Enquanto estava passeando pela Praça Central, Maria viu um senhor de uns quarenta anos ao lado da estátua, perto da pérgula de trepadeira de flores brancas. Estranhou o fato dele ignorar o aviso “proibido pisar na grama”, tão verde, tão parque. A estátua de um herói de alguma guerra que só servia para dar sombra e ele estava a procurar a vontade de uma tarde macia naquele canto. Olharam-se nos olhos e não dava para perceber se era mais uma paquera de rua ou um simples acaso. Não comentou nada com o marido.
Essa noite Maria teve pesadelos que decifraram o roteiro da vida de uma pessoa desconhecida, no sonho não conseguia distinguir o rosto, mas o corpo era, por vezes, normal. Acordou de madrugada com a impressão do susto e desceu até a cozinha para beber um copo d’água. Voltou para o quarto e dormiu, novamente, com a incerteza de retomar a calma.
Dia seguinte, pesadelo, dia subseqüente, pesadelo. O problema não passava, agravava-se. Sempre aparecia o emblemático atormentador das madrugadas para atrapalhar o sonho. Mas, nunca revelava sua identidade. Marcou uma consulta, foi ao psicanalista e explicou o que estava acontecendo. Ele receitou calmantes e depois de uma semana estava retomando sua tranqüilidade noturna com a calma fictícia dos remédios.
Maria deixou de consumir essa química depois de ter resolvido o problema. Meses de tratamento para engordar o orçamento do doutor. O esposo dela nunca soube o que aconteceu já que eles eram muito independentes e cada um respondia pelos seus atos sem o compromisso de compartilhá-los.
Uma noite foi dormir e apagou os olhos com o cansaço do cotidiano. O relógio marcava três e quinze e, subitamente, um calafrio abraçou Maria. O seu marido estava respirando e roncando ao mesmo tempo. O seu nome “Maria” ecoou na cabeça prestes à enxaqueca. Não era a voz do esposo.
Ela acendeu a luz e os olhos dele pareciam duas bolas brancas, ela gritou e o marido acordou. Nada além de um pesadelo. Toda madrugada acontecia a mesma coisa. O nome “Maria”, o grito, o acordar repentino do esposo. Maria voltou a freqüentar o psicanalista e a consumir remédios. Ela estava começando a desconfiar da situação.
Descrente da situação e descrente da sua loucura, visitou uma consultora espiritual que confirmou que o marido estava possuído e aconselhou-a a fazer um trabalho urgente para evitar uma tragédia. O trabalho começou e na mesma noite ouviu o marido, com a voz de outra pessoa, dizer,
- Não Maria! Não faça isso!
Essa noite ela saiu da cama devagar e desceu até a cozinha. Pegou uma faca de açougueiro escondeu a faca na saída de cama e voltou com a intenção de acabar com o pesadelo. Quando chegou o esposo, ou o espírito que o possuía, olhou para ela com os olhos brancos e assustadores e murmurou,
- Sei o que você esconde!
Foi o suficiente para Maria enfiar a faca no pescoço do marido, que acordou por última vez.
Entregou-se à polícia e comentou o que estava acontecendo, com o marido, com o espírito. Arranjou um advogado picareta que fez a pior defesa que a promotoria já viu. Pegou trinta anos de prisão por causa de um jogo que o advogado não soube utilizar. Alegar insanidade temporária, criar um marido ameaçador, ou até castigos de almas penadas.
Enfim, via-se Maria passar de uma vida a uma subvida. A companheira de cela tinha menos castigo pela frente e com sorte, sairia na condicional como ela gostava de lembrar à Maria.
Mas os pesadelos voltaram e o nome fazendo eco na cela foi dando mais medo à condena. Maria não olhava mais para a cara da colega. Parecia um jogo mórbido, chamava-a toda noite. A colega estava possuída também.
Uma noite esperou as luzes apagarem e a colega dormir. Com um barbante que achou no pátio deu um nó no pescoço dela e aguardou seu desespero por uma gota de ar. A noite acabou com a loucura gritando pelos corredores e uma camisa-de-força segurando a revolta de Maria.
Foi trasladada para um hospício com uma crise de nervos. Dentro da sala fechada do hospital psiquiátrico, mais uma vez começou a vivenciar pesadelos que se repetiam e repetiam o desespero das madrugadas. Ouvia-se “Maria” em todos os cantos do quarto. Uma tortura insuportável.
Uma madrugada Maria, totalmente desesperada, chamou os seguranças e no momento em que a porta se abriu, com força brutal, empurrou os dois funcionários. Deu-se à fuga pelo corredor do prédio e entrou no banheiro masculino do quinto andar. A única janela sem grades que dava à rua. Pulou através dela e continuou a correr, deixou atrás seu corpo desmanchado no chão, desintegrado, colado à calçada. Pouco tempo depois, parou de correr e perdeu a noção de onde estava.
Maria começou a lembrar das imagens que tinha vivido de forma estranha. Relembrou o tormento desses últimos meses e começou a rever os lugares que formaram parte desse inferno. Na sua última passagem pelo mundo material, o quarto do hospital psiquiátrico, deparou-se com alguém.
- Olá Maria, lembras de mim? Estava esperando-te. Tu foste a única a me ver na Praça Central ao lado da estátua. A partir desse momento tentei falar contigo através dos sonhos ao que reagiste com medo. Tentei falar através da boca do teu marido e o apagaste. Tentei falar pela boca da tua colega e me calaste. Tentei me expressar no quarto. Nunca quis fazer-te mal. Precisava da tua ajuda, mas fugiste. Agora, podes seguir teu caminho. Não podes me ajudar. Eu deverei continuar aqui indefinidamente.