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Ensaios-->A higiene e a morte -- 11/05/2008 - 15:35 (Ana Lúcia Magela) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A HIGIENE E A MORTE - O MIASMA E A ONDA DO PÚTRIDO
Ana Lúcia Magela
O 'medo urbano'
O fenômeno da higiene, mais particularmente a higiene coletiva, já era preocupação antiga das comunidades humanas. As pesquisas arqueológicas na ilha de Creta revelaram descobertas de vasos sanitários com descargas, datados de 1.400 anos a.C. No Egito, em 2000 a.C. documentos históricos falam do hábito dos cabelos serem aparados e as construções megalíticas das pirâmides revelam a preocupação, também ritualística, com o destino aos cadáveres. Entre os hebreus a circuncisão era praticada por motivos também de higiene.
Alguns higienistas se notabilizaram pelas suas prescrições sobre a matéria. Johann Peterfrank, na Alemanha de 1745, dizia que 'A miséria dos povos é a mãe das doenças' e o Professor Pavia elaborou entre 1799 a 1821, em seis volumes, o Sistema Completo de Polícia Médica. Os déspotas esclarecidos consideravam que um cidadão sadio e satisfeito era o melhor investimento do Estado. O exército da saúde, composto pela polícia médica era formado por soldados, médico higienista, sanitarista e sifilígrafo, já no desenvolvimento das urbes modernas, caracterizando aquilo que Foucault vem a chamar de 'medo urbano'. O controle se fazia sobre as moradias e hábitos alimentares, mas é enfatizado, sobre os párias sociais - mendigos e prostitutas e as doenças venéreas, particularmente a sífilis, eram motivo de investimentos do Estado moderno. O jornal A República, de 24/10/1919 (1) diz:
“Há problemas sociais de relevância que não podem esperar tardia solução. Por toda parte procura-se enfrentá-lo com a máxima presteza como está insistentemente reclamando a organização social. A syplilis, por exemplo, é um desses grandes males que affligem os povos e que estão sendo combatidos enérgica e eficazmente pelos hygienistas modernos, prestigiada fortemente pelos poderes públicos. Não se desconhece os terríveis males que esta perigosa moléstia causa a mocidade, que
permanentemente está sujeita à sua fácil contaminação, si não forem tomadas as providências médica. É preciso combater-se sem considerações de qualquer ordem, sem o contemplativismo prejudicial, a moléstia que ahi está ocorrendo para o aniquilamento physico dos indivíduos e ameaçando á futura organização da nossa sociedade'.
A preocupação com a higiene passa a ser obsedante com a teoria dos miasmas e a morte também temida pela possibilidade de contaminação dos vivos.

A higiene e a morte

Durante um longo período de sua história a humanidade cultuou a proximidade dos vivos com os mortos. Os cemitérios eram próximos às casas, ou dentro das igrejas. A vizinhança física de um morto ilustre, ou estar enterrado ao lado de um mártir, ídolo ou santo assegurava, pelo menos, duas vantagens: o contágio da virtude e a defesa do 'inferni horror'.
O morto contíguo deveria ser boa companhia ao morto recente, dai o 'ad sanctos' ser o enterro aspirado por todos os homens, uma vez que os infernos respeitavam os santos e, ao lado destes, o morto teria seu caminho iluminado. Esta aliança do túmulo estabelecia uma vizinhança com o sangue dos santos que faria absorver a 'virtude que purifica nossas almas como o fogo' (2). Como os mortos ilustres, particularmente aqueles considerados santificados pela Igreja e também os cidadãos de posses fossem enterrados dentro das igrejas, próximos ao altar-mor, em breve elas tornaram-se verdadeiros cemitérios.
Todavia esta proximidade dos mortos passaria a ser dificultada, incômoda e hostil pelo grande número de enterramentos, com o processo de urbanização, particularmente, em épocas de epidemias. Os adros das igrejas passaram a receber os corpos e o cemitério interno estendeu-se ao exterior das naves. Mas o movimento higienista iria alterar substancialmente estes costumes.
Por volta de 1750, na Europa, começava a esboçar-se uma preocupação obsedante com o mau cheiro, tanto dos mortos quanto dos vivos. Os narizes tornaram-se extremamente sensíveis e a valorização do olfato seria determinante neste novo comportamento social. Que questões se escondem sob esta nova sensibilidade? Quais os significados e eficácia social desta nova ritualização da vida quotidiana? São estas perguntas que este texto pretende, não responder, mas estimular a reflexão, com o intuito de aproximar-nos da compreensão dos ritos mortuários arcaicos, que podem ser identificados, como presenças, na nossa realidade contemporânea.

