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Ensaios-->O retorno tribal e a qualidade de vida -- 11/05/2008 - 17:57 (Ana Lúcia Magela) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O retorno tribal e qualidade de vida

Ana Lúcia Magela

O neo-tribalismo e a pós-modernidade

Às vezes a fala é incompreensível: ”é a zona de impacto!”, “dropar às direitas” “busco uma remada” “as ondas rolaram no outside do Baixio” “é o canal”. “É o lago olodúnico”, “Olodumaré em Yorubá”. “É a galera do carrinho”, ”vai sair do corrimão” “chegar no pico, fazer a sessão e desencanar”.
Adeptos do surf, membros do Olodum, praticantes de skate e tantos outros grupos “tribais” desenvolvem um código estranho, só compreendido pelos iniciados. Num momento o agrupamento é grande, a interação flui em fraterna solidariedade, há grande identificação entre os membros, os gestos, se observados com atenção, assemelham-se a rituais que parecem muito familiares a eles. Não se pode contar, todavia, que este grupo permaneça unido por muito tempo, nem que os seus encontros obedeçam a periodicidades regulares, são ajuntamentos de caráter pontual. Parece mesmo que a efemeridade das relações é um elemento que faz esta partilha de emoções ser de tamanha intensidade.
O que muda nos comportamentos de tais grupos que faz com que possam ser denominados de tribos? Não as tribos no sentido usual. As neotribos se põem como “condensações instantâneas, frágeis, mas que são objeto de forte investimento emocional” (Maffesoli, 1987:32). Esta “união em pontilhado”, de que nos fala Maffesoli, remete-nos à reflexão do ser-estar-junto e não ao dever-ser. Este último termo traz consigo a carga da obrigatoriedade, a marca do instituído, do produtivo. Já o ser-estar-junto é fenômeno carregado de vitalidade, não necessariamente ligado à produtividade, da ordem do instituinte.
Se o dever-ser pode ser exemplificado na relação homem/trabalho, como numa linha de montagem, o ser-estar-junto pode ser caracterizado, mesmo no ambiente de trabalho, mas, ao mesmo tempo, fora dele. Um ”não-trabalho” dentro do trabalho, como na hora do cafezinho, na maledicência, na 'conversa fiada”, na brincadeira que abre espaço de intervalo na rotina produtiva, que re-liga os membros da tribo uns aos outros, criando um laço social diferenciado.
Esta força vital, identificada no tribalismo, foi sempre cerceada e combatida no auge dos tempos modernos como desvio e vagabundagem. Nestes tempos o culto ao instituído era o pensamento e a prática hegemônicos. Um forte valor atribuído ao futuro, ao projeto, guiou o pensar e o fazer humanos, como característica da sociedade moderna. Era esperado, e mesmo exigido, do indivíduo a sua fusão a um partido, a um sindicato, a uma igreja, enfim, a uma associação ou grupo estável, ao qual se ligava por pressão social e por introjetar a idéia de que o desenvolvimento futuro justificava os sacrifícios do presente. Acreditávamos que este futuro era, necessariamente, bom e desejável e que deveria ser alcançado através de disciplina, da ordem e do trabalho. O império do dever-ser invadiu todos os espaços, higienizou e racionalizou o viver humano. Nenhum dispêndio inconsequente era bem visto. Esta moral obreira pode ser encontrada nos ditados populares tais como: “o trabalho enobrece”, “Deus ajuda a quem cedo madruga”, “tempo é dinheiro”, “a união faz a força” “o Brasil é o país do futuro”, “o amanhã será melhor do que hoje” “quem espera sempre alcança”...
As marcas do macro-social, das superestruturas impregnaram as relações dos homens, uns para com os outros e deles para como o eco-sistema. De caráter definidor da vida social decorreu um sentimento de impotência em face da absolutização que assumia a força instituída, fosse ela representada pelo Estado, pela igreja, pelo partido, pelo sindicato ou agremiação de qualquer ordem. Acreditou-se nos compromissos duradouros, que se impunham com poder de coerção, se não de direito, mas simbólico. O filme “Tempos modernos” com o excelente Carlitos é uma impactante caricatura desta época.
