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Contos-->No Bar Português -- 17/12/2002 - 10:04 (Eloá França) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um louco, velho e magro, cruzava a rua gesticulando a sua raiva no ar.

Pedro acorda. No quarto. Olha a janela. Vê o louco. Olha a fotografia da mãe jogada sobre a cômoda. Pensa na moça, Viviane. Vê novamente o louco.

Pensa na moça. Falava muito, mas fazia umas pausas enquanto ia contando. Estas pausas o encantaram. O interromper-se e o retomar. Era capaz de uma entrega num rápido momento, esquecida, rara. Ele se arruma: toma banho, faz a barba, se veste, faz um café, toma-o rapidamente e vai para o trabalho.

Passa todo o dia no trabalho. Lê, escreve, olha números, analisa. Algumas vezes não faz nada. Escuta as conversas, observa, percebe. Ao final do dia, retira-se do lugar ensimesmado, no entanto sem perder sua postura, seus sentimentos e suas configurações, suas possibilidades internas. Nada fora corrompido. Possui uma couraça forte. Sente dor, mas não perde os pensamentos sublimes, íntegros e verdadeiros pela humanidade. Apesar dos muitos e muitos homens que fazem as coisas em sentido contrário, que o chocam profundamente, pois possui uma natureza sensível, suscetível, correta.

Ele resolve procurar Viviane. Vai até sua casa. Não a encontra. Ela pode estar em qualquer lugar. Ele se torna lento. Precisa beber. Anda algumas quadras até encontrar um bar, um bar português. O bar possui um segundo balcão, localizado em frente ao balcão principal, um balcão largo, ao longe as prateleiras cheias, o fundo espelhado. Janelas internas permitem que se veja o movimento na cozinha, os cozinheiros, a preparação dos pratos. As paredes possuem azulejos brancos até a metade, depois vem uma faixa inteira de azulejos decorados, motivos campestres, paisagens, flores, acima as paredes são pintadas de bege e várias fotografias de família, antigas fotografias, em preto e branco, estão espalhadas por todos os lados. Ele se senta no segundo balcão.

Bebe uísque. Tem bebido sempre. Sente-se culpado por não andar fazendo nada. Apenas tem bebido. Não tem construído nada. Não tem usado os seus dons, sua inteligência, seus conhecimentos, seus talentos, para nada. Vê um homem entrar. Ele se aproxima e diz:
- A vida é óbvia.
Pedro não responde. O homem senta ao seu lado e pede um uísque. Bebe. Fica calado. Depois diz:
- As mulheres são dúbias.

Ele pensa que o homem é um alcoólatra. Pode ser um infeliz. O homem é bem mais velho do que ele.

Pedro espera. O homem vai lhe contar a sua vida ou alguma parte dela. Ele espera o inesperado. Espera que não seja uma história qualquer, vulgar. Ele espera. Sabe que a história só virá quando o homem estiver na segunda ou terceira dose.

O tempo passa. Eles bebem. Depois o homem fala. A mulher que o homem amava era assim: precisa, direta, objetiva, confiável. Ela dissera não para ele durante 30 anos e eis que ele recebe uma carta dela onde dizia: “Eu o segui muitas vezes, não tive coragem de me aproximar. Tive medo de ver retornar todo o meu antigo amor por você, que me levou ao desespero, que me fez perder o sentido da vida e dos meus objetivos por muito tempo. Pouco a pouco me refiz. Amei outros homens, nunca da forma romântica ou plena como éramos nós ou como sonhei que fosse. Construi uma carreira que me proporcionou muita realização, prazer no que faço e resultados. Agora que tenho equilíbrio, que sou uma pessoa tranqüila, por ter encontrado o meu caminho, pela idade, gostaria de marcar aquele encontro que você vem há tantos anos tentando.”

Depois de lhe mostrar a carta, o homem contou: “Terminei o curso de medicina e fui com um grupo missionário para a África passar três meses. Fui realizar um sonho. Fiquei por lá cinco anos. Não consegui voltar. Estava em minha natureza ser médico. Eram tantos doentes. Tanta coisa para fazer. Havia muitas epidemias, de várias origens. Eu era muito acelerado. Não conseguia parar. Algo em mim me movia todo o tempo. Sentia-me obrigado em meu foro intimo a não parar de cuidar das pessoas. Tudo era precário. As pessoas se apegaram a mim. Quando o grupo ia voltar, não ficaria ninguém. Não haveria um médico nem para fazer um parto. Eu não consegui partir. Ela ficou aqui. Nesse tempo, eu nunca telefonei, não a procurei, não havia o que falar”.