O miasma

Süskind retoma, com caráter ficcional, o mau cheiro da Europa do século XVIII:
'Na época em que falamos reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje. As ruas fediam a merda, os pátios fediam a mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de ratos: as cozinhas a couve estragada e gordura de ovelha: sem ventilação, salas fediam a poeira, mofo: os quartos a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor azedo dos penicos. Das chaminés fedia o enxofre: dos cortumes, as lixívias corrosivas: dos matadouros fedia o sangue coagulado. Os homens fediam a suor e a roupas mal lavadas; da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos, quando já não eram bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas. Fediam os rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios. Fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina e a rainha como uma cabra velha, tanto no verão como no inverno. Pois à ação degradadora das bactérias, no século XVIII, não havia sido ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer que não fosse acompanhada de fedor.'( 7 )
Todavia, a descrição de Süskind sobre a generalização do mau cheiro de todos os homens parece, na história da teoria do miasma, mais diferenciada. O espírito burguês detectou, numa sensibilidade olfativa, o odor dos trabalhadores e dos pobres como mais pestilento.
Eram, seguramente, insalubres as condições de trabalho da época. Grande número de pessoas, confinadas em espaços restritos, nas fábricas, com ventilação deficitária e altas jornadas de trabalho, criavam condições ideais para disseminação de doenças. É importante lembrar que estes trabalhadores, operários assalariados, que incluíam também as mulheres e crianças, tinham sido camponeses. Até então viviam e trabalhavam em contato direto com a natureza, em espaços de dimensões amplas e a alimentação e a nutrição eram bem mais satisfatórias. Banidos dos campos, expropriados de seus domínios, quando a agricultura entrou em baixa e os campos passaram a ser utilizados para a pecuária, foram reagrupados pela Revolução Industrial, que utilizou a mão de obra para o trabalho fabril. Muitos deles não foram mesmo absorvidos pelas indústrias incipientes e, considerados 'desadaptados' urbanos. Restou a estes a vagabundagem e a mendicância; alguns milhares foram mesmo executados, em 'limpezas' sociais.
A este proletariado a burguesia atribuía um odor típico e os incluía no rol das pestilências. Vistos como mais susceptíveis às infecções, cujas causas, de desconhecidas, passaram a gravitar em torno do mau cheiro, em breve se estabeleceu a relação entre pobreza e epidemia. O mau odor das multidões passou a ser considerado o perigo maior.
O conceito de imundice, determinante das doenças estendeu-se aos socialmente excluídos e, judeus, prostitutas, homossexuais e trabalhadores passaram a sofrer a intolerância olfativa do espírito burguês da época. Acreditava-se que o trabalhador não só cheirava mal, como também era incapaz de perceber seu próprio odor nauseabundo, pois teria os sentidos embrutecidos pelo trabalho árduo, que entorpeceria sua sensibilidade olfativa.
Os estudos do odor tornaram-se obsedantes e o ar foi eleito como elemento fundamental do processo de decomposição. Considerado como substância elementar que compõe o corpo vivo e dele escapa toda vez que há degradação, o ar teria , em suspensão, elementos que se destacavam dos corpos. Assim, era impregnado de componentes animais, vegetais e telúricos. Grenouille, personagem de Süskind, em O perfume, passa vários anos em uma gruta e é tratado , quando de lá sai, por um nobre que diagnostica sua doença a partir da teoria do Fluido Telúrico Letal. A terapêutica instituída para a recuperação de Grenouille consistiu em colocar o paciente em um local onde a ventilação era introduzida por um rudimentar aparelho que produzia 'ar vital' e que o livraria do 'gás letal'. A permanente corrente de ar purificadora era associada a uma dieta de ' sopa de pombas, pastéis de cotovia(...) pão feito de variedade de trigo especialmente alto, vindo dos Pirineus, leite de cabra montêsa e creme de clara de ovos de galinha criadas nos telhados de Paris.” ( 7 ) Enfim, tudo que não guardasse relação com o solo.
Os miasmas eram contagiosos porque oriundos da matéria em decomposição. O mau odor e a umidade promoviam a corrupção das partes líquidas das matérias orgânicas; estas eram liberadas sob a forma de pus e sangue putrefeitos; esta matéria tornava-se volátil e escapava sob a forma de moléculas nauseabundas, portanto, um processo circular.
Quando o miasma era exalado do corpo de um ser vivo doente e inalado por um outro sadio: 'produz-se uma interrupção da circulação da essência balsâmica do sangue por obstrução dos vasos, viscosidade dos humores ou feridas, pode triunfar a gangrena, a varíola, o escorbuto as febres pestilentas ou pútridas.' .(3)
Eis o miasma! A ameaça de 'asfixia' não era simplesmente privação de oxigênio, era vista como um fenômeno muito mais complexo e assustador. A teoria era, todavia, ainda imprecisa e coube aos químicos objetivá-la. Procuraram criar uma linguagem olfativa e, através de situações poluidoras, estabelecer uma escala de ares considerados respiráveis e pútridos. Estas iniciativas iriam passar à compulsão mórbida na identificação dos miasmas mortíferos, provocados pela degradação do corpo.
A vigilância olfativa passou a ser um comportamento instituído e, na priorização dos sentidos, nenhum deles deveria competir com o olfato.