Lentamente evapora-se a cortina de fumaça e começa-se a perceber que algo escapa a este domínio. Aqui e ali, de maneira pontual, a sociedade dá manifestações de que não mais se deixará tangir. Surgem a contracultura, o feminismo, os movimentos estudantis inspirados em 68 que acreditaram poder mudar o mundo ao afrontar um tipo de vida conservador. Não conseguiram, mas não há como negar que foi um momento muito rico da história social humana e que também foi marcado por todos os exageros próprios de tempos de crise e de reviravoltas sociais.
A idéia imperativa da vida social coletivizante perdia sua força hegemônica e abria brechas por onde se infiltrava o descrédito nas idéias absolutas. Os mega discursos desconstroem-se, já não se fazem plenos. Minados e corroídos, nos parecem velhos e insuficientes. Podemos divisar os sintomas da descrença nos grandes relatos explicativos tanto da ciência, quanto da política, da economia, da religião e da arte, entre outros.
Na área da saúde retorna-se, com intensidade, a alternativas como curas místicas, formas de conhecimentos esotéricos, dietas e terapêuticas menos agressivas Também reaparecem as consultas aos oráculos, a arte kitch, as formas 'alienadas' de convivência social, os pequenos grupos de interesse, enfim, retornam até mesmo os conhecimentos pré-científicos, varridos da história como formas menores, como lixo, no afã de se organizar o mundo. É assim que até mesmo dentro das pretensas ciências exatas, como a economia, pode-se encontrar o uso de florais, o mapa astral e a consulta ao I Ching guiando os investimentos no mercado de capitais.
Este novo tempo, chamado às vezes de pós-história, de pós, ou transmodernidade, não é um mero modismo intelectual, nem uma forma tediosa de olhar o futuro sem utopias, mas nos mostra que já não é possível adiar os sonhos, que na modernidade, permaneceram guardados. O progresso almejado era uma espera imobilizante e o presente precisa ser vivido com intensidade.
Os comportamentos tribais, com acentuada marca no presente, a errância, a dispersão, a fluidez do ser-estar-junto sem objetivo pré-determinado, sem intencionalidade, mas pelo simples prazer de desfrutar do instante, pode parecer a nós “modernos” ausência de compromisso, falta de perspectivas de um ideal. As neotribos não se regem pelas categorias às quais estávamos habituados na modernidade produtivista. Na modernidade a dominante é social, marcada pelo trabalho e racionalidade, já no ajuntamento tribal, sob os ventos da pós-modernidade, a dominante é afetual, marcada por um sentimento de pertença, de coesão grupal.
O neotribalismo “recusa reconhecer-se em qualquer projeto político, não se inscreve em nenhuma finalidade e tem como única razão ser a preocupação com um presente vivido coletivamente” (Maffesoli 1987:105). Não se ocupam com o enfrentamento direto, frontal com as normas instituídas, assim, se pode dizer que os comportamentos tribais são mais ardilosos que agressivos. Embora, possam agredir o nosso olhar de esteta pequeno-burguês, as tribos, com suas indumentárias extravagantes, fora do convencional, esta “agressividade” feita de conformismos, sarcasmos, astúcias, é passiva, “zen”, apenas uma ostentação de diferença, sem militância e como lembra Maffesoli (1984:35), sobre a fecundidade da indiferença: ”Existe uma passividade ativa muito mais subversiva do que qualquer ataque frontal”.
A tribo desenvolve uma quase autonomia à margem do tecido social.“Esta autonomia, ao contrário da lógica política, não se faz ‘pro’ ou ‘contra’. Ela se põe, deliberadamente, à parte. Isto se exprime por uma repugnância ao enfrentamento, por uma saturação do ativismo, por uma distância frente ao militantismo; todas, coisas que podem ser observadas na atitude geral das novas gerações frente ao político” (p.130).

Constituindo-se à margem e astuciosamente evitando o confronto, os ajuntamentos tribais precisam reforçar a coesão interna, embora efêmera. Daí o recurso dos signos de reconhecimento, que Maffesoli aproxima às máscaras, lembrando as “personas“ do antigo teatro grego. As máscaras se estendem, desde as formas mais visíveis, pela indumentária, gestual, códigos próprios, numa ostentação da diferença a tudo que é repudiado pelo grupo, até outros elementos menos visíveis, como a partilha dos segredos.