O homem estava começando a ficar bêbado e sofreu um escorregão. Pedro o amparou, quase se abraçaram. O homem estava feliz porque alguém o escutava em cada palavra. Perguntou para ele:
- E você?
- Eu estou no começo, eu vou aprender.
- Você é muito inteligente. Há muitas possibilidades para você. Não desista.
Ele sorriu e disse:
- Está bem.
- Há alguém?
- Sim, estamos começando.
- Mas o que te impressionou nela?
- Na segunda vez em que saímos juntos, fomos almoçar e tínhamos uns 40 minutos livres, ao lado de onde estávamos tinha uma galeria com várias lojas e do outro lado da rua tinha uma livraria. Ela preferiu atravessar a rua.

O homem sorriu admirado. Depois retomou a história que contava: “O Governo do País onde eu estava me ofereceu um emprego. Pagavam pouco. Muito pouco. Havia muita fome. Eu me sentia um privilegiado na vida, por tudo, por ser um médico. De alguma forma era um dívida, eu devia ao mundo, eu não podia desperdiçar as minhas habilidades, entende? Até o 4º ano, tudo correu bem, mas no 5º ano comecei a beber, beber muito. Como se tivesse esgotado minha capacidade de solidão, de despreendimento. Não havia um amigo. Não havia ninguém. Apenas livros. Livros técnicos. Meu irmão me mandava os livros. Fazia muito calor. No ano inteiro. Assim como aqui temos a seca no meio do ano, lá tínhamos o calor no ano inteiro. Mas havia ela. E bebi cada vez mais porque sabia que tinha perdido a melhor pessoa que conheci em minha vida. A melhor pessoa”.

Pausa. Silêncio. O homem se distancia um pouco. Reflete sobre suas próprias palavras. Depois continua: “Ela não quis falar comigo quando voltei. Não quis saber. Não perdoou que três meses virassem cinco anos. Não quis saber. Nunca me recebeu. Eu continuei. Eu trabalhei, agora aqui, por 30 anos. Participei de outras missões, mais brandas do que a primeira. Eu às vezes ficava sabendo de alguma coisa sobre a vida dela. A melhor pessoa que conheci em minha vida. Ela ao longo dos anos passou a desenvolver trabalhos ambientais, preservação de nascentes e percursos de rios, de pequenos rios, trabalha bem, tem conseguido recuperar várias nascentes e rios, vai até os lugares, promove treinamentos, seminários, consegue reunir grupos grandes. Várias vezes eu tentei falar com ela, nunca consegui. Ontem eu recebi a carta. É um amor? Não. As mulheres não esperam. Elas vivem. Elas vivem como nós. Sou um homem de uma geração intermediária, de uma época de transição. Antes elas esperavam. Agora não sabemos. Ela é a melhor pessoa que conheci. Você é sensível, inteligente, prefere as livrarias, ajude-me a entender o que ela está dizendo”.

Pedro sorriu novamente. Não sabia o que dizer. Pediram mais duas doses. Beberam. O homem disse:
- Vou procurá-la daqui a uns dois dias. Preciso me acalmar. Irei à casa dela. Quando nos olharmos tudo será fácil. Sou um homem feliz. Tenho vivido.
- Vai dar tudo certo. Devem possuir muitas afinidades.

Os dois ficam quietos. Estão calmos, felizes. Chegaram a um entendimento. Pedro pede ao homem que lhe conte algumas experiências, sobre o tempo em que viveu na África. Como eram as coisas, o que realmente acontecia. Ele fala, conta várias histórias. Pedro também fala, sobre sua infância, sobre algumas viagens que fez.

Eles bebem mais e mais. O bar começa a encher. O burburinho já não permite que eles se escutem com tanta clareza. Eles estão cada vez mais bêbados. Em alguns momentos eles não têm assunto. A madrugada vem. As línguas se enrolam, já não sabem ao certo do quê estão falando. Pedem dois cafés, bebem sem açúcar e sem adoçante e se despedem.

Pedro vai para casa. Vai dormir. Está muito bêbado e cansado. No dia seguinte acorda tarde, perde a hora do trabalho. Decide ir novamente à casa de Viviane. Ele a encontra. Pensa que a partir de agora as coisas podem começar a mudar. Ela fala. Da mesma maneira. As mesmas pausas. Ele percebe que a sua angústia vai passar, que vai voltar a acreditar, vai construir coisas , vai ser capaz de retornar o seu conhecimento para o mundo, para os homens, para a história dos homens. Ele diz para Viviane:
- Ontem eu conheci um homem e ele me contou a história dele.
E então ele relata para Viviane tudo o que tinha conversado com o homem.
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