O higienismo

Jean-Noel Halle, em 1794, foi encarregado de proceder a detectação dos odores pútridos das duas margens do Sena, quando ocupava a cadeira de higiene pública em Paris. Estava iniciada a batalha higienista pela desodorização. A partir do princípio que o ar que circundava o pobre era mais contagioso do que aquele que circundava o rico, passou-se a propor medidas de desodorização segundo a condição social do homem.Tais medidas redundaram em algum saneamento dos locais de trabalho, através de aeração das fábricas, mas todavia, não conseguiram realizar o propósito burguês - tornar o trabalhador inodoro.
O discurso higienista da época, na Europa, passava a valorizar a transparência da pele, a brancura das pintura do ambiente, como sinais saudáveis de pureza. A normatização da higiene concretizou-se na identificação dos espaços. Grandes janelas abertas, vida ao ar livre, cores claras nas vestimentas, aeração do espaço doméstico passavam a ser imperativos. É interessante atentar para o fato das casas de prostituição serem, até hoje, designadas na França como 'maisons closes', símbolo pretérito de doenças, porque fechadas, não aeradas.
Os leitos, antes partilhados por muitos, tornaram-se individuais. Também com os leitos hospitalares já havia a preocupação de que não abrigassem mais de um ocupante, prática comum antes do movimento higienista. Tudo o que favorecesse o comércio miasmático era, a partir dai, proscrito.
Todavia, o caráter ideológico se faria presente na identificação dos espaços, particularmente nas artes burguesas do século XVIII. Os ricos eram retratados ou descritos em locais ensolarados, com o horizonte aberto, nos jardins, vestindo cores claras. Quanto aos pobres eram reservados os espaços fechados, as residências de tetos baixos, atmosferas pesadas, estagnações, sombras e fedores.
O contato tátil torna-se um comportamento fóbico. Esta repulsa é retratada por Corbin (3), no episódio em que o Dr. Juré, em l851 descreve o odor do quarto de uma paciente que deveria ser examinada. O medico mantém, durante todo o tempo da consulta, um lenço protegendo o nariz. É desta época a invenção do estetoscópio que passava a dispensar a proximidade do doente, durante os exames.
A assepsia higienista resume-se à aplicação de substâncias aromáticas, sobretudo as voláteis e quentes. Acreditava-se que os óleos facilitavam a circulação das essências balsâmicas do sangue, e por muito tempo, foi instituída uma verdadeira terapêutica dos odores.
A pestilência fétida foi identificada com a desordem. Que desordem maior poderia haver senão a morte? Daí a proximidade do doente, do moribundo e, sobretudo, do morto tornar-se repulsiva. A decomposição do corpo morto e os miasmas emitidos por ele precisavam ser purificados. Ritos, que visavam devolver ao ar empestado por um morto seu caráter saudável, passaram a ser obrigatórios. As máscaras de couro, com enormes receptáculo na localização do nariz, onde eram embutidos trapos banhados em essências perfumosas, eram acessórios imprescindíveis.
Os fiéis passaram a reclamar do cheiro das igrejas que freqüentavam e que recebiam os mortos ilustres e santos, próximos ao altar-mor. A vizinhança dos cemitérios incomodava-se e haviam relatos de pessoas morrendo às dezenas por se exporem a vapores mefíticos.( 6 )
Dos cemitérios, próximos às cidades, destacava-se, em Paris, o Saints Innocents que, anexo ao mercado de Halles, no século XVIII, recebia cadáveres já há oito séculos. Acusado pelos higienistas de liberar vapores insalubres, Les Innocents foi fechado em 1780 e, cinco anos após, foi desmontado, sendo conduzidos os restos de seus ocupantes para as Catacumbas, que podem ser visitadas hoje, pelos turistas em Paris, em Denfert-Rochereau.
Passou-se a prestigiar os jazigos individuais e familiares, cabendo a cova rasa, a vala comum, aos despossuídos. Assim, o movimento higienista privatizou a morte e estabeleceu a organização dos espaços a serem ocupados por ela e pelos seus sinais. Como movimento burguês, instituiu normatização, pautada numa ideologia hegemônica, de acentuada eficácia social. A morte e suas marcas entraram assim na ordem da modernidade, disciplinada e finalista, contrapondo ordem e desordem, como fenômenos antagônicos, 'limpando' a sociedade de tudo que a poderia empestar, varrendo as imundices e com elas os designados imundos.

