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Cronicas-->Deve o paciente saber de tudo? -- 25/06/2000 - 10:11 (FAUTH) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
DEVE O PACIENTE SABER DE TUDO?



Todos os enfermeiros, na verdade auxiliares de enfermagem, que me acompanharam durante os quinze dias da primeira cirurgia tinham um traço comum que só agora descobri qual era: uma sombria cumplicidade.

Uma cumplicidade acompanhada de um medo fora de propósito, posto que, em princípio, estavam ali para me ajudar. Mas hoje sei que tinham medo de minha desconfiança. Tinham medo que eu desconfiasse de algo que sabiam e não poderiam me contar.

Primeiro veio aquele rapaz boa praça. Depois um senhor, também gente boa. À tarde uma crente que me chamou bastante a atenção. A gente conhece um crente a cem metros de distància: um saião comprido, um coque ou cabelo solto até depois da bunda, cabelos no sovaco (se fosse posível perceber), pronto: crente das fervorosas. As mulheres são mais fáceis de perceber do que os homens, pois são aquelas que conseguem uns vestidos que já vêm com as mangas compridas, como se fossem roupas de bebê tamanho gigante. Nunca vi uma loja que vendesse tais roupas, mas elas encontram. Os homens são mais dissimulados. Basta-lhes uma calça e camisa social mal acabados, mal coloridos, mostrando a pobreza de nosso povo. Coloque um deputado da assembléia federal - que também usa terno e gravata - ao lado de um crente da Assembléia de Deus e o leitor saberá do que estou falando. Mas isso é assunto para outra história. Voltemos à enfermeira crente.

Era a única de saia branca. Todas as outras usavam calça. Tratava-se de uma senhora simpática, perto dos seus sessenta anos. Foi a primeira em que verifiquei um quê de mentira e fingimento. Talvez por achar absurdo vir de uma crente um olhar falso, mistura de medo com alguma outra coisa que não consigo descrever. Como se ela soubesse de algo sobre mim que não pudesse me contar. Várias vezes olhei para ela e percebi que desviava seu olhar, como se, me olhando nos olhos, pudesse deixar escapar aquilo que escondia de mim.

Comecei então a observar os outros enfermeiros que vieram antes e lembrava de um certo ar de falsidade. Eles também sabiam de algo que não podiam me dizer. Talvez eu estivesse meio neurótico, talvez tenha pego um cisma qualquer. Mas depois eu saberia que tudo aquilo tinha uma razão verdadeira.

A enfermeira da noite era uma senhora baixinha que eu já vira em algum desenho animado do Pernalonga. Essa foi a que mais deixou transparecer que havia algum mistério. Quando eu a olhava na tentativa de descobrir algo, ela vinha com uma pergunta para me tirar de tempo: "Você é do Rio?" Como eu pensava que essa desconfiança era coisa da minha cabeça, acabava caindo na dela.

Minha operação não foi das comuns. Uma apendicite com sintomas a mais que levaram o cirurgião a cortar abaixo do umbigo, em vez do clássico pequeno cortezinho do lado, simples. Ao abrir a barriga, uma apendicite, intestino perfurado, infecção grave, reação alérgica de minha parte à anestesia geral e estava completo o quadro: uma operação que duraria uma hora, no máximo, deixou-me aberto durante cinco horas naquela mesa. Como nada mais foi perguntado e nada mais foi me dito, era até aí que eu sabia. Mas... E aqueles olhares?

Eram olhares que sabiam das coisas. Olhos que saíam da frente dos meus quando eu tentava desvendar o que estava acontecendo. Algumas vezes cheguei a perguntar: "está tudo bem?" E respondiam com a maior naturalidade, fingindo não entender minha pergunta. Mas eu não estava satisfeito.

Seria um càncer e o médico apenas aguardava minha recuperação para comunicar-me minha triste condição? Seria algo menos grave, mas nem por isso menos chato, como ter que usar a bolsa de colostomia para o resto da vida? Era isso!

Eu pensava que só poderia ser algo desse nível. Por que motivo a crente evitava o meu olhar? Comecei a observar o ritual dos enfermeiros que, de tempos em tempos, vinham até mim. Era sempre a mesma coisa o tempo todo.

