uma realização da vida que chega a cada homem com a sensação de que ele está contribuindo para a sociedade de acordo com sua capacidade, compensada pelo salário ao fim do mês. Não há qualquer problema relativo à existência na sociedade exceto a satisfação imanente das massas. A análise política indica quem será o vencedor, de modo que o intelectual possa, no momento oportuno, conseguir um emprego como teólogo da corte no império comunista. E as pessoas espertas poderão acompanhá-lo em suas hábeis manobras para conservar-se na crista da onda do futuro. A situação é hoje bastante conhecida e dispensa maiores comentários. É o caso dos paracletos menores em que o espírito se agita; que sentem o dever de desempenhar um papel público e de servir como professores para a humanidade; que de boa fé substituem seu conhecimento crítico por suas convicções; e, com a consciência inteiramente tranqüila, expressam opiniões acerca de problemas que estão fora de seu alcance. Além disso, não se deve negar a consistência e honestidade imanentes dessa transi­ção do liberalismo para o comunismo; se o liberalismo for entendido como a sal­vação imanente do homem e da sociedade, o comunismo é certamente sua expres­são mais radical. Trata-se de uma evolução que já fora prenunciada pela fé dejohn Stuart Mill no advento último do comunismo para a humanidade.

Em linguagem mais técnica, o problema pode ser formulado da seguinte for­ma. As três variedades possíveis de imanentização — teleológica, axiológica e ati­vista -r não constituem apenas três tipos coordenados, mas se relacionam umas às outras dinamicamente. Em cada onda do movimento gnóstico, as variedades progressista e utópica tenderão a formar a ala direita, deixando boa parte da perfeição final à evolução gradual e à acomodação da tensão entre as conquistas reais e o ideal; a variedade ativista tenderá a formar a ala esquerda, agindo violentamente na busca da realização completa do reino perfeito. A distribuição dos crentes entre a direita e a esquerda será em parte determinada por equações pessoais, como en­tusiasmo, temperamento e consistência; todavia, para outras pessoas, talvez a maioria, a distribuição será determinada por sua relação com o meio civilizacional em que ocorre a revolução gnóstica. Pois não se deve esquecer jamais que a socie­dade ocidental não é inteiramente moderna, e sim que a modernidade é um tumor dentro dela, em oposição à tradição clássica e cristã. Se só existisse o gnosticismo na sociedade ocidental, o movimento em direção à esquerda seria irresistível por pertencer à lógica da imanentização, já tendo-se consumado há muito tempo. No entanto, o fato é que as grandes revoluções ocidentais do passado, após sua lógica guinada para a esquerda, retornaram a uma ordem pública que refletia o equilí­brio das forças sociais no momento, juntamente com seus interesses econômicos e tradições civilizacionais. O receio ou a esperança, dependendo do caso, de que as revoluções 'parciais' do passado serão seguidas pela revolução 'radical' e pelo estabelecimento do reino final baseia-se na premissa de que as tradições da socie­dade ocidental estão agora suficientemente arruinadas e que as famosas massas estão prontas para dar o bote fatal.

Por conseguinte, a dinâmica do gnosticismo desenvolve-se ao longo de duas linhas. Na dimensão da profundidade histórica, o gnosticismo move-se da ima­nentização parcial dos meados da Idade Média para a imanentização radical da atualidade. E, com cada onda e erupção revolucionária, ele se move da direita para a esquerda. Entretanto, a tese de que essas duas linhas da dinâmica devem agora encontrar-se de acordo com sua lógica interna, de que a sociedade ocidental está madura para cair no comunismo, de que o curso da história ocidental é deter­minado pela lógica de sua modernidade e por nada mais — essa tese é uma ins­tância impertinente da propaganda gnóstica no que ela tem de mais tolo e corrup­to, nada tendo a ver certamente com o estudo crítico da política. Contra essa tese cabe apontar diversos fatos hoje obscurecidos porque o debate está dominado por clichês liberais. Em primeiro lugar, o movimento comunista na própria sociedade ocidental, onde quer que teve de depender apenas de seu apelo de massas sem a ajuda do governo soviético, não chegou a nada. O único movimento gnóstico ati­vista que alcançou um grau notável de sucesso foi o movimento nacional-socialista, em base nacional limitada; e a natureza suicida desse êxito ativista é amplamente testemunhada pela abominável corrupção interna do regime enquanto durou e pelas ruínas das cidades alemãs. Em segundo lugar, a situação atual do Ocidente diante do perigo soviético, na medida em que decorre da criação do vácuo de poder anteriormente descrito, não se deve ao comunismo. O vácuo de poder foi criado livremente pelos governos democráticos ocidentais, do alto de uma vitória militar, sem sofrer a pressão de ninguém. Em terceiro lugar, o fato de que a União Soviéti­ca seja uma grande potência em expansão no Continente europeu nada tem a ver com o comunismo. A extensão atual do império soviético, englobando as nações satélites, corresponde em linhas gerais ao programa de um império eslavo sob he­gemonia russa, tal como proposto, por exemplo, por Bakunin a Nicolau I. Ê perfeitamente concebível que um império hegemônico russo não comunista tivesse ho` as mesmas dimensões do império soviético, constituindo perigo ainda maior pel possibilidade de estar mais solidamente consolidado. Em quarto lugar, o império soviético, conquanto seja uma potência formidável, não poè em perigo a Europa Ocidental ao nível da força material. Estatísticas elementares mostram que a força de trabalho, os recursos naturais e o potencial industrial da Europa Ocidental são comparáveis a qualquer força que o império soviético possa reunir — sem contar com nosso próprio poder nos bastidores. O perigo nasce estritamente do particu-larismo nacional e da paralisante confusão moral e intelectual.