“Existe um laço entre o mistério, o místico e o mudo; este laço é o da iniciação que permite partilhar um segredo. Que este último seja insignificante ou mesmo, objetivamente inexistente, não é essencial. Basta que, embora de maneira fantasmática, os iniciados possam partilhar qualquer coisa. É isto que lhes dá força e dinamiza a ação”. (p.129)

Partilhar o segredo, independentemente da importância que este possa ter, é um ato fundador a ligar aos membros da tribo, uma partilha iniciática que fortalece a solidariedade grupal. Portar metaforicamente uma persona significa criar a identificação de seus membros e resguardá-los, tal como no teatro grego a personagem era constituída através da máscara usada pelo ator, enquanto o ator ficava protegido, não identificável, cedia seu lugar à personagem. Convêm observar o atributo de preservação e resguardo que a máscara cria, antes de, do fundo de nossa moral produtiva, taxarmos o seu uso de perversão e desonestidade.
O retorno tribal, em outras bases, não significa fuga num nirvana artificialmente construído, é uma ambiência que envolve as tribos em halos de mistérios, como nichos protetores, um lugar transitório que se encontra aberto, num vai e vem que se mostra como um abrigo a refúgios de perigos, de onde se sai com tanta desenvoltura como se entrou.
Embora protetor o nicho clânico da tribo é também a espacialidade de conflitos. Há uma instável harmonização que Maffesoli prefere denominar de “harmonia conflitual”. Como as diferenças não são eliminadas no convívio tribal, é esperado que as divergências ocorram, mas são relativizadas na busca da perdurância grupal, não porque sejam racionalmente dirimidas, nem mesmo que haja uma plena consciência da vizinhança caótica que o conflito possa causar. Pela própria ausência da compulsividade das normas a fluidez se opõe ao petrificado e, numa ambiência assim, fica mais fácil driblar o desconforto conflitual, negociar com a diferença. Maffesoli retorna a atmosfera tribal em sua obra:“O sentimento de pertencer, em uma dada ‘existência’, é menos social ou nacional do que tribal e faz com que cada um, numa certa medida, seja um estranho. E são as justaposições dessas estranhezas que constituem o mosaico paradoxalmente tênue, mas não menos sólido, da socialidade pós-moderna (...) Distância em relação ao que domina do alto e aliança em relação ao que está próximo. Com efeito, tanto é frágil o laço ligando as instituições racionais e longínquas como é forte o sentimento de pertencer às diversas tribos proxêmicas' (Maffesoli, 2001:140-1).

O estilo estético

Como se dá o vínculo social pós-moderno? Vínculo este que não só liga os homens entre si, mas também a produção humana? Maffesoli (1995:53) vai encontrá-lo no que denomina de “estilo estético”, como “maneira de experimentar em comum”. Aí o termo “estética' requer concepção ampliada e não mais apenas como um estudo racional do belo.
Nesta nova concepção a estética assume uma dinâmica que não se detecta em seu conceito clássico. A vida social, a socialidade, é a obra de arte aberta, posta em movimento num permanente construir-se. Aproxima-se daquilo que Durkheim chamava de 'divino social' e que Maffesoli (1984) interpreta como uma forma politeísta, composta da pluralidade de diferenças e que mesmo assim, ou, melhor, porque assim o é, se organiza, como um “reservatório do saber viver'. É esta sabedoria do povo, que, todavia, não é explícita, mas que se deixa sentir em momentos paroxísticos, que o mantém unido, como uma força divina do 're-ligare' que o autor considera como 'centralidade subterrânea.', um vetor social que age sobre coisas materiais através de um laço simbólico, de um mistério, daí poder ser chamado de 'materialismo místico'. Esta potência permite a socialidade perdurar, malgrado as imposições da tirania do racional, sempre explicadora e fragmentadora. É um querer-viver, não na unidade homogeneizante, mas na unicidade formada pelas diferenças, que se alicerçam, porque relativizam as imposições. Resulta dai uma harmonia, que não é da ordem da norma ou da explicação, mas que se coloca como uma saudável e frágil 'harmonia conflitual', porque se sente incompleta e precisa da diferença para se manter. 'eis o mistério dionisíaco: enfrentar coletivamente, pela pluralidade dos afetos e dos corpos, o problema intransponível do limite' (Maffesoli,1985:49). É no diuturno enfrentamento do limite que a socialidade se une, pelas diferenças, e desenvolve sua 'perdurância societal.'
