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Ensaios-->Os Gaúchos de Charles Darwin -- 10/06/2008 - 09:45 (Academia Passo-Fundense de Letras) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os Gaúchos de Charles Darwin

Paulo Monteiro (*)


Charles Darwin foi um dos cientistas mais importantes de todos os tempos. Seu livro A Origem das Espécies, publicado em 1859, provocou verdadeira revolução no conhecimento e na visão do mundo. Não foi, porém, o primeiro. Antes dele, deu a lume outros que despertaram interesse e diversos estudos científicos.
Há alguns anos, sob o título de Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo, traduzido por J. Carvalho, a Abril Cultural pôs em circulação no Brasil um desses livros. Tive a oportunidade de relê-lo, aproveitando informações do grande naturalista em uma série de palestras que pronunciei em escolas da cidade, sobre as origens do gaúcho.
Durante boa parte de 1832 e 1833, Charles Darwin percorreu largos trechos do Uruguai e da Argentina (inclusive as Falklands ou Malvinas), onde encontrou o gaúcho. A parcela maior de suas notas é, como não poderia ser de outro modo, dedicada a observações fósseis e geológicas. Entretanto, as descrições que deixou sobre os gaúchos daquela época assumem particular valor, pelo observador especial que era.
Juan Manuel Rosas
No Capítulo IV (páginas 21 a 26) registrou observações interessantes sobre o caudilho Juan Manuel Rosas. Como todos sabem, Domingo Sarmiento, em seu importantíssimo Facundo, escrito poucos anos depois das notas de Charles Darwin, imortalizaria Rosas como o protótipo dos governantes 'bárbaros' da Pampa.
Certa feita, Rosas fez encerrar numa mangueira uma tropa de cavalos xucros e quem, montado em pelo e sem cair, conseguisse trazer o animal de volta seria aclamado general. Pois ele próprio foi o único a fazê-lo. Costumava castigar os desobedientes com o estaqueamento, suplício que consistia em manter a vítima suspensa em quatro estacas, através de tiras de couro amarradas aos braços e pernas. Quando Darwin o encontrou, em julho de 1832, dizia-se que era 'o proprietário de setenta e quatro léguas quadradas de terra, e de trezentas mil cabeças de gado'. À época, estava à frente de uma expedição que dizimava os índios das margens do Rio Colorado.
Os gaúchos se embriagavam e brigavam, especialmente à faca. E um dos maiores prazeres era cortar o rosto do adversário, deixando o famoso buenas-tardes, como se diz ainda nos dias de hoje. Darwin conta que encontrou pessoas com o rosto deformado por esse costume bárbaro. Para coibí-lo, o caudilho proibiu o porte de facas aos domingos. Num desses dias o governador veio visitar o acampamento rosista. Para recebê-lo, o general saiu às pressas, portando sua charqueadeira. Advertido de que estava armado, pediu desculpas ao governador e 'disse-lhe que tinha que ser metido a ferros, e que, enquanto não fosse solto, não tinha poderes nem mesmo dentro da sua própria casa. Passado, porém, pouco tempo, o administrador deixou-se seduzir pela idéia de abrir as algemas e soltá-lo. O prisioneiro, contudo, disse: 'Infringiste as leis, e tens agora que tomar o meu lugar a ferros'. Atos como este deliciam o íntimo dos gaúchos, que possuem todos, grandes noções sobre os sentimentos de igualdade e dignidade de cada um'. (Op. cit., págs. 23 e 24).
Privado X Público
Essa 'dignidade' era mesmo a 'dignidade de cada um'. Era uma ética pessoal, digamos assim. O caso das guerras aos índios é exemplar. Tanto nos antigos domínios da Espanha quanto nos de Portugal, essas guerras serviram para que militares acumulassem grandes áreas de terras, como é fartamente documentado. Os latifúndios, lá e aqui, se formaram dessa maneira. Assim foi com as dezenas de quadras de terras e as centenas de milhares de cabeças de gado de Rosas, quanto com a atual área urbana de Passo Fundo (do rio que lhe empresta o nome ao Pinheiro Torto), entregue ao cabo Manoel José das Neves porque foi ferido no combate do Passo das Galinhas, em 1827.
A exemplo do que ocorria, aqui, em Passo Fundo, em anos próximos daqueles em que Darwin esteve na América, e do que já acontecera neste continente em séculos anteriores, “índios mansos” eram empregados para combater os “índios selvagens”. Tão hábeis rastreadores quanto violentos, os “índios mansos”, que serviam às forças do caudilho mor, bebiam até ficar embriagados, enquanto “outros sorviam o sangue que jorrava do gado abatido para a sua ceia, e, como estivessem todos ébrios, vomitavam-no e cobriam-se de lama e sangue coagulado”, conta Charles Darwin, à página 33. Essa descrição demonstra a ancestralidade da violência, que já continuava e continuaria, através de processo genético, em muitos caudilhos e caudilhetes, filhos ou netos da macega.
Além de beberem o sangue ainda quente da rês carneada, costume que se perpetua até hoje, os gaúchos de Charles Darwin tinham como um dos seus pratos prediletos, comer “feto de bezerro” e não desprezavam uma boa carne de puma, “onça-parda”, segundo o Aurélio. O naturalista espantava-se com o fato de que a alimentação pampiana era uma dieta “exclusivamente animal”, durante “meses a fio”, notando e anotando, à página 36, “que consomem grandes porções de gordura, que é de natureza menos animalizada, e têm horror especial pela carne magra, como a da cutia (...).”