Assim, o problema do perigo comunista recai sobre o problema da paralisia ocidental e da política autodestrutiva gerada pelo sonho gnóstico. As passagens citadas acima mostram a fonte da dificuldade. O risco de derrapar da direita para a esquerda é inerente à natureza do sonho; na medida em que o comunismo é um tipo mais radical e consistente de imanentização do que o progressivismo ou o uto-pismo social, tem a seu favor a logique du coeur. As sociedades ocidentais gnósticas encontram-se num estado de paralisia intelectual e emocional porque não é possí­vel empreender qualquer crítica fundamental do gnosticismo esquerdista sem ar­rancar o gnosticismo de direita de seu curso. No entanto, as grandes revoluções experienciais e intelectuais são lentas e exigem a passagem pelo menos de uma ge­ração. Não se pode ir além da formulação das condições do problema. Haverá um perigo comunista latente, nas mais favoráveis condições externas, enquanto forem estigmatizados como 'reacionários' o reconhecimento da estrutura da realidade, o cultivo das virtudes da sophia e da prudentia, a disciplina do intelecto e o desenvol­vimento da cultura teórica e da vida do espírito; enquanto o desrespeito pela estru­tura da realidade, a ignorância dos fatos, a construção falaciosa e a falsificação da história, o opinar irresponsável com base em convicções sinceras, o analfabetismo filosófico, o embotamento espiritual e a sofisticação agnóstica forem consideradas virtudes do homem, cuja posse abre as portas ao êxito público. Em suma, enquanto civilização for reação, e insanidade moral for progresso.

A função do gnosticismo como teologia civil da sociedade ocidental, sua destrui­ção da verdade da alma e sua negligência para com os problemas da existência fo­ram apresentadas em suficiente pormenor para que fique nítida a importância fatal do problema. A análise pode retornar agora ao grande pensador que descobriu sua natureza e buscou resolvê-lo por meio da teoria da representação. No século XVII, a existência da sociedade nacional inglesa corria o risco de ser destruída pelos re­volucionários gnósticos, como hoje, em escala maior, existe o perigo de que a so­ciedade ocidental seja inteiramente destruída. Hobbes buscou enfrentar o perigo concebendo uma teologia civil que fazia da ordem da sociedade existente a verdade que ela representava — ao lado da qual nenhuma outra verdade poderia ser susten­tada. Tratava-se de uma idéia eminentemente sensata na medida em que se concen­trava nos dados da existência, que fora tão completamente negligenciada pelos gnósticos. Entretanto, o valor prático da idéia baseava-se na premissa de que a ver­dade transcendente que os homens buscavam representar em suas sociedades, após ter a humanidade vivido as experiências da filosofia e do Cristianismo, podia, por sua vez, ser desprezada. Contra os gnósticos, que não desejavam que a sociedade existisse exceto se sua ordem representasse um tipo específico de verdade, Hobbes insistia que qualquer ordem servia, desde que assegurasse a existência da sociedade. A fim de tornar válida essa premissa, ele tinha de criar sua nova idéia do homem. A natureza humana encontraria realização na própria existência, devendo ser ne­gado o propósito do homem além da existência. Hobbes opunha à imanentização gnóstica do eschaton, que ameaçava a existência, uma imanência radical da existên­cia, que negava o eschaton.

