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cronicas-->10. EU AINDA PEGO AQUELE CACHORRO -- 19/09/2002 - 06:01 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Calma, irmãos! Não se trata de nenhuma expressão de raiva. Ocorre que passei boa parte da minha vida trabalhando no canil da Prefeitura.

Quando desencarnei, vinha com a consciência atormentada pelo fato de haver eletrocutado milhares de animais sem dono, quase todos com excelente saúde.

Em outros países, teriam servido para alimentação das pessoas. No Brasil, eram transformados em sabão, sem mais nem menos.

Mercê dessa vida inglória, caí na escuridão, não me valendo sequer as muitas lições que ouvira dos veterinários, segundo as quais não havia como manter tão extensa população canina solta nas vias públicas. Explicavam mas não justificavam.

Ali, nas trevas daquela caverna particular, ouvia os latidos sonoros que vinham de fora, como a me prevenir quanto a correr forte risco se me atrevesse a pór o nariz para fora.

Depois de alguns anos - o que só fiquei sabendo muito depois -, cheguei à conclusão de que os homens deveriam castrar os machos ou esterilizar as fêmeas, o que não cumpriria a letra da lei natural mas permitiria aos bichos conservar a vida e a alegria de respirar o ar fresco das manhãs dos dias tépidos.

Um dia, cessaram os latidos. Compreendi que talvez houvesse sido perdoado. De repente, porém, aquele grito assustador:

- Eu ainda pego aquele cachorro!

Tomei a ameaça a sério e me cobri com a pele do animal. Lídimo fenómeno de licantropia, se assim posso dizer. Comecei a rastejar de quatro, farejando as partes mais profundas da caverna. Juro que a cada nova intimidação, sentia o rabo entre as pernas, temeroso de que poderiam capturar-me e dar-me o mesmo tétrico destino que eu dera aos cães.

- Eu vou pegar aquele cachorro, qualquer hora!

A voz era poderosa e ressoava nas profundezas da escuridão.

O que mais me assustava não era o fato de morrer, pois sabia que morto me encontrava. O que me fazia tremer era a perspectiva de renascer como cachorro, ainda que me passasse pela mente a possibilidade de ser acarinhado em colo de alguma senhora da alta sociedade. Achava até justo que me programassem morrer sob o guante da lei, mas voltar cheio de pelos e de pulgas, sem raciocínio e sem livre-arbítrio, apenas sob o domínio do determinismo das reações meramente irracionais, instintivas, era como que manter-me naquele antro pela eternidade.

Foi assim que comecei a suspeitar de que os latidos e as vozes eram criações minhas, não existiam na realidade objetiva. Imaginei-me perante Deus, respondendo-lhe com toda a sinceridade:

"Senhor, estou completamente arrependido do rumo que dei à minha vida. Aceitei a tarefa como simples função burocrática, jamais receando receber os proventos da aposentadoria como herança do trabalho de extermínio. Não sei por que não me vêm à cabeça os bois, os coelhos, os porcos, os cabritos, os frangos, os peixes, os crustáceos e demais criações que me alimentaram. Também deveria sentir-me incomodado por esse fato, mas eu ouvi que `a carne alimenta a carne´ e me satisfiz. Se não estou destinado ao paraíso, aceito permanecer neste purgatório, mas sem perder a esperança de sair daqui um dia. Tenho a agradecer-lhe a oportunidade de meditar a respeito do bem e do mal, muito embora não me veja capacitado a fazê-lo com clareza e acuidade intelectual."

Assim que terminei aquela espécie de oração, fiquei maravilhado com o fato de poder recordá-la integralmente, regozijando-me muitíssimo por conter terminologia bastante sofisticada para minha paupérrima cultura de diplomado no Grupo Escolar.

Estava criando coragem, quando me repetiram a frase bem próximo da abertura, por onde começavam a entrar alguns fachos de luz:

- Aquele cachorro ainda irá cair no meu laço!

Levantei-me decidido e caminhei para fora. Dentro da mente, um pensamento definitivo:

- Se é verdade que dei morte aos cães e provoquei hecatombes de animais para me servirem de alimento, também é certo que meu organismo eliminou inúmeros seres pequeninos, bactérias, micróbios e vírus, porque todos os seres estão preparados, uns mais, outros menos, para exterminar os invasores. Não posso pensar diferentemente em relação ao serviço de prevenção das zoonoses. Se estivesse totalmente errado, também estariam os que vacinam, os que jogam inseticida nos bueiros, os que extirpam as pragas provocadas pelos roedores...

Assim que me vi livre daquela atmosfera viciada e fétida, deparei-me com um senhor de longas barbas brancas e de poderosa voz:

- Cachorrão, por que você demorou tanto a me atender as sugestões? Venha de lá um abraço. Quero levá-lo pela coleira para a colónia em que receberá tratamento adequado, já que está perdido de sarna. Mas isso tem cura.

- Quem é você, amável criatura?

- Eu sou um pobre trabalhador municipal antigamente encarregado de executar as reses no matadouro. Fui enviado para recebê-lo quando despertasse do transe causado pelas vibrações hauridas das vítimas e concentradas em seu coração. Nada que todos os homens não conheçam, apesar de muitos nem perceberem o problema, enquanto outros se esforçam por livrar-se intuitivamente de tal sofrimento moral.

- Essa história de coleira...

- Sentido figurado, meu caro, como quase tudo que lhe perpassou pela cabeça. Vai chegar a hora de você refletir a respeito das pessoas com quem conviveu e com quem ficou em débito. Mas já houve suficiente purificação dos pecados mais graves. O que ocorreu é que você não tinha como ressarci-las dos prejuízos. Agora irá meditar sossegadamente até capitalizar os ensinamentos que lhe serão fornecidos relativamente às hesitações para enfrentar de peito aberto a verdade.

- Posso ficar seguro de que não irei voltar como cachorro?...

- A metempsicose só existe na imaginação dos homens, principalmente daqueles que se sentiram animalizados entre as encarnações e levaram tal impressão consigo.

Naquela altura, mal compreendi a palavra metempsicose, mas não tive como refletir no corolário das inferências do raciocínio, uma vez que as emoções daquela hora me incitavam febricitante reação de alegria e de paz, entendendo desde logo que fora aquela prece que me libertara do cativeiro.

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