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Contos-->A inocência perdida -- 16/12/2002 - 17:42 (Javier Martínez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ele tem um rosto sombrio e um par de botas que fazem barulho todas as noites, enquanto o som aproveita para descansar suas forças. Cada passo pronuncia ecos minúsculos que batem como chicotes nas árvores e plantas. Ninguém sabe quantas vitimas já experimentaram sua verve de mistério e verdade nesse vilarejo. Ninguém sabe o porque dessa idéia de tirar a inocência das crianças.

As crianças da escola temem dele e acreditam uma serie de historias ao seu respeito. Com a barba que ultrapassa o pescoço e fácil imaginar possíveis atos macabros desse senhor e as crianças não perdem tempo em atribuir a ele poderes sobrenaturais. "Mas ele não é uma pessoa má" comentavam alguns moradores do vilarejo quando encontravam velhos conhecidos na feira de frutas e verduras de final de semana.

Há uma semana o homem barbado deixou um vestígio do seu passo na cabeça de dois irmãos que estavam voltando para casa, sozinhos. Esse dia eles demoraram em sair da escola e o grupo foi embora. A mãe deles pediu que falassem com o professor sobre uma pequena reunião que iria organizar nessa mesma noite para os amigos mais próximos, na pequena chácara que o defunto marido tinha comprado pouco antes de largar seu compromisso com a vida. Praticamente todos se conheciam naquele lugar e com freqüência havia reuniões com música à luz do violão. A tecnologia não tinha sujado, ainda, a calidez desses encontros.

O problema era que poucos se importavam com o sujeito que tirava a inocência das crianças. Todo vilarejo tem uma serie de superstições, algumas próprias e outras importadas, e ninguém acreditava na capacidade de sedução do velho. Algumas crianças depois do encontro com o sujeito pareciam estar inventando contos e saiam ate regozijados com a troca de informações.

Os dois irmãos voltaram com um olhar diferente, um pouco de decepção e uma pitada de malandragem.

- Nada é verdade mãe!, refutou o irmão mais velho enquanto sua inocência descia ate o chão.

- Do que você esta falando? Onde vocês estavam?, perguntou a mãe com um ar de raiva.

- Agora dá para entender o porquê de tanta crendice besta neste vilarejo, o porquê do nosso atraso, interrompeu o irmão menor.

- O que deu em vocês meninos, hein?, inutilmente insistia a mãe sem respostas.

O problema era que a noite estava próxima e não tinha muito tempo para explicações. Ela precisava de uma força para arrumar a casa. Foram convidadas umas dez pessoas e não queria decepcionar ninguém já que o povo comentaria o fracasso da festinha e as fofocas podiam chegar em má hora.

Depois dos primeiros convidados chegarem o vinho começou a rodar pelas gargantas secas e cada um começou a soltar as feras do inconsciente com sortilégios de encantos borrifando o cérebro. A música era o melhor tempero e o cheiro de churrasco perpetuava a tradição dos encontros. As crianças acompanhavam tudo. Nunca antes tinham ficado acordadas até essas horas.

A mãe impressionada comentou para o grupo que eles tinham chegado muito estranhos essa tarde.

- Eles devem ter se encontrado com o velho que tira a inocência das crianças, comentou o professor com um sorriso de álcool estampado no rosto.

Todos olharam impressionados com um silêncio abrupto.

- Agora que vocês se entregaram à alegria passageira do vício estão aptos para deixar a hipocrisia de lado?, disse o irmão maior aproveitando o embalo do silêncio.

- Não adianta fundamentar-se nesse modelo falido para perpetuar o nosso subdesenvolvimento, complementou o irmão menor.

- Meninos vão pro quarto!, berrou a mãe na frente de todo mundo.

- Pois é! Agora que abrimos os olhos somos reprimidos! Vocês funcionam baseados em erros e criam este filme patético ao qual chamam de vida... Boa noite!, disse o irmão maior enquanto puxava a mão do outro.

O churrasco começou a queimar e ninguém percebeu. O vinho foi alternado com água para dissipar as fortes impressões.

- Esse papo do velho é verdade, disse o padre da cidade que era respeitado por velho e por religioso.