Primeiro entravam no quarto após duas batidinhas na porta que nunca entendi. Educação? E se eu gritasse: "não entre!", iriam respeitar? Qual o objetivo daquelas batidinhas? O que poderia estar fazendo um operado, num leito de hospital, com dois frascos de líquido na veia, todo costurado? Poderia eu estar pelado? Acho que é isso que se pensa quando se dá duas batidinhas na porta antes de entrar. Mas o engraçado é que as pessoas, inconscientemente talvez, parecem loucas para encontrar as outras nuas, tirando meleca do nariz ou numa atitude daquelas a que nos entregamos quando temos a certeza absoluta de que estamos sozinhos, pois dão duas batidinhas e entram no aposento sem nos dar a chance de sequer dizer "não, não entre agora!" Por isso nunca respondi "pode entrar", porque não há tempo para a resposta. Um rápido toc-toc e assisto ao giro da maçaneta.

Após entrarem no quarto, começava o ritual silencioso, onde eu tentava pescar, nos olhares, o motivo daquela cumplicidade sombria. Ninguém dizia nada além de "boa noite", "hoje fez um calor" ou "estica o braço um pouquinho para eu medir sua pressão". Nem o resultado dessas medições era informado a mim. Ora bolas, o corpo é meu, a vida é minha, por que não me dizem das minhas condições de temperatura e pressão? Fico achando que faz parte dessa coisa terrível que estão escondendo e que depois vim a saber do que se tratava, pois se havia algo tão grave (que eles sabiam), uma pressãozinha diferente não significava nada.

O ritual começava com um cumprimento simples como "boa noite" seguido da fatídica pergunta "tudo bem?" Que não tinha intenção alguma senão saber se eu ainda estava vivo. Fosse qual fosse, minha resposta sempre seria: "tudo bem". Era aí, logo na entrada, que eu lançava meu olhar perscrutador no enfermeiro da vez. E era justamente aí, também, que acontecia a primeira desviada de olhar. Eu estava neurótico, só poderia ser isso. Por que eu queria que continuassem olhando pra mim? Eles tinham mais o que fazer do que ficar admirando esse meu charme latino. O desvio do olhar era sempre na direção do soro e, não sei por que diabos, sempre havia o que mexer ali.

Entravam sempre com uma bandeja de equipamentos: um aparelho de pressão e um termómetro. Às vezes algum potinho com algum comprimido. Analisavam o soro, tiravam a pressão e colocavam o termómetro no braço. Depois, a pressão era anotada, o aparelho posto no lugar. Vinha, então, um momento especial e de concentração: era a contagem dos batimentos cardíacos. Interessante como a maioria não conseguia contar direito esses batimentos. Alguns ficavam um minuto contando, burilavam os dedos no meu pulso, ficavam mais um minuto, e isso, às vezes, acontecia quatro vezes. A velhinha com cara de desenho animado sempre me fazia uma pergunta enquanto estava com os dedos no meu pulso. Eu a respondia, claro, mas tinha a nítida impressão de que ela não prestava a mínima atenção. Mas era esperta: com tantos doentes para cuidar, nunca repetiu a mesma pergunta. E essa pergunta, agora lembro, sempre era feita na hora do pulso.

Era nessa hora, também, que eu olhava bem na cara dos enfermeiros em busca daquilo que tão bem escondiam e que só agora, prestes a fazer a operação de reconstrução do intestino, vim a saber do que se tratava.

Certa noite, de madrugada, um enfermeiro sinistro que nada comentava pediu a parte de esportes do meu jornal. Era do que eu precisava.

- Só se você me disser o que está acontecendo. - Encostei-o contra a parede. O quarto estava escuro, eram cinco horas da manhã e ele estava querendo algo que só eu parecia possuir naquele momento. Agora eu descobriria o que tanto escondiam de mim.

- O que está acontecendo? De que planeta você é? Hoje se o Guarani empatar, leva. - Respondeu com a naturalidade que julguei cínica demais. Contou minha pulsação por três vezes. "Além de cínico, incompetente", pensei.


- Não, amigo. Você sabe do que estou falando. Aliás, todos os enfermeiros estão sabendo, eu não sou otário, sabia?

- Sabendo de quê? - disse fingindo tão bem que quase me convenceu. Mas fui franco, direto e firme:

- Se você não parar com esse fingimento infantil e não me disser o que tenho que ninguém tem coragem de me dizer, não lhe emprestarei o jornal.

- Mas, senhor, não sei do que está falando!

- Então nada de caderno de esportes. E sabe do que mais? Tomara que o Guarani perca!