O resultado desse esforço foi ambivalente. A fim de manter sua posição contra as combativas igrejas e seitas, Hobbes tinha de negar que o zelo desses grupos fos­se inspirado, ainda que erroneamente, na busca da verdade. A luta desses grupos tinha de ser interpretada, em termos de existência imanente, como a expressão incontida da ânsia pelo poder, revelando-se sua alegada preocupação religiosa como uma máscara para esconder a ânsia existencial. No desdobramento da aná­lise, Hobbes demonstrou ser um dos maiores psicólogos de todos os tempos: suas conquistas, ao desmascarar o libido dominandi que se escondia sob o manto do zelo religioso e do idealismo reformista, são tão sólidas hoje como o eram ao tempo em que foram formuladas. Todavia, essa magnífica conquista psicológica teve um alto preço. Hobbes diagnosticou corretamente o elemento corruptor da paixão na re­ligiosidade dos gnósticos puritanos. Entretanto, não interpretou a paixão como a fonte de corrupção na vida do espírito, mas sim a vida do espírito como o extre­mo da paixão existencial. Por isso, não pôde interpretar a natureza do homem a partir da posição privilegiada do máximo de diferenciação através das experiências da transcendência, de tal modo que a paixão — e sobretudo a paixão fundamental, a superbia — pudesse ser compreendida como o perigo sempre presente da queda com relação à verdadeira natureza; pelo contrário, teve de interpretar a vida de pai­xão como a natureza do homem, de tal forma que os fenômenos da vida espiritual aparecessem como extremos da superbia.

De acordo com essa concepção, a natureza genérica do homem deve ser estuda­da em termos das paixões humanas; os objetos da paixão não constituem matéria válida de estudo6. Essa é a contraposição fundamental à filosofia moral clássica e cristã. A ética aristotélica inicia-se com os propósitos da ação e explora a ordem da vida humana em termos do ordenamento de todas as ações com vistas a um propó­sito superior, o summum bonum; Hobbes, em contraste, insiste em que não existe qualquer summum bonum, 'tal como se diz nos livros dos velhos filósofos morais'. Com a desaparição do summum bonum, todavia, perde-se também a fonte da ordem na vida humana; e não apenas na vida do indivíduo, mas também na vida da socie­dade, pois, como o leitor se recorda, a ordem da vida em comunidade depende da homonoia, no sentido aristotélico e cristão, isto é, da participação no nous comum. Portanto, Hobbes confrontou-se com o problema de construir uma ordem social feita de indivíduos isolados, que não estão orientados em direção a um propósito comum, mas motivados apenas por suas paixões pessoais.

Os pormenores da construção são bem conhecidos, bastando relembrar os pontos principais. Para Hobbes, a felicidade humana é uma progressão contínua de um objeto para outro. O objeto do desejo do homem 'não é ter prazer uma única vez e num único momento, mas assegurar, para sempre, a realização dos de­sejos futuros'. 'Por isso, em primeiro lugar, coloco como inclinação geral de toda a humanidade um desejo perpétuo e incansável de obter o poder para alcançar maior poder, que só termina na morte'. Uma multidão de homens não é uma co­munidade, mas um campo aberto de impulsos de poder em competição uns com os outros. Por conseguinte, o impulso original de poder é agravado pela descon­fiança do competidor e pela ânsia de comprazer-se na superação de outro homem10. 'Devemos supor que essa corrida não tem outro fim, outro prêmio, senão o de chegar na dianteira'. E, nessa corrida, 'ser continuamente ultrapassado é a infeli­cidade. Superar continuamente o próximo é a felicidade. Abandonar a pista é mor­rer'. A paixão agravada pela comparação é o orgulho. E esse orgulho pode tomar várias formas, das quais a mais importante para a análise da política era, segundo Hobbes, o orgulho de ter inspirações divinas ou, em geral, de estar de posse da verdade indubitável. Tal orgulho em excesso é loucura. 'Se algum ho­mem num manicômio mantiver com você uma conversa sensata e, na saída, você desejar saber quem ele é, a fim de que em outra ocasião possa gozar de seu conví­vio; e se ele lhe disser que é Deus, o Pai, creio que você não precisará confirmar sua loucura por qualquer atitude extravagante'. Se essa loucura se torna violenta e os possuidores da inspiração tentam impò-la aos demais, o resultado para a socie­dade será 'o clamor sedicioso de uma nação em crise'.