Esta estetização da existência, como obra de arte inconclusa, significa um ser-estar-junto, sem objetivo determinado, partilhando emoções e sentimentos comuns, vivendo o presente com o que ele tem de melhor e de pior. Tal atitude não planeja o futuro nem coloca a felicidade num momento ou num espaço fora da vida, mas desenvolve o uso dos prazeres. Ao invés de prospectiva, a existência estética usufrui do presente, sem fazer dele um mal a ser ultrapassado na busca do devir.
Assim, o ideal societário, sempre guiado pelas palavras de ordem progressistas, com suas marcas no plano macro-social, que foi o estilo da modernidade, é desfocado, para avivar as cores do ideal comunitário, com ênfase na vida tribal que não repousa na placidez, mas que interage de forma artesanal, em suas composições e negociações.
Todavia, está presente um permanente sentimento de pertença, em graus variáveis. Vale dizer, o estilo estético da vida quotidiana empurra para ou contra o outro, mas sempre haverá o outro que relativiza e é relativizado, porque não autônomo. Barthes (1973:9) nos diz: 'Não é a `pessoa` do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo'.
O estilo estético de viver o quotidiano não se reduz a um conceito, nem é uma estratégia, mas é sim uma atitude. Exprime o espírito de uma época, uma maneira de pensar e agir, impregnando as relações de uma visão de mundo nem sempre consciente e bem delineada. Feito de pequenas insignificâncias, ricas de significados, que conectam os seres humanos, independentemente das normas erigidas pelas deduções matemáticas, disciplinadoras do viver. Não se trata de uma moral abstrata e vinda de cima, mas sim de uma 'ética do instante', aquela que se põe como casuísta, adequada àquela situação específica e não a outra, feita de sinceridades sucessivas, não implicando num estatuto generalizável, um 'carpe diem'. Como dizia Horácio: 'Goza o dia de hoje, que bem incerto é o dia de amanhã'. Isto, na vida quotidiana, corresponde a ver cada situação como única e, então afastar-se de padrões normatizadores. É nesta vivência estética que estão concentrados o detalhe e a imagem dos rituais diários que sedimentam e dão densidade a esta vivência.
Quanto mais a ciência se esforça em aprofundar suas tradicionais referências, menos alcança este movimento de vitalidade movente que vem se compondo na vida quotidiana. Uma ciência para este novo tempo não pode conservar a episteme e a linguagem de um paradigma desgastado. Como propor explicar objetivamente fenômenos que se escondem na subjetividade do vivido sem se apartar deles? Tal proeza só poderia gerar a aridez de um discurso que se descolou de seu objeto e já não pode falar dele, mas somente sobre ele. É preciso um novo pensador, não por razões de modismo acadêmico, mas porque a vida social lateja, ávida da busca, matéria prima para uma ciência sensível à sua forma mutante, aberta ao aleatório. Uma ciência que também se coloque como arte, no sentido estético aqui empregado, uma construção co-partilhada, que não despreza o minúsculo, mas que o vê como alicerce, que acolhe o fortuito não como erro ou vício, mas nele vê possibilidades que interessam ao fervilhar da vida, as 'correntes quentes do vivido', mais do que o isolacionismo do dado, que valoriza o senso-comum como patamar de descobertas, antes de ridicularizá-lo.
Este estilo nascente será, sem dúvida, acusado de desordenado, de caótico, de anômico e de não científico. Como tal, assusta os burocratas do saber, fossilizados nas academias, que antes de nascer a criança já a imaginam perigosa, nociva, por não se coadunar com os cânones consolidados de um saber conhecido. Olhamos fenômenos novos e surpreendentes com óculos de graus anteriores, inapropriados para esta outra leitura, porque as crostas de racionalismo podem opacificar a sensibilidade requerida pelos fenômenos contemporâneos.