O higienismo na modernidade

A teoria miasmática não resistiu às descobertas científicas da modernidade, mas teria ela também sido extinta do imaginário popular? Em recente entrevista, realizada com pessoas de terceira idade, numa pesquisa sobre ritos de morte, pudemos constatar, no seguinte depoimento, a presença da compulsão à onda do pútrido:
' Agora eu tenho uma coisa em relação à morte: se eu vou num velório eu tenho que chegar em casa, lá na porta eu tiro o sapato e tomo um banho inteirinho que tudo que ta em mim vai pra água! Lavo a cabeça. Lavo tudo. Não vou nem com roupa boa, tem que lavar tudo, cabeça, tiro o sapato, lá na porta. Lá no interior tinha muita terra no cemitério, podia contaminar, qualquer coisa não é? Mas, aqui é tudo limpinho! [Laurindo diz] Eh mãe! a senhora ta com medo da morte estar ai, com a senhora? Ta lavando(...) Laurindo falou mesmo, tenho medo da morte ta chegando perto de mim, ai eu vou logo lavando, lavando tudo (...) Sinto um pouco de náusea, um pouco de nojo, sabe? (...) Nojo também eu tenho. Engraçado, se estiver doente, se estiver vivo, se mandar eu tocar, pode ser fezes, o que for eu faço, depois eu desinfeto, eu tomo banho e não tenho nojo. Agora um morto, sequinho, limpinho, lá eu não ponho a mão. É uma coisa com a morte. No morto não,não, no morto eu não toco de jeito nenhum! Tem gente que apalpa, pega, não é? Acho que é o medo da morte. Acho que é ela mesmo.' (5)
É interessante observar neste discurso que a depoente percebe o racionalmente ilógico da situação e do comportamento, como uma incoerência. Já não está num enterramento da cidade do interior, onde residia, e onde havia muita poeira no cemitério, portanto, capaz de conduzir a poluição. O corpo morto pode estar'sequinho', 'limpinho' e mesmo assim ela não toca nele. 'Deve ser uma coisa com a morte', racionalmente inexplicável. Rodrigues diz: 'As práticas higiênicas imunizam mais as idéias que as coisas; os microorganismos patogênicos ameaçam mais a vida social que a orgânica e, por isso são objetos de ritos purificatórios' ( 7 ).
O imaginário é legado cultural que se dissemina pelos costumes e valores, transmitidos, em geral, pela oralidade e pelos comportamentos manifestos. Difere da imaginação que é a capacidade de inventar, criar e devanear, de caráter individual, portanto, diferenciada em cada ser humano. O imaginário pontua o coletivo, incorporado ao acervo cultural de uma dada comunidade humana. É paradoxal perceber que quanto mais nos comportamos como assepticamente modernos mais nos aproximamos dos grupos humanos primitivos, e que a diferença reside no fato de que eles conseguem organizar seus tabus num corpo de práticas mais homogêneo e os nossos apresentam-se fragmentados, misturados às práticas baseadas na racionalidade, manifestando-se, apenas em algumas circunstâncias. É o que nos diz Douglas:
' Nós tememos a patogenia transmitida através de microorganismos. Nossa justificação, geralmente, de os evitar através da higiene, é pura fantasia. A diferença entre nós não é que nosso comportamento esteja fundado na ciência e o deles em simbolismo. Nosso comportamento também carrega um significado simbólico. A diferença real está em que não levamos de um contexto para o próximo o mesmo conjunto de poderosos símbolos: nossa experiência é fragmentada. Nossos rituais criam muitos submundos pequenos, não relacionados. Os rituais deles criam um universo único, simbolicamente congruente.' (4 )
E quando se trata de profissionais da saúde? De pessoas com formação especializada em curar e cuidar, espera-se comportamentos e atitudes da ordem só da racionalidade, em virtude de sua formação científica. Estarão tais profissionais imunes ao medo da doença, da morte e de seus miasmas? A quem cabe os cuidados com o corpo do morto nas instituições de saúde? Estudos americanos relatam que estão encarregados de tais tarefas, em geral, as pessoas de mais baixo nível hierárquico na equipe de saúde, vale dizer, aos operacionais, que não têm alternativas outras, senão aquelas delegadas pelos escalões superiores.
