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Ensaios-->QUIMERAS OU REALIDADE -- 26/09/2008 - 13:32 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Adormeci após vagar em pensamentos gratos, recordando o meu passado em diversas épocas.
Minha infância, meus primeiros amores, as paixões e decepções, as noites de boemias, meus quadros pintados ao ar livre, meus pais, parentes e amigos, principalmente os que já foram habitar o sidéreo espaço. Finalmente, embalado pelo sono, recordei com saudades as longas madrugadas passadas ao lado da minha amada, escrevendo poesias que o tempo não apagou e jamais apagará.
De repente, fui transportado num raio de luar para a minha primeira residência, onde nasci, lá na rua Abolição, no Bixiga, que muitos teimam em chamar de Bela Vista.
A noite era clara e estrelejada. Uma enorme lua cheia alaranjada despontava no alto do meu velho e saudoso quintal.
Emocionado, senti a fragrância das damas-da-noite, plantadas com tanto carinho por outra querida flor, dona Rosa, minha saudosa e querida mãe!
Espantado, ouvi vozes, vindas do lado das goiabeiras. Com atenção, percebi que uma dizia:

Foi como o nascer... foi a arrebentação
E... todas as recordações ali contidas
Mas... não reprimidas... despertavam
Espantado, vejo-o e sinto-o
Para em meus braços
Abraçar aqueles momentos oblíquos...

Ditoso... imenso... era um mundo
Ali tropeçavam as estrelas
Quando o sol se escondia
Nas tardes sem brisa... aragem fluía
Deixando o quintal com sombras caídas
Perdidas no tempo de angústias trazidas...

Lá o menino andava... seguindo... caindo
Brincava de medo... não tinha juízo
Mas hoje ao vê-lo brincando ainda
De triste que foi... cresceu e na vida
Curvou-se ao tempo e com ironia
Brinca tão-só de melancolia...

Calado e assustado, pensei: “Será para mim estes comprimentos?”, quando outra voz feminina declamou:

Eu sou o vento... e sou o tempo
Trago os relógios bem escondidos
Cada ponteiro... cada minuto
São dois fatores despercebidos...
Um... objeto... outro... abstrato
Velhos retratos sem negativos
Eu sou as crases... sou as cedilhas
Das cartas mortas... envelhecidas
Eu sou o senso e o censor
Da realidade comprometida
Eu sou o carma... também a cruz...
Que carregaste despercebida...

E continuaram a conversar.
O meu desejo era adentrar no casarão.
Caminhei pela trilha cimentada, contornando a casa até a porta da cozinha.
Para o meu encanto, estava aberta. Entrei. Apenas o clarão da lua iluminava o ambiente, deitando sombras tênues sobre o piso avermelhado. Tudo vazio. Fui para a sala e aos quartos. Nada! Nenhum móvel, nada de quadros, retratos e imagens penduradas nas paredes. Mas, ao chegar ao cômodo onde eu dormia, percebi um reflexo na parede. Era um espelho grande que refletia todo o meu corpo. Foi quando eu chorei.
Estampado naquele cristal estava o menino de doze anos, que havia cinqüenta e cinco anos tinha deixado o local.
Outras vozes, agora vindas de dentro de casa, continuaram a declamar outras poesias:

Era noite e um mistério
No quarto escuro... o tédio
No tempo a solidão...
Nas paredes os retratos
Um Cristo crucificado
Olhava a inquietação
Do menino assustado
Com seus sonhos sem recatos
Mas sonhados com pavor
Com a morte... lôbrega... adusta
Que vira na ante-sala
Daquela casa fadada
Em ser alvitre da dor...

Percebi que aquelas misteriosas vozes em declamações queriam me encantar! Esses poemas são seus, meu caro visitante, quiçá elas queriam dizer. Será? Nos sonhos e na realidade, tudo é possível!
Tentei sentir medo, mas como em magia senti renascer toda a força de uma infância feliz e distante. Distante? Mas como? Estou aqui de calças curtas, andando livremente, sem o auxílio da bengala nem da cadeira de rodas, enxergando bem, mesmo no escuro, e não me sinto debilitado pela doença, que me arrasta a passos largos para o meu passamento!
Em resposta aos meus pensamentos, outra voz falou, quase em soluços:

Espaço vazio sem cores... nem vícios
Sem os artifícios... tirados de mim
Perdido no tempo... escuto os passos
Na trilha alongada... das idas sem vindas
Rebusco o passado... das tardes sem fim...
Nas quais esperava... depois do ocaso
Meu pai... já cansado... nos ombros o casaco
Chapéu estorvando... os olhos em viés
Olhando o quintal... de luzes enfeitado
Pela magia... dos salta-martins...

Sem dúvida alguma, ela se referia ao meu pai. Mas se sou novamente menino, onde estarão os meus pais? E as minhas irmãs?
Por favor, a minha mãe! Digam-me, onde está a minha mãe?
Outra voz, que eu ainda não tinha escutado, falou:

Foram quiçá os instantes
Derradeiros... emocionantes
Lá na rua Abolição
Da cozinha... os fluidos
Do jantar com seus cozidos
Sopa de macarrão com feijão
Do rádio... Carlos Galhardo
Cantava entre as estáticas
Entretendo o casarão
Cor ocre... tijolos de barro
Amassados com as mãos
De pretos velhos aguerridos
Pai Luiz... ou pai Francisco
Moradores dos porões...
Os gatos com seus miados
Esperavam esfomeados
Pra saborear o mingau
De leite e pão... convertido
Na mais fina refeição
Mas... triste, o menino esperava
Sentindo já a saudade
Ansioso a chegada
Daquela dança informal
Dos vaga-lumes airosos
Bailando com os seus clarões
Porém na despedida
Só um... saiu da neblina
Foi seu último amigo
Que surgiu lá no quintal...