Contra o absolutismo da razão é preciso lembrar Nietzsche (1982) que nos falava de uma 'gaia ciência' e que via a vontade de potência enquanto arte que afirma a vida e o mundo como teia de relações, onde sempre está presente a instabilidade e a luta. VATTIMMO, em entrevista concedida a EWALD, (1987; 22) que no vazio deixado pelo declínio das legitimações nos fala de uma forma de pensar 'frágil que cria um tipo de niilismo terapêutico', pois 'nos educa a uma vida onde as intensidades totais desapareceram'.
A estética, assim considerada, é uma estrutura antropológica. 'O estetismo metodológico não é uma abdicação do pensamento', mas que se pode 'entrar em correspondência com certos elementos deste mundo que se pretende analisar“. (Maffesoli, s.d.: 38) O estilo estético pode estabelecer uma correspondência entre a ciência que se faz e os modos de vida de um dado grupo social, diminuindo o hiato entre o fato social e o fato sociológico, entre cultura e natureza, através de um experienciar em comum. A estética está assim ligada às diversas manifestações da vida, a própria vida é que se coloca como uma obra de arte, construída no minúsculo do dia a dia, na quotidianidade considerada 'sem importância', por uma ótica macro, que só vai se interessar pelos grandes eventos.

Vitalismo e qualidade de vida

Que relação pode ser estabelecida entre o fenômeno neo-tribal e a noção de qualidade de vida? O termo Qualidade de Vida coloca para todos nós dificuldades múltiplas. Delineia um conceito abstrato e não operacional, na literatura é gerador de celeuma, pelo seu caráter subjetivo e pela variedade de fatores que são reclamados numa vida com qualidade.
No auge dos tempos modernos a qualidade de vida era relacionada diretamente a fatores materiais. Na contemporaneidade esta concepção tem sofrido modificações para incluir elementos tais como qualidade de relacionamentos, opções de lazer e acesso a bens culturais. Enquanto, alimento, moradia, saúde, educação, segurança e trabalho continuam a ser considerados itens básicos de sobrevivência, outros fatores passaram a ser vistos como necessários ao bem estar
Se antes de 1990 era o PIB que direcionava os índices de qualidade de vida, a partir daí a ONU passa a utilizar, como indicador, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que inclui outras variáveis além da econômica e compara o estágio de desenvolvimento de países e de regiões dentro de um mesmo país. Estes são alguns dos sinais a nos revelar um outro estilo da vida contemporânea.
Quanto às condições de vida e saúde das populações humanas é inegável que tem havido melhorias. O homem de Neanderthal vivia em torno de 29 anos, entre os séculos XVIII e XIX a expectativa de vida podia chegar aos 35/40, hoje, nos países desenvolvidos, chega-se aos 85 anos. Todavia, tais avanços não podem turvar nossa visão das mazelas e da capacidade do homem fazer mal ao seu entorno em caráter planetário.
Em junho de 2002 reuniu-se, em Roma, a 2a.Cúpula Mundial da Alimentação, com 180 países representados, inclusive o Brasil, pelo Ministro da Agricultura Pratini de Moraes, com a finalidade de traçar estratégias para salvar da fome 400 milhões de seres humanos, dos 800 famintos no mundo, até 2015. O último encontro da Cúpula, realizado em 1996, constatou-se que não foi atingida a meta proposta, pois somente seis milhões de pessoas ascenderam na escala da nutrição. Se este ritmo for mantido só em, aproximadamente, 65 anos a meta seria alcançada. Jacques Diouf, diretor geral da FAO, propôs ao mundo “uma coalizão contra a fome semelhante à antiterrorismo”. O diretor de operações da FAO, Andrew MacMillan, relembra-nos que “Há uma percepção de que lidar com a fome é uma questão de caridade. Livrar-se da fome faz parte do interesse mais profundo das nações” (Folha de São Paulo, 2002).