Acabei por desistir dos enfermeiros. Continuei encarando os olhares e observando as atitudes descaradamente fingidas. O enfermeiro ficou mais sinistro ainda e quando, às vezes, ia tirar-me o pulso pela terceira vez, eu indagava se não ia mesmo me contar, e ele, impassível, respondia que de nada sabia. Resposta típica de quem sabe de algo que não quer dizer.

Mudei o foco para os médicos, mas... Neles eu não via absolutamente nada. Ficava impressionado como podiam ser tão profissionais. Somente os auxiliares de enfermagem deixavam escapar aquele ar estranho. Cheguei a perguntar ao médico que me operou se eu estava com alguma coisa grave que ele não queria me contar, mas ele sorriu profissional e disse que se eu tivesse alguma coisa já teria me contado. Fiquei em casa durante três meses até voltar para a operação de recontrução, e ninguém me disse nada até que voltei ao hospital.

Agora tudo parece normal. Não tenho càncer e amanhã vou tirar para sempre essa maldita bolsa de colostomia. Tudo parece normal, a não ser por um detalhe: os enfermeiros e aquela cumplicidade antiga. Mas o que mais me impressionou foi o fato da cumplicidade vir de enfermeiros novos. Estagiários que mal sabiam trocar o frasco do soro; precisavam da ajuda da enfermeira chefe.

Eu já havia percebido aquele clima de que sabem de algo que não sei logo pela manhã. Mas foi à noite, com um desses novos enfermeiros, que pude descobrir.

Prestei atenção a suas atitudes desastradas de iniciante para seguir o ritual (ou seria nervoso por deter informação que eu não poderia descobrir?). Começou colocando o termómetro. Em seguida, segurou meu pulso e contou mentalmente. Depois repetiu-se a cena (por que essa incompetência de todos os enfermeiros?). Contou de novo. Retirou o termómetro, anotou meu estado não febril e ficou parado diante de mim. Nada mais havia o que fazer e ali estava o enfermeiro parado. Estranhei. Percebi que era realmente novato porque não mediu a pressão, isto foi feito mais tarde, por outra pessoa.

Ele ali parado e eu pensando. O que estaria esperando? Coloquei a mão embaixo do braço para me certificar de que realmente havia retirado o termómetro. Havia. Mais nada a fazer. Olhei para ele. Ele olhou seu relógio de pulso, depois minha barriga. Olhei para minha barriga e não vi nada. Olhei para ele de novo. Desviou seu olhar para a direção da janela, depois para o relógio, depois para minha barriga novamente. Olhei para ele e, incrível!, ele disfarçava!

Era isso! Era o disfarce, o fingimento que eu tanto percebera há três meses! Agora eu faria a pergunta que confirmaria que eu não estava neurótico durante todo aquele tempo:

- Você está contando quantas vezes eu respiro? - Perguntei sorrindo mais das minhas tolas inquietações que do mau disfarce do enfermeiro neófito.

- Você percebeu? - Perguntou o rapaz genuinamente ingênuo.

- Não era pra ter percebido?

- Não. A gente precisa disfarçar, pois quando o paciente percebe, geralmente influi no resultado, porque quando prestamos atenção em nossa própria respiração, acabamos por respirar diferente.

Agora eu deveria estar satisfeito. Compreendi todos os olhares e mais alguns. No entanto, nunca ficamos satisfeitos com o que conquistamos. Como na história da centopéia que, ao ser perguntada como conseguia mover a perna 79 ao mesmo tempo em que a 23 e a 7, nunca mais conseguiu andar, assim não sei mais como respirarei diante dos enfermeiros que, amanhã, chegarão com aquele ar de quem pensa que não sei que ele finge contar meus batimentos cardíacos pela segunda ou terceira vez quando, na verdade, observa quantas vezes meu tórax sobe e desce.

Agora eles notarão que eu sei um segredo que não vou contar. Pelo menos vai ser divertido, no último dia aqui no hospital, virar para um deles e perguntar:

- E aí, quantas vezes eu inspirei e expirei em um minuto?

Mas o que fica guardado é o fato da minha paranóia não ter deixado aquele moço, que passara a noite em claro, ficar sem saber das novidades do seu time, o Guarani, que jogaria no dia seguinte e que, numa daquelas coincidências inexplicáveis da vida, perdeu. Talvez seja por essas e outras que o paciente não deve, mesmo, saber de tudo.


FAUTH

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