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Cronicas-->12. O REPICAR DOS SINOS -- 21/09/2002 - 06:45 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Era o que mais almejava quando me via prestes a ser recebido nas plagas santas do paraíso.

Tendo morado durante toda a infància bem próximo da igreja, gostava de acordar pela manhã com a festa que os sinos faziam em tropelia.

Houve um tempo em que os sinos calaram, porque faleceu o sineiro, que também exercia as funções de ajudante geral de ordens dos sacerdotes, funcionário bem mais categorizado do que simples sacristão.

Durante algum tempo, as batidas foram meramente protocolares, anunciando os ofícios religiosos, simplesmente. A alegria havia terminado.

Inesperadamente, voltaram a bater fortes e estridentes, mas descompassados, como se tivesse sido convidado o maior inimigo da igreja para o chamado dos fiéis.

Mas isso durou no máximo uma semana porque, aos quatorze anos de idade, decidi oferecer-me aos padres para substituir aquele que viera para atormentar toda a freguesia.

- Você quer ocupar o lugar do Manuel?

- Quem é o Manuel?

- É o novo sacristão.

- Não. Só quero tocar os sinos.

- Onde você aprendeu?

- Aprendi ouvindo durante toda a vida as batidas...

Não soube completar, mas o padre me auxiliou:

- Vitório, meu filho, eu acho que você tem pelos sinos a mesma ternura que deve ter pelo seu coração, que vem batendo desde que nasceu.

Hoje eu acrescentaria que vinha batendo desde antes, mas, naquele passado ignorante, limitei-me a dizer:

- Se o senhor deixar, eu vou mostrar o que acho que sei.

- Vamos lá.

Notei que o Padre Miguel sorria. Mas não pus tento em que pudesse ser pela ousadia de quem jamais manejara as cordas.

Diante delas, não me atrapalhei. Peguei a primeira e dei a badalada inicial. Pelo som alcançado, combinei o tempo para o próximo, que repeti para não perder a solenidade do ritmo. Devo afirmar que o meu primeiro concerto deixou bastante a desejar, mas teve um mérito inesperado: era bem melhor e muito mais promissor que os do Manuel.

Foi assim que principiei a minha longa carreira de sineiro, tendo aperfeiçoado o meu ouvido, a ponto de chegar a acionar os carrilhões da catedral. Mas essa é história sem graça e sem lição.

Desde cedo, cumpri a minha tarefa com brio, limitando a minha fé e religiosidade naqueles sons carregados de fortes sentimentos de solidariedade humana, cada vez mais atento para a satisfação dos ouvintes.

Ganhei a vida e o sustento residindo numa comunidade de frades, jamais me dedicando aos estudos regulares. Minha especialização dera-me o saudável respeito de todos, de forma que bem poucas vezes me persignei, me confessei e comunguei. Percorria várias torres e cada sacerdote se inibia a questionar-me quanto aos meus costumes religiosos.

Sem muito o que pensar a respeito dos santos e dos cànones religiosos, com a família a diminuir com o passar do tempo, sem me interessar por formar a minha, regalado no prazer de fazer o que mais gostava, achava que a felicidade poderia concentrar-se naquela simplicidade de duas roupas, a de trabalho e a das datas importantes em que o sineiro era reverenciado por executar partituras mais complexas.

É bem verdade que os tons graves das exéquias e da semana santa não me agradavam. Desempenhava, porém, com muito garbo, o papel tristonho a que me obrigavam, dando aos corações enlutados motivos para reflexões a respeito dos próprios sentimentos, como se o Senhor estivesse cobrando apenas o que lhe era devido.

No geral, os sinos menores de aguda sonoridade prevaleciam nos momentos de festa, a partir da ressurreição comemorada na Páscoa.

Que fazer? Ao completar cinquenta e sete anos, precisei subir ao alto das torres para acionar os sinos, sentindo-os pela vibração, que os meus ouvidos se perderam por completo.

Era para lamentar? Não pelos sacerdotes, que ainda mais me admiravam os toques e me faziam exemplo para quanto sofredor lhes vinha requerer alívio para as dores.

Quasímodo teve seus momentos de paixão. Eu estive sempre enamorado pela sonoridade, pelo timbre, pela melodia.

Certo dia, sonhei que havia despencado junto com um grande sino, que me caía contra a cabeça mais de quinze metros abaixo. Acordei atordoado, ensopado de suor, crente que se tratava de um aviso tétrico para tomar o máximo de cuidado.

Logo percebi que a minha visão tinha sido gravemente afetada. Não que não enxergasse. Mas via apenas sombras, ou melhor, os vultos traziam roupas alvinitentes que mal distinguia. Comecei a viver numa região em que necessitava de um guia permanente. Por sorte, uma voz conhecida se fez ouvir:

- Você quer que eu o ajude em suas tarefas?

- Manuel?

- Sim. Sou eu mesmo.

- Quer ser meu ajudante?

- Perfeitamente. Você está surdo como uma porta, mas, assim mesmo, ouve bem melhor do que eu.

Unimo-nos e, por mais de quinze anos, percorremos as igrejas, até que me cansei, porque não ouvia os sinos e as vibrações me cansaram. Também não me alegravam as paisagens lá do alto, cego que estava. Mas a luz do sol conseguia penetrar através de meus globos oculares.

- Manuel, de onde você veio?

Era a pergunta que repetia sem obter resposta. No dia que confirmei a minha aposentadoria, ele me respondeu.

- Você ainda quer saber de onde eu vim?

- Quero.

- Pois eu nunca me afastei de você.

- Então você se escondeu muito bem.

- Não precisei. A minha condição natural me permitiu ficar ao seu lado sem que você percebesse.

- Que condição?

- A de pertencer ao reino dos mortos.

- Deus permitiu que você saísse do purgatório para me acompanhar?

- A misericórdia divina é infinita.

- Mas você não deveria ter subido ao paraíso?

- Pois, para mim, o paraíso foi ouvi-lo nos sineiros de tantas igrejas.

- Que você está fazendo agora?

- Estou levando-o para um mosteiro importante, onde você poderá recuperar a audição e a visão.

- Na qualidade de morto, de espírito do outro mundo, de alma penada?...

- Santa ignorància! Você ainda não percebeu?

- Percebeu o quê?

- Que você morreu...

- Você está brincando. Como é que não estou sofrendo nas chamas do purgatório?

- Você purgou seus pecados, que eram significativos, nos últimos quinze anos, desde que despencou da torre tendo o crànio esmigalhado pelo grande sino.

- Você vai ter de explicar-me isso bem melhor.

Está claro que explicou com muita paciência, à medida que eu ia recuperando o uso dos sentidos, sob tratamento no hospital da colónia.

Espero que os meus prezados leitores passem a ouvir com mais carinho o soar dos sinos, orando também pelos "repeniqueiros", nem sempre afinados, que lhes dão vida.

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