Uma vez que Hobbes não reconhece fontes de ordem na alma, a inspiração só pode ser exorcizada por uma paixão ainda mais forte que o orgulho de um paracleto — o medo da morte. A morte é o grande mal; e se a vida não puder ser ordenada pela orientação da alma em direção ao summun bonum, a ordem terá de ser motivada pelo medo do summum malum16. Do medo mútuo nasce a disposição de submeter-se ao governo por meio de um contrato. Quando as partes contratan­tes concordam em ter um governo, 'conferem toda sua força e poder a um homem, ou assembléia de homens, capaz de reduzir todas as suas vontades, pela pluralidade das vozes, a uma vontade'.

A perspicácia de Hobbes transparece perfeitamente em sua compreensão de que o simbolismo contratual por ele usado, de acordo com as convenções do século XVII, não é a essência da matéria. A combinação de indivíduos numa comunidade sob um soberano pode-se expressar de forma legal, mas essencialmente constitui uma transformação psicológica das pessoas que assim se combinam. A concepção hobbesiana do processo pelo qual uma sociedade política passa a existir está bem próxima da idéia de Fortescue acerca da criação de um novo corpus mysticum me­diante a erupção de um povo. As partes contratantes não criam um governo que os represente como indivíduos em separado; no ato da contratação, deixam de ser pessoas autogovernadas e combinam seus impulsos de poder numa nova pessoa, a comunidade; o portador dessa pessoa, seu representante, é o soberano.

Essa construção exigiu algumas distinções acerca do significado do termo 'pessoa'. 'Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como dele próprio, quer como representando as palavras e ações de outro indiví­duo ou de qualquer outra coisa.' Quando se representa a si próprio, é uma pessoa natural; quando representa a outrem, é chamado de pessoa artificial. O significado de pessoa é referido ao persona do latim e ao prosopon do grego, como a face, a apa­rência externa ou máscara do ator em cena. 'De tal forma que uma pessoa é o mes­mo que um ator, tanto no palco quanto na conversação normal; e impersonar é representar, a si próprio ou a outrem'.

Esse conceito de pessoa permite a Hobbes separar o mundo visível das pala­vras e ações representativas do mundo invisível dos processos da alma; em con­seqüência, as palavras e ações visíveis, que pertencerão sempre a um ser humano físico e definido, podem representar uma unidade de processos psíquicos que de­corre da interação das almas humanas tomadas individualmente. Na condição na­tural, cada homem tem sua própria pessoa, no sentido de que suas palavras e ações representam o impulso de poder de suas paixões. Na condição civil, as unidades humanas de paixão são rompidas e fundidas numa nova unidade chamada de co­munidade. As ações dos seres humanos individuais cujas almas se combinaram não podem representar a nova pessoa; seu portador é o soberano. A criação dessa pes­soa da comunidade, insiste Hobbes, é 'mais do que um consentimento ou acordo', como o sugeriria a linguagem contratual. As pessoas humanas individuais deixam de existir e se combinam numa única pessoa representada pelo soberano. 'Esse é o processo de geração do grande Leviatâ, ou, para falar de forma mais respeitosa, do deus mortal ao qual devemos, sob o Deus imortal, nossa paz e defesa'. Os homens que participam do contrato concordam 'em submeter suas vontades à vontade de­le, e suas opiniões à opinião dele'. A fusão das vontades constitui 'a verdadeira unidade de todos', pois o deus mortal 'dispõe de tanto poder e força que lhe foram conferidos que, pelo terror dessa capacidade, é capaz de formar a vontade de todos com vistas à paz interna e à ajuda mútua contra os inimigos externos'.

O estilo da construção é grandioso. Se se presume que a natureza humana na­da mais é do que a existência apaixonada, desprovida dos recursos de ordenamento da alma, o horror da aniquilação será, sem dúvida, a paixão maior que força a submissão à ordem. Se o orgulho não pode curvar-se perante Dike ou ser redimido através da graça, deve ser subjugado pelo Leviatã, que 'é o rei de todos os filhos de orgulho'. Se as almas não podem participar do Logos, então o soberano que ins­pira terror nas almas será a 'essência da comunidade'. O 'Rei dos Orgulhosos' deve esmagar o amor sui que não pode ser aliviado pelo amor Dei.