Dos índios, os gaúchos herdaram muito mais do que o sangue; receberam práticas, hábitos e instrumentos. Numa palavra: Cultura. Charles Darwin descreve uma espécie de torneio com lanças e boleadeiras, posto em prática por um grupo de soldados que lhe servia de escolta. Afirma que um homem a cavalo podia lançar boleadeiras até a 80 metros de distância, o que, é claro, se constituía, num pequeno canhonaço...
A ignorância era generalizada. A medicina campeira deixava Charles Darwin escandalizado. Os gaúchos, a começar por um deles que era “capitão”, duvidavam que a Terra fosse redonda.
Em outra passagem (páginas 57 e 58) demonstra que o trabalho dos gaúchos era extremamente árduo. Por ter passado muito tempo sem andar a cavalo, Darwin sentia muitas dores no corpo. Um dos gaúchos, de nome Santiago, contou-lhe “que, depois de ter ficado em casa, doente, durante três meses, saindo a caçar gado bravio, sentiu tão doloridas as coxas, nos dois dias seguintes, que teve de acamar-se. Isso mostra que os gaúchos, conquanto não pareçam fazê-lo, exercem muita força muscular quando montam a cavalo. Deve ser muito extenuante a caça do gado selvagem, numa região tão difícil de passar como esta, por causa da natureza pantanosa do terreno”, referindo-se ao trabalho dos gaúchos das Malvinas.
O futuro autor da Origem das espécies conta-nos duas experiências paradigmáticas. Entre 12 e 14 de setembro de 1833 foi hospedado num posto militar. Pensou em 'gratificar' a hospedagem, que incluiu alimentação e fornecimento de cavalo. O guia desaconselhou-o, dizendo 'que a única resposta que provavelmente teria é que “temos aqui carne para fartar os cães, e não íamos portanto negá-la a um cristão”.
Alguns meses depois, já no Uruguai, deixaria em dois parágrafos contíguos, um retrato demolidor de qualquer afirmação sobre a existência de eticidade pública entre os homens.
Trancrevamo-los, das páginas 46 e 47:
'Polícia e justiça não são coisas que se digam eficientes. Se um pobre diabo cometer assassínio e for preso será encarcerado ou, mesmo, fuzilado. Se, entretanto, for rico e tiver amigos, poderá ter a certeza de que nenhuma conseqüência séria advirá. É curioso notar que invariavelmente a maioria dos habitantes respeitáveis auxilia um assassino a fugir. Parecem crer que o indivíduo peca, não contra o povo, mas contra o Estado. Nenhum viajante tem outra garantia senão a que lhe oferecem as armas que leva. E o hábito constante de se andar armado é o que mais impede a freqüência dos roubos.
'O caráter das classes altas e mais educadas participa, talvez, das boas qualidades do gaúcho, mas ressente-se de muitos vícios de que este se acha isento. A sensualidade, a zombaria de todo sentimento religioso, e a corrupção mais grosseira estão longe de constituir raridade. Quase todo funcionário público é venal. O diretor dos correios vendia francos, do governo, falsificados. O governador e o primeiro-ministro tramavam abertamente o saque do Tesouro. Quase ninguém poderia esperar justiça em casos onde entrasse o ouro. Conheci um inglês que me contou que fora ao chefe da Polícia (tremia ao entrar na sala, pois ainda não conhecia a moda da terra) e lhe dissera: 'Senhor, vim oferecer-lhe 200 dólares-papel (cerca de 5 esterlinos) para prender um indivíduo que me fraudou. Sei que isso é contra a lei, mas o meu advogado (e citou o nome) recomendou-me que fizesse o que estou fazendo'. O chefe sorriu, agradeceu, e, antes que anoitecesse, o indigitado estava seguro no xadrez. Com tão absoluta falta de princípios em homens de posição, com o país tão cheio de oficiais mal pagos e turbulentos, o povo ainda espera que possa ser bem sucedida uma forma democrática de governo...'
O pior é que isso não é um privilégio do Prata de 1833. Parece que Charles Darwin descreve qualquer metrópole sul-americana, dos dias de hoje...
A grande maioria dos gaúchos era constituída por homens ignorantes, violentos e corruptos, segundo a descrição que nos deixou o consolidador do moderno evolucionismo. Sobre eles se destacavam uma casta de caudilhos, como Juan Manuel Rosas, consolidando o poder através daquilo que os economistas chamam de acumulação primitiva. A destruição dos povos indígenas, aproveitando as rivalidades tribais foi um dos métodos empregados para acumular capital. As guerras civis platinas, que encontram na Revolução Farroupilha e na Revolução Federalista, equivalentes em território brasileiro, representaram formas assumidas pela acumulação primitiva. Os saques a propriedades durante as revoluções rio-grandenses e as matanças praticadas de ambos os lados, sejam no Serro dos Porongos, em 14 de novembro de 1834, sejam em Rio Negro, a 28 de novembro de 1893, ou no Boi Preto, em 10 de abril de 1894, são formas privilegiadas assumidas por esse tipo de enriquecimento, isto é, acumulação de capital.
(*) Paulo Monteiro, autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais e históricos, pertence a diversas entidades culturais do Brasil e do exterior. Endereço para envio de correspondência e publicações: Paulo Monteiro – Caixa Postal 462 – CEP: 99001-970 – Passo Fundo – RS.
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