E continuou, na seqüência:

Ângelus... lamentos dos lusco-fuscos
Ao crepusculejar das quimeras
Acalentava o zéfiro
Em farfalhares etéreos
Dos gargalhares cortantes
Das aragens contornando
As formas do meu quintal
Feudal... nas ave-marias
Quando sob a última luz do dia
Sombras... abantesmas criados
No ápice das imaginações
Despertavam entre os traçados
Dos vaga-lumes fadados
A trazer cintilações
Em seu ninho na amoreira
A coruja agoureira
Piava... lamentações
Meu pai chegava cansado
Chapéu... capa... oleados
Mangando da cerração
Formada entre as roseiras
De outra Rosa altaneira
Em preces no seu fogão...


Saí novamente para o quintal e fui direto para o alto portão de madeira. Estava fechado com o enorme cadeado. Olhei pelas frestas, queria ver a rua, pois bem em frente estaria o sobradinho amarelo com a menina dos meus encantos. Foi quando, bem atrás de mim, outra voz sussurrou em meus ouvidos:

Através das frestas do portão fechado
Com trinco... tranca e cadeado
Por curiosidade ou instinto
Olhava para um mundo esquisito
Sabendo que... mais adiante
Do outro lado da rua
Num sobradinho amarelo
Com janelas cortinadas
Morava a garota enigma
Portadora de segredos
Dos seus pecados... estigmas
Um dia... para o meu espanto
Depois de quebrado o encanto
A moça lá do sobrado
Atravessou o destino
E... como um anjo caído
Ajustou-se ao desigual
Deu-me aulas de espertezas
Com nudez e sutileza
Tirou-me a paz de menino
Fez-me homem mal crescido
Nas brincadeiras... matreiras
Sozinhos naquele quintal...

Sentei nos degraus, atordoado por tantas lembranças.
Onde estarão os meus amigos? O Márcio, Alfredo, Carlinhos e o Luizinho, que faleceu ainda menino?
E as meninas das redondezas, onde estarão? Lembrei-me da Nono, Márcia, Marizinha e tantas outras.
E os meus vizinhos? Será que ainda moram lá? Dona Esther, dona Carmela, enfim, todos dos arredores, onde estarão?
E o seu Nicolau, marido da dona Nenê, que nos pregou o maior susto quando se suicidou bem na nossa frente, ateando fogo nas suas roupas? E a sua filha, Dindinha, paralítica de uma perna? Será que ainda vive no terreno pegado ao nosso?
E o Toninho do bar? Será que ainda vive o seu Simonette da farmácia, pai do meu amigo Ivan?
Mas, se é noite, onde estão os vaga-lumes? Que é feito dos grilos e das cigarras? E os meus gatos? A outra voz, lá de dentro, disse que eles estavam tomando mingau de leite com pão. Mas onde?
E o Rex, meu cachorro de estimação? Nenhuma festa nem latidos para mim.
Só as camufladas vozes.
Outra voz feminina, quase conhecida, em suaves langores, declamou:

Quintais... cortiços
Abafadiços
Portões... janelas
Sem as tramelas
Pisos de terra
Olhar cansado
De um retrato
Impregnado
De solidão
Na casa ao lado
Com seus trejeitos
Mora o desejo
Olhos serenos
Seios morenos
Nudez velada
Pela amoreira
Caída em arcos
Caramanchão
Na mesma rua
Ladeira abaixo
Naquela esquina
Hoje esquecida
Saí pra vida
Cruzei o mundo
Triste e iracundo
Vagando incerto
Em perdição.

Tentei conversar com elas, mas só as ramagens respondiam aos meus apelos em seus farfalhares, que mais pareciam gargalhadas, rindo e zombando de mim.
Voltei para dentro da casa, procurando os meus familiares. Ao entrar, outra voz, de timbre forte e matreiro, perguntou:
– O que quer, menino? Fique tranqüilo, pois todos estão olhando por você.
– Estão todos vivos? Perguntei.
– Sim, estão! E antes do amanhecer você voltará ao futuro. Por favor, continue deixando esses recados poéticos, pois mais cedo do que você imagina estará de volta, e de vez, a este local.
Despediu-se, orando em voz pausada o Eterno Entardecer:

Caía a tarde
E a alegoria da transformação
Deitava sombras alongadas
Das velhas árvores sobre o quintal
Os farfalhares calavam
Mas a passarada... encantada
Orquestrava em pipiares
Ritmando a ostentação
Deixando por conta das cismas
O crepusculejar arquejante
Pro tempo perpetuar
Nostálgico... o menino assistia
O sol que há muito se ia
Recordando as lembranças
Ocultas dentro de si
E... no lusco-fusco inquietante
A estrela-d’alva surgia
Brilhante em sua magia
Para a noite prolongar
Assim... as quimeras passaram
Indo ao liminar da existência
No âmago da consciência
Do menino a fenecer
Nos estertores da vida
Vive a despedida
Do eterno entardecer
Daquelas saudosas acolhidas...

Corri em direção daquela voz que ecoava quintal afora.
Os primeiros clarões da manhã surgiam entre nuvens transparentes.
Num longo suspiro, olhei para a copa da alta ameixeira. Mas, para minha tristeza, eu tinha retornado ao presente. Deitado e desolado, olhava para o teto vazio do meu quarto.
Quimeras? Realidade? Lembrei-me da última voz. Levantei-me, consolado. Pois, para mim, só resta aguardar o futuro para voltar definitivamente ao meu amado e saudoso quintal. Quiçá o sepulcro!


Roberto Stavale
São Paulo, Setembro de 2008.-
Direitos Autorais Reservados®



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