Joaquim de Flora havia criado um conjunto de símbolos que dominou a auto-in-terpretação dos movimentos políticos modernos em geral; Hobbes criou um con­junto comparável que expressou o componente de imanência radical na política moderna.

O primeiro desses símbolos pode ser chamado a nova psicologia. Sua natureza pode ser melhor definida relacionando-a com a psicologia agostiniana da qual deriva. Santo Agostinho fazia a distinção entre o amor sui e o amor Dei como os cen­tros volitivos organizacionais da alma. Hobbes descartou-se do amor Dei e baseou-se, para sua psicologia, exclusivamente no amor sui, isto é na linguagem que empre­gou, a autopresunção ou orgulho do indivíduo. Ao eliminar o amor Dei da inter­pretação da psique, consumou um desenvolvimento que remonta pelo menos ao século XII. Com o surgimento do indivíduo dependente de si mesmo na cena social, o novo tipo e sua busca do êxito social além do próprio status atraíram bastante atenção. Com efeito, John de Salisbury o descreveu em seu Policraticus em termos bem semelhantes aos de Hobbes23. Na esteira das grandes transformações institucionais do fim da Idade Média e da Reforma, o tipo tornou-se tão comum que passou a ser o tipo 'normal' de homem, tornando-se objeto de preocupação geral. O trabalho psicológico de Hobbes encontrou paralelo, em seu próprio tem­po, na psicologia de Pascal, embora este último houvesse preservado a tradição cristã e descrito o homem guiado apenas por suas paixões como aquele que se dei­xou vitimar por um ou outro tipo de libido. Na mesma época, com La Rochefou-cauld, iniciou-se o estudo psicológico do homem do 'mundo', motivado por seu amour-propre (o amor sui agostiniano). As ramificações nacionais da psicologia fran­cesa dos moralistes e novelistas, a psicologia inglesa do prazer-dor, associacionis-mo e auto-interesse, os enriquecimentos alemães através da psicologia do incons­ciente dos românticos e da psicologia de Nietzsche — todos essas manifestações atestam a amplitude do fenômeno. Desenvolveu-se uma psicologia especificamente 'moderna' como psicologia empírica do homem 'moderno', isto é, do homem que está intelectual e espiritualmente desorientado e, por isso, motivado principal­mente por suas paixões. É útil introduzir as expressões psicologia da orientação e psicologia da motivação para estabelecer a distinção entre a ciência da psique sau­dável, no sentido platônico, em que a ordem da alma é criada por uma orientação transcendental, e a ciência da psique desorientada, que necessita ser ordenada através de um equilíbrio de motivações. Nesse sentido, a psicologia 'moderna' é incompleta na medida em que lida apenas com um certo tipo pneumopatológico de homem.

O segundo símbolo refere-se à própria idéia do homem. Uma vez que o tipo desorientado, por sua freqüência empírica, foi considerado o tipo 'normal', de­senvolveu-se uma antropologia filosófica em que a enfermidade foi interpretada como a 'natureza do homem'. Não podemos aqui nos aprofundar nesse proble­ma, bastando sugerir a linha que une os existencialistas contemporâneos aos pri­meiros filósofos da existência no século XVII. A crítica que caberia fazer dessa fi­losofia da existência imanente já foi feita, em princípio, por Platão no Gorgias.