O depoimento de uma enfermeira revela que o comportamento de tais profissionais pode também aproximar-se do fóbico, diante da possibilidade da poluição da morte: 'Eu cuido dele (o paciente) até a morte, sem problema, até mesmo dos terminais, mas morreu, não é mais meu trabalho. É com o pessoal do necrotério' O que esconderia, nas entrelinhas, uma fala aparentemente fria como esta? Só a racionalidade taylorista da divisão de tarefas? Uma outra enfermeira relatou: 'Assim que eu chego em casa minha preocupação é logo tomar um bom banho. Não é por nada, mas só pra me livrar do cheiro da doença e do ambiente pesado da clínica'.
Vigarello (8) relata a importância da evolução do emprego da água na história do homem, desde a concepção de que ela 'amolecia' os corpos, tornando as pessoas débeis, indolentes e mais sucetível às doenças, até o seu uso purificador. Este autor relata dados curiosos, naquilo que denomina de 'pastoral da miséria', que por volta de 1850 a média de banhos era de menos de um por ano, por habitante, na França de Luiz XVIII. Se Felipe V tomou seu primeiro banho aos sete anos, sob prescrição médica, e guardou repouso por todo um dia, se algumas sociedades não fazem usos freqüente de uma boa ducha, nós, de países tropicais apreciamos um bom banho diário mas, seguramente, a lavagem dos nossos corpos conserva um caráter ritualístico ao qual não estamos, muitas vezes, atentos.
O ambiente hospitalar é reconhecidamente séptico, mas o que dizer da obsedante atitude de higienização, tão freqüente entre os profissionais de saúde e, particularmente, dos enfermeiros, que vão desde a concretude da lavagem das mãos, comportamento higiênco reconhecidamente saudável, até os extremos cuidados na cozinha, com a tampa de um vidro de azeitonas, colocada de boca para cima, quando da retirada o produto de seu interior? Dai podemos observar mínimos atos que revelam a introjeção de valores miasmáticos e de compulsão pela ordem. Assim, a própria cama ou dos familiares, no reduto do lar, é muitas vezes feita com os cantos em envelope, como as do hospital!
A desordem, numa sociedade moderna e racionalista, coloca-se como a diferença que, para ser integrada, se é necessário domesticar. Como o convívio com ela é difícil, colocamos, entre ela e nós, mediadores e tentamos, a todo custo, de todas as maneiras possíveis, reduzí-la a uma ordem considerada socialmente salutar. Organizamos nosso dia, nosso material de trabalho, nosso espaço doméstico, nossa vida, para impedir que o fortuito, o estranho, nela penetre e nos apanhe de surpresa e a compulsão pela ordem pode chegar a extremos patológicos. É quando o saudável torna-se uma questão de doença. O imprevisto, a alteridade, não é uma impureza. É só o diferente, com o qual se é preciso aprender a conviver. Se sempre o sentimos como mácula, 'se a impureza é um assunto inoportuno, devemos investigá-lo através da ordem. Impureza ou sujeira é aquilo que não pode ser incluído, se se quiser manter um padrão' ( 4 ) Os ritos, mesmo aqueles engendrados pela modernidade, têm caráter mediador e terapêutico que tornam um evento angustiante ou estressante mais facilmente absorvível, mas nada assegura o banimento do caos. Integrar a desordem ao nosso quotidiano, percebendo a riqueza e a complementaridade que ela pode nos trazer, é relativizar o horror e hábil e sabiamente caminhar na corda bamba do viver, numa sadia, instável, perigosa e extremamente bela 'harmonia conflitual'


REFERÊNCIAS Bibliográficas

1- A REPÚBLICA. Prophylaxia da syphilis. Florianópolis, 24/out. 1919, p.02.

2- ARIÉS, P. O homem diante da morte. 2 ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, v.1, 1989.

3- CORBIN, A. Le miasme et le jonquille. Paris, PUF, 1992.

4- DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo, Perspectiva, 1976.

5- REZENDE, A.L.M. de et al. Ritos de morte na lembrança de velhos. Florianópolis , EDUFSC, 1997.

6- REIS, J.J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

7- RODRIGUES, J.C. Tabu do corpo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1983.

8- VIGARELLO, G. Le propre et le sale. Paris, Seuil, 1985.

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