- O velho que tira a inocência das crianças é um mito!, afirmou veementemente a mãe dos meninos.

- Eu tenho que reconhecer que alguns dos meus alunos estão estranhos ultimamente, não participam das aulas e questionam o que estou ensinando, comentou o professor.

- A carne!, gritou a mãe com um pulo lamentável, quase perdendo o equilíbrio, e concertou o erro com a categoria de um palhaço.

Depois da correria todos riram e sentaram em volta a uma fogueira improvisada com madeira de eucalipto e algumas folhas verdes que pareciam não incomodar.

- Não sei por onde começar, disse o padre.

- Pelo começo!, replicou um comerciante do vilarejo e riu sozinho.

- Embora eu tenha crescido com o Pedro, o velho que tira a inocência das crianças, nunca mais o vi, mas estudamos juntos e eu o conheço muito bem. Ele era muito religioso e temeroso do Senhor. Quando o circo passava pelo vilarejo ele tentava assistir todas as funções. Acreditava que os magos faziam desaparecer as coisas mesmo, e que os animais eram felizardos nesse meio. Cada Natal aguardava o retorno de Papai Noel, porém, não entendia como era possível presentear tantas crianças numa noite só. Uma vez Papai Noel chegou ao vilarejo e tirou fotos com as crianças. Conversou com cada menino e até parecia conhecer a vida de todos eles com esse papo padrão que sabia de cor. Pedro com a mesma convicção do circo, da religião ou das superstições ficava perto dele o dia inteiro, começou a relatar o padre.

- Sim mais e daí! Qual o problema com esse tal de Pedro?, perguntou a esposa do comerciante.

- Não perceberam ainda?, disse o padre.

- Era uma criança como qualquer outra, replicou a mãe dos meninos.

- Um dia ele decidiu seguir o Papai Noel. Ele espiou através de um buraco que tinha a casa de madeira onde se hospedava o velho de vermelho e branco. Quando tirou as barbas brancas ele se impressionou. Com as roupas aconteceu a mesma coisa... Não tinha barrigão! Mas, quando o modelo disfarçado começou a beber e tropeçar até com a sua própria sombra, aí foi que o Pedro ficou muito decepcionado e voltou para casa chorando. Na manhã seguinte, ele decidiu visitar o Papai Noel e aquele buraco que fora a janela para acorda-lo desse mundo de fantasia que os adultos criaram, não conseguiu impedir que assista à patética cena do velho enforcado no meio da sala, já sem cor na pele e com os olhos bem abertos olhando fixamente para o buraco. Pedro foi correndo ao vilarejo gritando Papai Noel está morto! Papai Noel morreu! Um velinho que estava fumando cachimbo na confortável sacada da sua humilde casa olhou para o menino e disse: “Papai Noel não existe, é uma invenção. Por isso não pode estar morto”. Pedro olhou nos olhos do velho e perguntou com um grito desvairado: “e Deus existe ou é uma outra invenção?” O padre fez um breve silêncio aguardando perguntas.

- Não entendo o porquê de tanto drama, esse coitado resolveu se matar por que afetou tanto o menino?, perguntou o comerciante

- Ele percebeu que os adultos criam ilusões para que as crianças vivam dentro de um mundo além do mundo, depois enchem suas cabeças com livros escritos por outros adultos para respeitar verdades inventadas, e castram qualquer desejo sadio de criar, crescer naturalmente, se desenvolverem. Com que direito? Eles não dão em troca uma verdade e mantém as mentiras por gerações, refletiu o padre.

- Mas o que está nos livros é real, uma porção da história, talvez subjetiva, mas real, argumentou o professor.

- Sei de certo de herói de guerra que morreu dignamente e ficou com louros na história, porém, a verdade é que morreu de disenteria e apareceu como herói nos livros porque a mãe dele teve um caso com um marechal importante da época. Sei de uma raça que ajudou em batalhas antigas pela libertação de um país, porém, não aparece nos livros por preconceito. Sei de vergonhas que envergonham, verdades que mentem, culturas perdidas, tristes alicerces, e a gente continua com esse trem velho carregando palavras inúteis. O Pedro não, ele fala com as crianças e abre seus olhos... Ah! Como queria fazer isso, mas não posso, escolhi o caminho errado!
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