A FAO propõe como medidas o aumento da produtividade de pequenos agricultores, facilitar o acesso aos recursos naturais, à tecnologia e à infra-estrutura para poderem distribuir a produção. Mesmo uma superestrutura como a FAO não pode deixar de reconhecer que, embora generalizada entre os países em desenvolvimento, a fome não pode ser combatida com medidas gerais e homogeneizadas, mas que uma estratégia de atenção centrada em pequenos grupos pode demonstar eficiência inalcançável com reformas macro-sociais. Não se trata de combater a fome e desnutrição com medidas políticas compensatórias, mas sim, intervir solidariamente no descalabro de situação que, no Brasil, o Banco mundial estima em 15 milhões de pessoas miseráveis, com renda de um dólar/dia. Para o IPEA, este número é de 22 milhões. O Instituto Cidadania estima em 44 e a FGV em 50 milhões. Cerca de 80 mil crianças brasileiras morrem antes de um ano de idade e calcula-se que metade destes óbitos se dê por fome e desnutrição.
Maffesoli (1988:17) revisita a concepção de Kant sobre aestesis: “A acentuação é menos sobre o objeto artístico como tal que sobre o processo que me faz admirar este objeto”. Este pressuposto nos remete a uma forma vitalista do homem com seu entorno a demonstrar que a natureza não pode mais ser vista como objeto a ser explorado, mas sim como parceira obrigatória. A ambiência social é indissociavelmente ligada à ambiência natural
Foi a partir do estranhamento do homem para com a natureza que se criou o conceito de cultura, e ele, que de tão natural nem se distinguia do eco-sistema, construía socialmente a natureza. Construir a natureza foi apartar-se dela, foi perceber-se como fora dela e percebê-la diferente de si. Como a diferença ameaça, foi preciso domesticá-la, dominá-la. Não só o seu ambiente de entorno, mas também tudo de natural que havia nele próprio. Ser natural, a partir de então, passava a ser pejorativo, infantilidade histórica, origem primitiva que era preciso expurgar. Não mais a comunhão do homem com o seu. Construir a natureza foi confrontá-la com a sociedade, com a cultura, como resultado da ação racional.
A racionalidade ao objetivar a natureza, tomou-a como objeto. A posse passou a legitimar o uso e o abuso. Na esteira da modernidade o desenvolvimento das ciências e o crescimento das técnicas assentaram-se na exploração da natureza e do trabalho humano. “Progresso passou a significar crescimento econômico e a justificar, muitas vezes em nome da razão, aniquilação de tudo aquilo que veio a ser associado ao ‘atraso’, desde as relações tradicionais até a natureza e as próprias pessoas”. (Vaistman, 1992:159).
A dicotomia natureza-cultura criou um falso problema, reduziu as diferenças aos conceitos de posse e poder, todavia, é preciso lembrar que a natureza terrestre data de aproximadamente cinco bilhões de anos e que o homem só a pouco mais de 100 mil anos surgiu neste planeta.
Fala-se de modernização do país, da administração, da economia, dos serviços de saúde, como se falasse de uma abstração. As conseqüências deletérias do progresso da modernidade também são de responsabilidade deste homem abstrato? Vale dizer, de ninguém? Sabemos da poluição das águas, do lixo atômico, das fontes de energia poluidoras, do esgotamento dos recursos naturais, do efeito estufa, do BHC, que já é encontrado no sangue dos pingüins na Antártica, enfim, da degradação da natureza, como “acidentes”, “acidentes ecológicos” sem culpados, sem responsáveis. São abstrações, Não é um homem abstrato que degrada a qualidade de vida! É este ser humano como nós que se sente isento da responsabilidade, muitas vezes pela insustentável e equivocada noção de desenvolvimento.
É ainda Vaitsman (1992) que nos convida a rever as noções de necessidade, abundância e escassez: No projeto cultural dos paises capitalistas figura a idéia de necessidades, como inesgotáveis e infinitas, que são alavancadas pela produção industrial, cujo consumo é um dos pilares ideológicos destas culturas. A noção de abundância é sustentada pelo crescimento econômico e pela produtividade do trabalho, todavia, a abundância material, confrontada com o acesso a estes bens produzidos, longe está de superar a pobreza e escassez, o que mostra que: “as noções como escassez, abundância, necessidade são construídas não apenas social, mas culturalmente (...) A primeira sociedade de abundância existiu entre os caçador-coletores”. Os caçadores-coletores possuem, por força das circunstâncias, um padrão de vida objetivamente baixo, mas tomando-se os seus objetivos e dados os seus meios de produção adequados, todas as necessidades materiais das pessoas geralmente podem ser satisfeitas. A evolução da economia conheceu então dois movimentos contraditórios: enriquecimento, mas ao mesmo tempo empobrecimento, apropriação em relação à natureza, expropriação em relação ao homem” (Sahlins, apud VAITSMAN1992:37).
