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Contos-->A Dama da Morte e o Artista -- 16/12/2002 - 17:43 (Javier Martínez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ela é uma mulher com olhar de compaixão, uma pele branca e roupas de fortes e apagados pretos contornando a figura estilizada. Nasceu em terras balcânicas, numa vila perdida perto do Danúbio ao Sudeste da Europa. Há séculos ela não usa nome, mas conhecem-na como a Dama da Morte. Freqüenta hospitais, cemitérios, mares e bibliotecas, embora possa estar em qualquer outro local num pestanejar. Sua função é visitar todo mundo para levar o último suspiro imaterial. O que vem acontecendo há centúrias.

Um dia, ela decidiu vestir as cores mais diversas para visitar um pintor em seu leito de morte. Sabia que cada abordagem devia ser diferente, lição aprendida dessa arte, quando ainda era uma adolescente.

O velho artista, deitado e só, admirava pela última vez cada traço dos quadros que levaram com ele, além dos anos, a família. A falta de vontade de formar parte dessa instituição levou-o a morar com suas pinturas e suas idéias em uma casa simples nas cercanias de Camberra. Uma das obras que mais gostava de ver era “A lente d’outrora”, a qual se apresentava sempre diferente, como se uma tela meditabunda passeasse as vontades do artista por lugares inóspitos. Um desenho caótico e encantador.

Foi no ponto de fuga que a dama apareceu, misturada entre as cores, imóvel diante do solitário pintor. A janela do quarto deixava que a brisa criasse uma camada de dialetos naturais enquanto o artista se perguntava se essa era apenas mais uma viagem, ou a sua última viagem.

Ele nunca acreditou nas coisas que não pudesse apalpar. Para ele, Deus era mulher, um ser tangível, o tempo todo ao seu lado. E como toda mulher, encarregado de perpetuar a espécie, Ele o chamava de Mãe, Mãe Natureza, mecanismo perfeito de absoluta riqueza e portento. Mas, contrária a qualquer teoria, a sua deusa não era inalcançável. Era muito frágil, e por isso as obras que ele representava tinham sempre alguma mensagem de respeito ao culto da floresta que ele tanto amava.

A dama da morte olhou-o fixamente, mas ele negou o fato.

– Eu danço dentro dessa pintura, não falo com ela, disse o pintor.

– Você não muda, respondeu a dama. Eu visitei todas as suas mortes e você sempre me negou atenção. Você não acredita na reencarnação. Pois sua missão aqui..., e olhou para o chão, enquanto parecia desfrutar do próprio silêncio afiado, e continuou: Este quadro é magnífico, posso até sentir que estou nua dentro deste vestido de cores que escolhi especialmente para você.

– Se alguém vai me levar é a terra, a quem serei sempre devoto!, exclamou o pintor - eu tenho certeza de que ela é a única com quem me sinto em dívida. Devo a ela por ser humano, o pior filho que a Mãe Natureza teve, o traíra. Mas não adianta, o quê você vai levar de mim dessa vez? Para onde iremos?

– Está vendo como você se lembra de mim? - Sorriu a dama - Eu sou a Dama da Morte, e já estivemos juntos em vários países. Lembro-me do nosso primeiro encontro na Pérsia, você se afogando, sem forças. Olhei para você e o levei, mas logo depois, já estava de volta à Terra.

– Parece mentira, relutou o pintor. Agora sim, estou me lembrando de tudo, como se estivesse me curando de anos de amnésia.

– Você não precisa de sabedoria cada vez que retorna ao mundo, comentou a Dama. Senão, haveria uma grande desigualdade entre os seres.

– E como é possível que esteja me lembrando disso agora?, perguntou desconfiado o pintor.

– É que você já está morto para os mortais, e entregou o seu corpo à... Qual era mesmo o nome que você dava a ela? Já sei, a Mãe Natureza. Ela vai se encarregar de usar o seu corpo para dar continuidade aos ciclos de renovação permanente, complementou a Dama, com ar de ironia.

– E por que continuo deitado aqui?, estranhou o pintor.

– Quem é que disse que você não pode sair? Venha comigo, e o levarei para conhecer a totalidade e essência da sua pintura, coisas que você nem imagina que pintou. E lhe estendeu os braços.

O artista levantou-se lentamente, para ver desde a janela a paisagem que nunca mais voltaria a beijar com os olhos. Entrou no quadro e percebeu que cada linha recriava objetos e dimensões cubistas, cada plano desdobrava-se em formas inimagináveis de material brando, fractais, superposições de cores.

– Eu quero viver aqui, disse o pintor, quase suplicando à Dama. Esta é a obra da minha vida.

– Não posso deixar você deste lado do universo, murmurou a Dama, como se alguém a estivesse ouvindo. Devemos continuar.

– E se eu quiser parar, eu posso escolher?, replicou o pintor.

– Para você poder escolher, explicou pacientemente a Dama, deverá saber mais do que você já sabe ou do que se lembra. Sua história tem mais anos do que você imagina. E olhando nos seus olhos, levou-o para perto de um espelho d´água que ele próprio havia pintado. Olhe para o seu rosto, lembra-se dele?, perguntou enfática, enquanto segurava-o pela nuca, quase grosseiramente.

– Por que deveria me lembrar?, questionou o pintor. Você, a impiedosa dos séculos, não pode se dar o luxo de brincar com mortais.

– Certa vez, conheci um moço de olhar cativante. Ele fazia o mesmo que eu faço, e às vezes, parávamos para analisar o grande flagelo que é a eternidade. Começamos a sentir amor um pelo outro. O amor, que talvez nada tenha a ver com o sentimento carnal dos humanos, é o sentimento mais puro, mais nefasto, mais cruel. É o sentimento mais “tudo”. Não adiantava querer negar essa verdade. Éramos um sentimento.

– Os mortais têm muitos tipos de amor, interrompeu o artista. Prossiga, por favor.

– Uma vez ele propôs fazer uma troca de destinos. Insistiu em que devíamos nos tornar mortais, para sentir o amor pleno. Procuramos a passagem à mortalidade, e desde então eu o perdi.

– Como assim? Você o perdeu? Isso não tem lógica!

– No momento em que achamos a porta de entrada à vida material, uma estrela Vega que fica na constelação Lira, ele passou pelo portal, olhou para mim, mas não conseguiu me enxergar. Foi quando percebi que mesmo a força de um sentimento como o nosso seria apagada naquele segundo de passagem pelo portal. Acompanhei meu amor até a morte do seu corpo.

– E ele esqueceu tudo o que se passou com vocês?

– Esqueceu. Infelizmente. Tudo que eu posso fazer é lamentar, lamentar aquele momento. Desde então, tudo o que eu faço...

– É procurar por ele..., tentou adivinhar o pintor.

– A única coisa que posso fazer é comparecer no dia da sua morte com roupas coloridas, e falar do meu pranto. Daqui a pouco, não estarei mais com ele e deverei aguardar, talvez, mais alguns séculos para encontrá-lo novamente.
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