Por fim, o terceiro símboío é a criação especificamente hobbesiana do Leviatã. Sua significação é mal compreendida hoje porque o símbolo foi sufocado pelo jar­gão do absolutismo. O relato anterior deve ter tornado patente que o Leviatã é o correlativo da ordem à desordem dos ativistas gnósticos que se deixam levar por sua superbia ao extremo da guerra civil. O Leviatã não pode ser identificado com a forma histórica da monarquia absolutista, estando por isso amplamente justifi­cada a desconfiança com que Hobbes era encarado pelos monarquistas de seu tempo. Nem pode o símbolo ser identificado com o totalitarismo em seu próprio nível simbólico de reino final da perfeição. Quando muito, prenuncia um com­ponente do totalitarismo que ocupa posição preeminente sempre que um grupo de ativistas gnósticos efetivamente conquista o monopólio da representação existencial numa sociedade histórica. Os gnósticos vitoriosos não podem transfigurar a natu­reza do homem nem estabelecer um paraíso terrestre; o que fazem, na verdade, é criar um estado onipotente que elimina implacavelmente todas as fontes de resis­tência e, antes de tudo, os próprios gnósticos incômodos. A julgar pela experiên­cia que temos dos impérios totalitários, seu traço característico é a eliminação do debate acerca da verdade gnóstica que eles próprios declaram representar. Os na-cionais-socialistas suprimiram o debate sobre a questão racial uma vez chegados ao poder; o governo soviético proíbe o debate e o desenvolvimento do marxismo. O princípio hobbesiano de que a validade da Escritura deriva da sanção governamen­tal e de que seu ensino público deve ser supervisionado pelo soberano é implemen­tado pelo governo soviético na redução do comunismo à 'linha do Partido'. A linha do partido pode mudar, mas a mudança de interpretação é determinada pe­lo governo. Os intelectuais que ainda insistem em ter opiniões próprias sobre o significado dos textos alcorônicos são expurgados. A verdade gnóstica que foi produzida livremente pelos pensadores gnósticos originais é agora canalizada sob a forma da verdade da ordem pública na existência imanente. Por isso, o Leviatã é o símbolo do destino que realmente aguarda os ativistas gnósticos quando, em seu sonho, acreditam estar realizando o reino da liberdade.

ra mostrou ser a mais resistente ao totalitarismo gnóstico. O mesmo deve ser dito dos Estados Unidos, embora o país tenha sido fundado pelos próprios puritanos que provocaram terror em Hobbes. Impõe-se uma palavra sobre tal questão à gui­sa de conclusão.

A explicação deve ser buscada na dinâmica do gnosticismo. O leitor se recor­dará das repetidas advertências acerca do fato de que a modernidade é um tumor na sociedade ocidental, em competição com a tradição mediterrânea; recordar-se-á também que o próprio gnosticismo sofreu um processo de radicalização, da ima-nentização medieval do Espírito, que abandonou Deus em sua transcendência, à posterior imanentização radical do eschaton, tal como encontrada em Feuerbach e Marx. A corrosão da civilização ocidental através do gnosticismo é um processo lento, que se estende por mais de mil anos. As diversas sociedades políticas ociden­tais têm uma relação diferente com esse lento processo, dependendo da época em que ocorreu a revolução nacional de cada uma delas. Quando a revolução ocorreu cedo, seu portador foi uma onda menos radical de gnosticismo e a resistência das forças da tradição foi também mais efetiva. Nas revoluções ocorridas posterior­mente, o portador foi uma onda mais radical e o meio da tradição já estava profun­damente corroído pelo avanço generalizado da modernidade. A Revolução Inglesa, no século XVII, desenvolveu-se num momento em que o gnosticismo ainda não sofrerá sua secularização radical. Vimos como os puritanos da ala esquerda mostra­vam-se ansiosos para se passar por cristãos, conquanto de uma espécie particular­mente pura. Ao se alcançarem os ajustes de 1690, a Inglaterra preservara a cultura institucional do parlamentarismo aristocrático e os costumes de uma nação cristã, então sancionados como instituições nacionais. A Revolução Americana, embora influenciada em seus debates pela psicologia do iluminismo, também teve a boa sorte de encerrar-se dentro do clima institucional e cristão do ancien regime. Já na Revolução Francesa a onda radical era tão forte que cindiu permanentemente a nação entre a metade laicista que se baseou na própria revolução e a metade con­servadora que tentou, e ainda tenta, salvaguardar a tradição cristã. Por fim, a Re­volução Alemã, num meio desprovido de fortes tradições institucionais, pela pri­meira vez pôs inteiramente em jogo o materialismo econômico, a biologia racista, a psicologia corrupta, o cientificismo e a crueldade tecnológica — em suma, a mo­dernidade sem peias. Dessa forma, a sociedade ocidental como um todo é uma ci­vilização profundamente estratificada, na qual as democracias inglesa e norte-ame­ricana representam a camada mais antiga e mais firmemente consolidada da tradi­ção civilizacional, enquanto a área alemã representa a camada mais moderna do ponto de vista progressivista.

Há uma centelha de esperança nessa situação, pois as democracias norte-ame­ricana e inglesa, em cujas instituições está mais solidamente representada a verdade da alma, são, ao mesmo tempo, as potências mais fortes. Mas todos os nossos es­forços serão necessários para transformar essa centelha numa chama, pela repres­são da corrupção gnóstica e pela restauração das forças da civilização. Atualmente, o desfecho é incerto.


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