Todos estes fatores têm implicações na qualidade de vida e no campo da saúde humana, a nos revelar a história social e cultural das doenças.
O que caracteriza “As sociedades doentes de progresso” de que nos fala Ferro (1998) é que: ”O estado de saúde constitui um indicador da reacção dos indivíduos às mudanças de vida a que estão submetidos e, deste ponto de vista, a doença torna-se um sintoma do mal-estar social, ao mesmo nível que a greve, o absentismo ou o stress” (p.77).
As conquistas políticas e o aumento da produtividade, paradoxalmente, desenvolveram as chamadas doenças da civilização, tais como os cânceres, as cardiopatias, a obesidade, as formas degenerativas e o lazer passivo, evidenciando que desenvolvimento econômico não é sinônimo de bem-estar. Como efeitos perversos do desenvolvimento, marcando mesmo uma fronteira, as doenças infecto-contagiosas, ressurgem, contra toda as expectativas e põem em causa nossa ilusão de progresso. Ao inverter a afirmação de Ferro (1998:77) podemos perguntar: Se o estado de saúde constitui um indicador de reação às mudanças de vida, o que poderia ser apreciado como indicador de qualidade de vida? Se a doença é sintoma de mal-estar social, comparada à greve, ao absenteismo e ao estresse, seria a transgressão um sintoma de bem-estar?
Numa estrutura social perversa, sob a hegemonia dos decadentes paradigmas explicativos, não é de todo absurdo ver na transgressão a vitalidade humana sufocada, mas não extinta? Extrair a comicidade dos triviais fatos do quotidiano e compreender a transgressão com seu poder de seduzir é entrar no espetáculo da vida como autor, protagonista e platéia.
A flexibilidade, a astúcia, às vezes o cinismo, enfim, a habilidade para viver a vida em suas facetas, é exercício necessário. Enquanto ultrapassagem do proibido a transgressão brinca com o risco e o fortuíto, daí seu caráter sedutor e erótico. Barthes (1987: 16) diz:
“O lugar mais erótico do corpo não é lá onde o vestuário se entreabre? (...) é a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas bordas (...) a encenação de um aparecimento-desaparecimento”.
Face a uma ordem política desencantadora, obscena, a transgressão, com seu potencial erótico, põe-se como respiradouro numa vida asfixiada. Pode desestabilizar o político, mas não tem este intuito, na verdade não tem objetivo nenhum a não ser usufruir o prazer da sedução na inutilidade do gesto.
Este quotidiano social humano, construído e disciplinado, não consegue camuflar tudo de caótico, de múltiplo, onde as diferenças formam a rica teia do viver, com o que se tem de melhor e de pior. Numa palavra perigosa: não consegue sufocar o ORGIÁSTICO, e aqui é preciso coragem para ir além dos preconceitos e da carga semântica desta palavra e despir o ORGIÁSTICO de suas conotações meramente sexuais, para senti-lo como energia vital que move os desejos humanos.
É este querer viver – e não apenas sobreviver - que revela o vitalismo da sociedade humana e vai muito além das propostas utilitaristas e progressistas da modernidade.
Pensar saúde e qualidade de vida hoje exige a recriação de estilo de vida e das relações do homem com o eco-sistema. Daí delinear-se para nós que habitar a terra é muito mais do que dispor de uma espacialidade geográfica, porque é também uma espacialidade simbólica. E o que é uma espacialidade simbólica? É chamada de simbólica porque desta espacialidade tem-se uma representação, que nem sempre corresponde com a realidade, com a concretude de sua constituição.
Na vida contemporânea, altamente competitiva e individualista, o
coletivo tem seu valor reduzido, o que resultou em atrofia do espaço público. Para caracterizar-se como “res pública” os espaços precisam ser de uso da comunidade. Em lugar do uso desta posse pela comunidade, particularmente nas grandes metrópoles, predomina a hostilidade urbana com a dissolução dos espaços de convívio, numa lógica social de esbulho.
Como característica marcante de nossa sociedade há um individualismo compulsivo. Este individualismo determina o isolamento de onde não se pode sair com facilidade. É preciso distinguir individualismo do neologismo individuação. Se o primeiro termo nos é tão familiar, como a marca da exclusão do outro, do egoísmo e do egocentrismo, já a individuação designa a possibilidade de se ver o outro e ser visto por ele como um ser humano, que ao mesmo tempo faz parte de uma totalidade, que deriva sua identidade deste todo, mas que não coincide, não se perde no conjunto, não é a adição pura e simples de parte no todo, nem se anula na totalidade da qual faz parte. Vale dizer, conserva um núcleo próprio de características que o faz pertencer sem se identificar. É a noção de individuação que se faz presente nos ajuntamentos tribais.
Vattimmo, em recente entrevista para a Folha de São Paulo (Caderno Mais: 2002), diz acreditar que o avanço do conhecimento humano deve gerar maior compartilhamento para com o entorno e para consigo mesmo e que a bioética representa a vocação do homem e o coloca diante do fato de que a vida, cada vez mais, depende de cada um de nós. Os limites são intersubjetivos daí a necessidade de interlocução.
Os laços sociais precisam ser de outra ordem. Não que sejam capazes de eliminar as contradições, mas que possam driblá-las. Será preciso conotar a vida social com a dimensão do coletivo, não do coletivizante. Coletivizante o mundo humano já é, dado o seu caráter massivo. O coletivo é regenerador e se coloca como espaço privilegiado de convivência, onde as negociações podem ser mais facilmente feitas, sem tanta repulsa e violência. Assim, no interior das tribos se poderá negociar com a finitude, o mal-estar pode ser homeopaticamente integrado, onde se tornará mais fácil elaborar a angústia, onde se pacifica a convivência com o desconhecido.
Incentivar, através de propostas integradoras e de forma co-partilhada, em cada uma das áreas das ciências da vida, a reorganização do coletivo se põe como um eixo de construção da cidadania. Aí é esperada a participação de todos nós que nas universidades desenvolvemos habilidades de mobilização social. Isto não significa cooptar com o quadro macro-social de liberalismo urbano, mas sim interferir no processo deletério, sintonizando com a transitoriedade de demandas circunstanciais, e, sobretudo compreendendo a dinâmica da vitalidade humana.
Touraine acredita num “silêncio social” que é perfurado, aqui e ali, pela irrupção de movimentos co-partilhados. Ou seja, este “silêncio” não se absolutista por não atuar dentro do processo de desumanização do mundo. Não é impotência sem possibilidade de resistir. É muitas vezes, sabedoria estratégica, mesmo que ainda teoricamente não mapeada, não de todo consciente, é a “douta ignorância” de que nos fala Maffesoli, uma sabedoria daqueles destituídos de poder, um saber-fazer e movimentar-se num quadro social desfavorável. Não se trata de uma “revolução” macro-social. É no localismo que se solidifica o “cimento social” que une e legitima as ações humanas. O energismo de uma modernidade embrutecedora é forçado a abrir espaço para o vitalismo que cada um de nós conserva sufocado, mas não extinto. Esta, talvez, seja a incontestável vocação humana para ser saudável, apesar do mal-estar. Penna (997) nos fala da possibilidade de “Ser saudável no quotidiano da favela”: ”Ali, onde a vida se apresenta precária, vive-se o presente, porque pelo pouco que se tem, não se pode projetar um futuro, buscar melhoras para o amanhã, como prega o mundo prometéico, progressista. Como diz Maffesoli, se há um ajustamento desta existência em comum, ela tem um lugar, que dá espaço para esta ligação social, pontilhada e abalada por sobressaltos violentos, caóticos, imprevisíveis, mas que testemunham uma sólida organicidade, que, para mim, traduzem o saudável (...) Talvez seja complicado concebê-los saudáveis nestas condições, mas parece ser possível. Talvez possa ser possível compreender que ser saudável é uma forma de estar inserido neste espaço-tempo, ao qual pertencem”. (p.139) É daí que poderá soprar uma aragem de revitalização, não só na busca de satisfação de necessidades, mas também direcionada pelo desejo.



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